Desde que começou a ser anunciada, nos finais dos anos 90, a TDT parece amaldiçoada.
Há, no fundo, duas ou três “maldições” que lhe caíram em cima. A primeira é a própria evolução tecnológica que nos últimos anos veio tornar mais claro que múltiplas redes digitais estão aí, mesmo em casa dos portugueses, fazendo jus a Bill Gates e à sua intervenção junto da FCC no sentido de abandonar a digital terrestre e apostar tudo na IPTV.
Uma segunda “maldição" coincidiu com o lançamento dos primeiros projectos europeus de DVB-T, que acabariam praticamente todos por falir. Foi designadamente o caso inglês e o caso espanhol que não conseguiram integrar os primeiros projectos privados de TDT, curiosamente em dois dos principais mercados de media europeus.
Uma terceira, é já específica do pequeno (ridículo?) caso português, e pode dividir-se em três partes: tem a ver, por um lado, com as nossas próprias insuficiências, que criam desta nossa experiência mediática um caso de potencial falência do sistema, o que originou a primeira cassação da licença em 2003 . Por outro lado, tem ainda a ver com idiossincrasias muito nossas, isto é, com a convicção inicial – agora menos evidente –, de que a TDT vinha suprir um défice da Sociedade de Informação em Portugal. Por último, tem a ver com o lançamento do actual concurso, que não só tem um regulamento caricato, como parece estar sob o espectro de novo adiamento (o que, curiosamente, ou não, parece trazer só vantagens).
De facto, o projecto começou por ser utilizado para ajudar a lançar grandes anúncios políticos (governamentais) associados aos alegados mais elevados benefícios da Sociedade da Informação em Portugal. Corria o ano 2001 e Ferro Rodrigues, então Ministro do Equipamento Social, antecipava o lançamento do concurso da TDT, afirmando, nomeadamente que “a TDT, a implementar através da adopção da norma tecnológica pan-europeia DVB-T (Digital Video Broadcasting Television), irá substituir a actual rede analógica por uma sofisticada rede digital, que permitirá a recepção de novos serviços no televisor (acesso à Internet, correio electrónico, videoconferência, vídeo a pedido, entre outros).” Dizia-se então que a plataforma a licenciar permitia a multiplicação de ofertas interactivas, tanto de serviços de televisão, como de telecomunicações ou da sociedade de informação, estimulando a produção de conteúdos, contribuindo para o desenvolvimento da sociedade de informação e do conhecimento, tornando mais próximo o mundo digital.
Decorridos cerca de dez anos sobre essa primeira miragem, noticia o Semanário Económico (13/12/08) que o concurso de Televisão Digital Terrestre (TDT) para o projecto de televisão paga “pode voltar ao ponto de partida”: “Ao que o Semanário Económico apurou junto de fontes próximas do processo os argumentos do Tribunal Administrativo de Lisboa para recusar a invocação de interesse público por parte da Autoridade Nacional de Comunicações (Anacom) e da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) abre a porta a uma decisão favorável à queixa da Airplus.
Segundo os juristas contactados pelo Semanário Económico “se a juíza responsável pelo processo der razão aos suecos e considerar que há aspectos ilegais, o regulador não terá outra hipótese se não voltar à estaca zero no processo da TDT paga. Também aqui existem várias hipóteses, nomeadamente a constituição de um novo júri para avaliação das mesmas propostas - PT e Airplus - e até uma mais rebuscada de um novo concurso. Todas elas são morosas e passíveis de recurso para tribunal tanto por parte das empresas como dos reguladores.”
“A PT já ganhou o concurso da licença gratuita a transmissão da RTP1, RTP2, SIC e TVI mais um quinto canal a criar — e tem que assegurar a transmissão dos mesmos por via digital a partir de 31 de Agosto de 2009. Mas o projecto para a televisão paga - com um pacote de 47 a 50 canais -, que iria concorrer com as ofertas que existem hoje no mercado, volta a estar parado.”
Entretanto, Pedro Morais Leitão, Presidente da Confederação Portuguesa de Meios de Comunicação Social, escrevia no mesmo SE, do passado 13 de DEZ, um interessante texto, intitulado “Um parto de nove anos”:
“Faz este mês nove anos que analisei pela primeira vez o tema da Televisão Digital Terrestre. Desde então, discuti como enquadrá-lo com quatro administrações da ANACOM e participei na preparação de duas candidaturas - em 2001 e em 2008. Estes antecedentes permitem-me reagir sem grande aflição ao anúncio de mais um atraso para a TDT em Portugal, desta vez causado pelo Tribunal Administrativo de Lisboa, ao recusar a invocação de interesse público pela ANACOM para atribuir a licença de TDT paga à Portugal Telecom, em detrimento da concorrente sueca AirPlus. Ao longo deste duro “trabalho de parto”, aprendi que nenhuma empresa portuguesa sai prejudicada pelos atrasos na TDT. Para a RTP, SIC e TVI, a TDT duplica os custos no “simulcasting” e abre mais espaço para a concorrência. A PT, ZON e Cabovisão, a TDT traz um potencial concorrente, que a prazo poderá minar os preços da televisão paga.
Também tenho dúvidas se os portugueses perderão por o arranque da TDT se atrasar. O caso da Freeview no Reino Unido prova que o alargamento da oferta de canais gratuitos é o maior benefício que os telespectadores podem tirar da TDT e em Portugal a nova plataforma só nos virá trazer, para já, um novo canal gratuito.
O único genuíno prejudicado por a TDT se atrasar poderia ter sido a empresa que viu nela uma oportunidade de entrar no sector com um novo modelo de negócio - a AirPlus. Mas esta perdeu a licença para a PT e, neste momento, é ela própria a responsável por mais um atraso."
Duas semanas antes, Nuno Artur Silva, escrevia no mesmo semanário um outro artigo sobre o tema, não menos interessante: “O Quinto Canal”, (SE/Outlook, 29/11/08):
“Muito se tem falado e muito se vai continuar a falar do quinto canal, dividindo os argumentos entre os que são a favor e os que são contra. Mas o que me ocorre antes de mais pensar a propósito de mais um canal é a questão: o que é hoje um canal de televisão? E, sobretudo, o que vai ser em 2010 um canal de televisão.
Podemos, em relação ao futuro canal, pensar a sua definição em função do seu posicionamento face aos que já existem.
Partindo do princípio que o que faz sentido é o quinto canal ter uma programação diferenciada dos generalistas já existentes (SIC, TVI e RTP1), essa diferenciação deve ser pensada, desde logo, em função de uma audiência potencial que não se está a rever nesses canais.
Genericamente estamos a falar de uma audiência de jovens e jovens adultos A’s e B’s, e C’s aspirantes a B’s, ou seja, desde logo um universo de cerca de um milhão de pessoas, alvos de um universo vasto de anunciantes, que também não está a encontrar espaço nos canais existentes.
O problema é que esse é o público mais infiel que existe e que, cada vez mais, não se prende à programação sequencial de um canal de televisão, ou seja, não está sentado à espera que chegue a hora de determinado programa. E um público que vê “televisão” quando quer e à hora que quer, não só no próprio televisor, mas no ecrã do computador, do telemóvel ou de outros presentes e futuros gadgets. Por causa disto, será um erro pensar num quinto canal unicamente em função de uma grelha de emissão. Hoje um canal de televisão tem de ser pensado como uma plataforma múltipla de conteúdos, com estratégias cruzadas de produção e emissão, bem como de promoção e activação de eventos. Reduzir isso a grelhas é pensar no que foi a televisão e não no que vai ser.
Mas o pior de tudo ainda vai ser ver um quinto canal igual aos outros três: um canal de futebol, novelas e concursos, unicamente preocupado com o share do dia e a luta, a qualquer preço, pelas cada vez mais escassas audiências. Ou seja, mais uma oportunidade perdida para a renovação do paupérrimo panorama audiovisual português.”
O contencioso levantado pela Airplus TV face à decisão do júri nomeado pela Anacom, no âmbito do concurso público para atribuição de direitos de utilização de frequências e licenciamento de operador de distribuição para o serviço de Televisão Digital Terrestre por subscrição (multiplexers B a F), que atribuiu a licença à PT em Julho de 2008, não veio, inicialmente, interferir no decorrer do concurso para o 5º canal, a transmitir em aberto.
Quase simultaneamente com esse incidente de suspeição, baseado na ligação do presidente do júri de avaliação, Prof. Carlos Salema, ao Instituto de Telecomunicações, com o qual a própria PT tem parcerias, surgia o Despacho n.º 19184-A/2008, assinado pelo Ministro dos Assuntos Parlamentares, despacho que integra o “Projecto de regulamento do concurso público para o licenciamento de um serviço de programas televisivo de acesso não condicionado livre”, então colocado em consulta pública por 30 dias.
Tratava-se então de suscitar apreciação pública dos elementos constantes no referido projecto de regulamento. Importa então determo-nos um pouco sobre o enunciado desse projecto, no sentido de melhor compreendermos o que os poderes públicos pretendem do futuro terceiro canal privado entre os generalistas.
Mas, antes disso, talvez se imponha recuar uns anos na história, justamente à época da abertura da televisão à iniciativa privada, aquando do lançamento dos dois canais privados portugueses – SIC e TVI. Refiro-me à Resolução do Conselho de Ministros nº 49/90, assinada pelo então primeiro-ministro Cavaco Silva, que integrava em Anexo o “Regulamento do concurso público para o licenciamento dos 3º e 4º canais de televisão”. O espírito era então seleccionar “as duas candidaturas que apresentem as propostas mais vantajosas para o interesse público”, algo que seria vertido num clausulado qualitativamente envergonhado e ingénuo, que não ia muito mais além de algumas exigências de circunstância aos potenciais concorrentes aos novos canais - artº 5.1 – g). Pedia-se então uma “Proposta detalhada da actividade de televisão (…), com especial referência o número de horas de emissão semanal, discriminando os tempos de emissão (…), de ficção e informativos, a grelha de programação, os tempos de emissão destinados à produção própria, à nacional e à europeia, bem como a programas de língua portuguesa (…)”. E, no artº 11.2 d), a “capacidade do candidato para satisfazer a diversidade de interesses do público”. E pouco mais.
Agora a coisa é diferente. Olhando para o projecto de regulamento assinado por Augusto Santos Silva, bastante mais exigente do mesmo ponto de vista qualitativo e de conteúdos (procurando talvez a redenção da instituição Estado face à desregulação e arbítrio dos primeiros 15 anos de concorrência televisiva em Portugal), verifica-se, sobretudo nos artigos 13 (“Apreciação das candidaturas”) e Anexo 1 – “Critérios de avaliação”, que se está a ser, portuguesmente, mais papista que o Papa.
Apenas como exemplo, citem-se, do Anexo 1, as principais categorias dos critérios de avaliação: a) Contributo para a qualificação da oferta televisiva, com valoração de 50%; b) Contributo para a diversificação da oferta televisiva – valoração de 30%; e ainda os critérios c), d) e e) (valorações de 10, 5 e 5%, respectivamente) referentes à difusão de obras criativas europeias e em língua portuguesa, cumprimento anterior de normas legais e planos de formação e qualificação.
Uma leitura mais fina deste despacho, designadamente dos critérios de avaliação das candidaturas ao futuro 5º canal, permitiria concluir o seguinte: de tanto se querer mostrar “serviço” (que a prática reconverte em inconsequências), acabou-se por fazer “transbordar” critérios para níveis que mais parecem de contrato de concessão de canais de serviço público. E de tal maneira o fazem, que todas as dúvidas nos assaltam quando se verifica com toda a evidência que a própria programação actual da RTP1 só com um forte excesso de bondade, acompanhada do vigente autoconvencimento político, passaria nestes critérios.
Entretanto saíu mais um estudo do Obercom (
Maioria quer ser esclarecida sobre a TDT, DN, 14/12), que concluiu que "os portugueses ainda não têm uma opinião formada em relação à televisão digital. Quando questionados se o novo sistema, que terá de estar operacional em 2012, é melhor que o analógico, 52,8% dizem que não sabem ou não respondem. 64,5% gostavam que lhes explicassem o que é a televisão digital". E assim ficamos todos mais esclarecidos...
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