Écrire, ou diffuser par le livre, c'est s'impliquer dans le collectif, à un niveau où le désir ne peut plus directement être renvoyé comme tel; Lacan oppose avec justesse langage et parole: le premier sert à 'communiquer', mais forme un 'mur de langage', tandis que la parole cherche la réponse de l'Autre. (Catherine Clément)Sem dúvida nenhuma que a História, e em particular o conhecimento, seguiram, a cada momento, como que subordinados, na dependência mais estreita das mudanças fulcrais, das descontinuidades, que se têm operado no domínio das mediações simbólicas e tecnológicas. Ao nível da escrita, o aparecimento dos primeiros mitogramas, e, mais tarde os ideogramas sumero-acadianos, a evoluir já para uma transcrição fonética, conseguida com o alfabeto de consoantes fenício e pouco depois pelo alfabeto vocálico e consonântico grego, são, a par do desenvolvimento do universo tipográfico e, enfim, de todas as novas tecnologias aplicadas aos media no universo pós-tipográfico e na sociedade pós-industrial, momentos capitais dessa evolução.
A escrita mitográfica, primeiro de todos esses elos e as representações pictográficas de objectos que traduziam, no fundo, a palavra que a eles se aplicava, tinham aliás uma relação estreita com a própria oralidade. Leroi-Gourhan defendia que previamente aos conjuntos simbólicos de figuras tinha forçosamente existido um contexto oral com o qual estavam coordenados e a partir do qual reproduziam espacialmente os valores
[1] . Kristeva, por exemplo, defendia que inclusivamente dois níveis simbólicos aparentemente distantes, como a arte primitiva e a linguagem, se confundiam naquilo a que Leroi-Gourhan chamava «le couple intellectuel phonation-graphie».
De facto ele assim o assinala dizendo que o conteúdo das primeiras figurações parietais implicava já uma convenção de conceitos altamente organizados pela linguagem.
Do aparecimento dos primeiros grafismos para o aparecimento da escrita (em sentido restrito) é fundamental reter, por um lado, que há conjuntos simbólicos iniciais que não desaparecem e, por outro lado, que não se podem estabelecer cortes entre os processos pictográficos, ideogramáticos e fonéticos. O único corte a registar, se é que assim se pode dizer, no acto de fundação da escrita, é o momento em que a expressão gráfica se subordina completamente à expressão fonética pelo uso do dispositivo linear - processo a que Leroi-Gourhan chama a «conquista adquirida com a escrita» e que Deleuze considera, na reciprocidade de subordinação, como uma ruptura no próprio mundo da representação
[2] .
«É no sentido do restringimento das imagens para uma rigorosa linearização dos símbolos que a escrita tende. Possuindo o alfabeto, o pensamento clássico e moderno possui mais do que um meio de conservar na memória o resultado exacto das suas aquisições progressivas nos diferentes domínios da sua actividade; dispõe de um utensílio pelo qual o símbolo pensado se submete à mesma notação na palavra e no gesto. Esta unificação do processo expressivo implica a subordinação do grafismo à linguagem sonora, reduz o desperdício de símbolos que é ainda característico da escrita chinesa e corresponde ao mesmo processo seguido pelas técnicas no decurso da sua evolução»
[3] . Sem reconhecer a reciprocidade de subordinação entre a escrita e a voz fundadora, Gourhan capta assim o momento por excelência da instituição de um simbólico que já comporta em si toda a violência discriminante da origem, no acto de fundação da escrita.
É pois, este também, o acto de fundação do alfabeto vocálico e consonântico, que aqui nos interessa particularmente. Digamos que se atinge assim o ponto nodal de todo um processo evolutivo complexo que tem a sua origem próxima no simbolismo abstracto do sapiens e no dispositivo simbólico que tem na linguagem o seu instrumento principal. Este nível intermédio, antecipador directo do próprio dispositivo linear, assimila aliás todo um conjunto de fenómenos relativos à inserção espacio-temporal, sua possessão e ''domesticação" simbólica. Simultaneamente, como já referimos, é recusada a inumerabilidade do signo, o significante torna-se "despótico",
Apesar da relação estreita entre inscrição e oralidade não se pode dizer que haja uma prioridade do escrito sobre o vocal, ou, inversamente, do fonema sobre o grafema. Trata-se de uma questão sem sentido histórico, como referiu Kristeva
[4] . A interacção entre ambos é que se revela esclarecedora. Da mesma forma que é pertinente a complexa rede interactiva entre a escrita e o poder, também o é a que se estabelece entre a escrita e o ídolo, ou entre a escrita e o Estado. Para já convém sublinhar que não se trata de proceder a filiações evolucionistas mas antes a observar ritmos de descontinuidade, clivagens, no processo de interiorização e divulgação do alfabeto fonético. A haver uma filiação histórica só poderá ser no sentido de que o que está hoje ligado simbolicamente, esteve verosimilmente ligado outrora por uma identidade conceptual e linguística. Leroi-Gourhan diria, de outro modo, que a nossa cultura electrónica tem por suporte um aparelho fisiológico que data de há 40 mil anos: «Toda a evolução psico-motriz, desde os primeiros vertebrados, processou-se por adição de novos territórios, que não suprimiram a importância funcional dos precedentes, preservando-lhes o seu papel específico, cada vez mais enraizado nas funções superiores»
[5] .
De Leroi-Gourhan ficou entretanto em suspenso aquilo a que Deleuze/Guattari chamam o "paradoxo" que se desprende das suas análises: «As sociedades primitivas são orais não porque não tenham grafismo, mas, pelo contrário, porque o grafismo é aqui independente da voz, e marca nos corpos signos que respondem, reagem, à voz, mas são autónomos e não determinados por ela; pelo contrário, as civilizações bárbaras são escritas, não porque tenham perdido a voz mas porque o sistema gráfico perdeu a sua independência e as suas dimensões próprias, orientando-se pela voz, subordinando-se a ela, extraindo dela um fluxo abstracto desterritorializado que retém e faz ressoar no código linear da escrita»
[6] .
A questão fundamental é portanto a da subordinação da expressão gráfica à fonética, a instituição do significante-despótico e, com ele, a expressão acabada da escrita como primeiro fluxo desterritorializado na sua origem imperial.
Contrariando de alguma forma Lévi-Strauss, que defendia a hipótese da aparição súbita da linguagem («Les choses n'ont pas pu se mettre à signifiquer progressivement. A la suite d'une transformation dont l'étude ne relève pas des sciences sociales, mais de la biologie et de la physiologie, un passage s'est effectué d'un stade où rien n'avait un sens, à un autre où tout en possédait»)
[7] , Leroi-Gourhan
[8] defende, relativamente à escrita, que a sua emergência não se fez a partir do nada gráfico, não foi fortuita, da mesma forma que, por exemplo, a agricultura não existiu sem a intervenção de estádios de evolução anteriores; o seu conteúdo inicial não foi de igual modo fortuito. O símbolo gráfico pressupõe já em si uma linguagem humana. Inversamente, como referiu Derrida, qualquer linguagem supõe uma escrita originária. Tal como para o Estado, cujo acto de fundação deriva de um continuum e não propriamente de um momento zero, também para a linguagem e para a escrita o "momento zero" não existe. Esta uma questão que nos parece fundamental, até porque o seu cerne reside não nos mitos fundadores da origem, mas sim nas formas de variabilidade. O que interessa, pois, é a variação e não a origem da língua. Aproximamo-nos assim do conceito de grama em Derrida - a língua como movimento - o que permite exactamente a colocação de uma série de questões da ordem da política da língua e não exclusivamente da ordem do fonológico. Desaguamos nos Mille Plateaux
[9] : «Toutes les langues sont en variation continue immanente: ni synchronie, ni diachronie, mais asynchronie, chromatisme comme état véritable et continu de la langue. Pour une linguistique chromatique, qui donne au pragmatisme ses intensités et valeurs».
Finalmente, e legitimando-nos no continuum, poderíamos afirmar, com Deleuze: subordinando-se à voz, o grafismo subordina a voz. «A voz deixa de cantar para ditar, editar; a grafia deixa de dançar e de animar o corpo para se escrever nas tábuas, nas pedras, nos livros (...). O rebatimento da grafia sobre a voz fez com que da cadeia saltasse um objecto transcendente, voz muda de que toda a cadeia parece agora depender, e em relação à qual se lineariza. A subordinação do grafismo à voz induz uma voz fictícia das alturas que já não se exprime, inversamente, a não ser pelos signos da escrita que emite (revelação)»
[10] . Dito de outro modo, e ainda citando Deleuze/Guattari: «Em vez de um grafismo plurívoco com a forma do real, há uma bi-univocização que forma o transcendente de onde sai uma linearidade; em vez de signos não-significantes que compõem as redes duma cadeia territorial, há um significante despótico donde correm uniformemente todos os signos, num fluxo desterritorializado de escrita».
Tão importante, contudo, como analisar o contexto em que se verifica a subordinação da expressão gráfica à fonética é problematizar o sentido da emergência das diferentes mediações e a forma como elas se articulam com o poder. Da escrita mitográfica para a escrita alfabética, numa primeira análise, passamos de uma sociedade recolectora do Paleolítico para a economia de mercado que fundamenta a própria revolução urbana. Quer isto dizer que a escrita, a emergência da notação fonética, estaria à partida subordinada à evolução tecno-económica da civilização em que se insere, ou, pelo menos, interagindo entre o modo de comunicar e o modo de produzir dessa mesma civilização, ou, ainda, e um pouco mais longe, segundo Harold Innis, subordinando o próprio modo de produção.
Ora, sabendo-se que é com o fim do nomadismo recolector que surgem exactamente as economias produtora e de mercado, e, por acréscimo, se solidificam as sociedades em que se começa a notar a estratificação social, então concluir-se-ia que a escrita estaria também na base da própria emergência das sociedades com Estado. Por aqui se pode ir também ao encontro do que Jack Goody defende, a saber, que exactamente a variação dos modos de comunicar é tão determinante nas mudanças histórico-estruturais como a dos modos de produzir.
Avancemos, porém, com Lévi-Strauss
[11] que identifica a escrita como uma "técnica de opressão": «O único fenómeno que a tem fielmente acompanhado é a formação das cidades e dos impérios, isto é, a integração num sistema político de um número considerável de indivíduos e a sua hierarquização em castas e classes (...) ela parece favorecer a exploração dos homens, antes da sua iluminação. Se a minha hipótese for exacta, é necessário admitir que a função primária da publicação escrita foi a de facilitar a servidão. Percebe-se assim porque é que a luta contra o analfabetismo se confundia segundo Lévi-Strauss, com o reforço do controle dos cidadãos por parte do Estado.
Há, no entanto, algo a ressalvar relativamente à posição de Lévi-Strauss. Partindo do pressuposto de que há sempre uma função de subordinação a atravessar a função de comunicação, pode concluir-se que é ilusório procurar na escrita a origem de toda e qualquer hierarquia ou dominação
[12]. No limite poder-se-ia dizer que a própria relação significante/significado é já uma relação de subordinação
[13] . Ora, se a escrita não é realmente a origem de toda a hierarquia, isso quer dizer que formas de subordinação anteriores já tinham sido estabelecidas - e essas poderiam inclusive ser as de outras sociedades com Estado, ou pelo menos de sociedades hierarquizadas pelo regime de consanguinidade; não poderiam ser, de qualquer modo, sociedades sem língua. Ao privilegiar exactamente não o mito fundador da escrita, mas antes a sua função de continuum de dominação, Goody aproxima-se, claro, de Deleuze.
Num outro texto, Lévi-Strauss
[14] retoma a sua tese anterior, situando-a geográfica e politicamente, e considerando, de certa maneira, ao contrário de Jack Goody, que a escrita está de facto na origem de sociedades hierarquizadas: «Le seul phénomène qui semble toujours et partout lié à l'apparition de l'écriture, non pas seulement dans la Méditérrannée orientale mais dans la Chine proto-historique, et même dans les régions de l'Amérique oú des ébauches d'écriture étaient apparus avant la conquête, c'est la constitution de sociétés hierarchisées qui se trouvent composées de maîtres et d'esclaves, de sociétés utilisant une certaine partie de leur population pour travailler au profit de l'autre partie. Et quand nous regardons quels ont été les premiers usages de l'écriture, il semble bien que ces usages aient été d'abord ceux du pouvoir: inventaires, catalogues, recensements, lois et mandements». Esta é já de facto uma outra questão, implícita também em Goody quando defende o papel da escrita na mise-en-place de novos modos de dominação. Poder-se-ia prosseguir a partir do mot d' ordre contido na linguagem uma vez que, como refere Deleuze, o marcador de poder está já contido na própria linguagem, é-lhe uma função intrínseca.
McLuhan fala da agressividade de organização do modelo romano na irradiação do poder do centro para a periferia. Ele vê a formação e alargamento do Império assentes sobretudo nesse alicerce de poder que era a própria escrita. Aliás, cita o declíneo do Império Romano, no século V, não a partir das invasões bárbaras e da crise interna, mas sim do próprio sistema de comunicações entre o centro e a periferia. Justifica-o citando Seltman (Approach to Greek Art): «Os gregos não se aproveitaram tanto da alfabetização quanto os romanos com a sua alta organização de produção de papel e comércio de livros. Atribui-se ordinariamente ao declíneo dos suprimentos de papiro, no último período do Império Romano, o colapso dos impérios e do seu sistema de estradas. A estrada romana era, com efeito, em todos os sentidos, a estrada do papel»
[15] . Anotemos, no entanto, que para McLuhan a assimilação e interiorização da tecnologia do alfabeto fonético transfere o homem do mundo mágico da audição para o mundo neutro da visão, isto é, da "esfera tribal" para a "esfera civilizada".
A questão da função da escrita na variabilidade da dominação é ainda retomada por Goody: "L'acquisition du langage est à la base de tous les institutions sociales, de tout le comportement normatif»
[16] ; ou: «Il est clair que l'adoption de formes écrites de communication fut une condition intrinsèque du développement d'états plus étendus, de systèmes de governement plus impersonnels et plus abstraits»
[17] . De sublinhar, portanto, que a adopção de formas escritas de comunicação foi uma condição intrínseca e não «a» condição...
Passemos da questão do estabelecimento de linhagens hierárquicas e da emergência do Estado para a questão do poder - e de Goody para Pierre Clastres. Fundamentalmente de raiz cultural, a questão da natureza e origem do poder nas sociedades ditas arcaicas «terá o seu momento de fundação quando essas mesmas sociedades abandonam a economia de subsistência e descobrem a escrita, passando, no limite, de sociedades sem poder para sociedades com Estado, considerando-se, no entanto, que nenhuma classificação das sociedades empíricas nos pode esclarecer nem sobre a natureza do poder político nem sobre as circunstâncias do seu advento»
[18] . Se Lévi-Strauss defendia que o Estado surgia com a escrita, Clastres não o nega, embora reconheça que o poder político e o Estado propriamente dito não admitem um "grau zero". Clastres cita depois Lapierre para sublinhar que «o poder realiza-se numa relação social característica: comando-obediência», resultando daqui que as sociedades onde não se observa esta relação essencial são sociedades sem poder. Logo - o poder fundamentar-se-ia sim nessa relação essencial.
A questão que se levanta é a seguinte: se num acto ilocutório há sempre uma função de subordinação - e considerando-se que uma tal hierarquia é no fundo uma relação comando-obediência, aliás tal como Nietzsche defende - «é pela linguagem e não pelo trabalho que passa a relação do senhor e do escravo» ou como em Deleuze/Guattari: «A dominação exerce-se através e na transcendência do significante» (Anti-Édipo): ou ainda: «Na linguagem antes do império da ordenação sintáctica, há o império da ordem, do veredicto» (Mille Plateaux) -, então teríamos que concluir que não existem sociedades sem a relação de subordinação comando-obediência, sem poder, desde que se estabeleçam formas empíricas de comunicação.
Clastres volta atrás e pergunta, exactamente, se o poder político existe unicamente numa relação que se resolve numa relação de coerção (o ser do poder: a violência), isto é, se quando não se verifica, como vimos, a relação de coerção-violência, se deixa de poder falar de poder. Conclui que «não é evidente que coerção e subordinação constituam a essência do poder político em toda a parte e em todo o sempre»
[19] . Só aparentemente no entanto se trata de um paradoxo uma vez que Clastres introduz a forma não coerciva de poder, específica das sociedades sem língua. Portanto, em determinadas sociedades, formas não coercivas de poder antecipam-se à própria linguagem.
Esta interpretação divergirá, enfim, de Goody (e de Lévi-Strauss) que não se referem a um poder não-coercivo. Apontam, quer à subordinação hierárquica intrínseca à função de comunicação, quer às primeiras utilizações da escrita por parte do poder, respectivamente uma função de subordinação e uma estratégia de opressão. "Coerção" e "subordinação" constituem assim, no limite, a essência do acto de comunicação, e, enfim, do poder. «Induisant à croire que l'écriture survient au pouvoir (on peut en général, et on peut écrire à l'occasion), qu'elle peut s'allier à lui, le prolonger d'un complément ou le servir, Ia question laisse penser que l'écriture peut arriver au pouvoir, ou le pouvoir à l'écriture. Elle exclut d'avance qu'on identifie l'écriture comme pouvoir ou qu'on reconnaisse le pouvoir dès l'écriture. Elle auxiliarise, et vise donc à dissimuler que l'écriture et le pouvoir ne s' exercent jamais separément, si complexes que soient les lois, le régime ou les relais de leur collusion (...) L'écriture n'arrive pas au pouvoir. D'avance elle y est, elle en a et elle en est»
[20] .
No fundo, e ao contrário do que propõe Clastres, o que nos parece fundamental é não separar a questão da emergência do poder (e do político) da da linguagem. Há, com efeito, uma circularidade constante entre as diferentes mediações, tornando-se impossível a cristalização de qualquer prioridade ou sequência de uma relativamente à outra.
Parece-nos assim retomarem-se aqui posições já expressas no domínio exactamente da antropologia política. O evolucionismo de Morgan pressupunha uma passagem das sociedades sem Estado para as sociedades com Estado baseada quer na consanguinidade quer na territorialidade. Evans-Pritchard, por seu lado, é abertamente contra o "mito" fundador do Estado e prefere, tal como Clastres, uma omnitemporalidade do político assente no estabelecimento da ordem social (para Pritchard as linhagens seriam já uma espécie de linguagem que traduziria a própria estrutura social e política da sociedade).
A questão da origem do Estado é na perspectiva de Evans-Pritchard (e também de Fortes) uma questão meramente filosófica, aceitando, no entanto, que de sociedades muito pequenas onde a estrutura política se confunde com a estrutura de parentesco se tenha evoluído para sociedades com uma autoridade centralizada, um aparelho administrativo e instituições judiciais. Há ainda a reter a proposta de Southall
[21] em que se sugere um continuum entre as sociedades sem Estado e as sociedades com Estado, sem que de qualquer modo se esqueça que há um momento em que o rei-déspota mediatiza autonomamente grupos de interesses: «Os papéis políticos especializam-se à custa dos papéis rituais»
[22] .
Chegamos então ao momento da instauração da máquina despótica. O déspota regula os mecanismos de inscrição, as marcas na carne e coloca-se em filiação directa com Deus: «O corpo pleno como socius deixou de ser a terra, é agora o corpo do déspota ou o seu Deus (...) A máquina é que se modificou profundamente: em vez da máquina territoral, há a mega-máquina do Estado, pirâmide funcional em cujo cume está o déspota»
[23] .
Com ele, obviamente, o seu séquito, domesticador do espírito selvagem, agora bárbaro, autênticos agentes de desterritorialização, filiadores da inscrição imperial, à frente dos quais se encontram os escribas e os sacerdotes. Mas vejamos de que forma através do sacerdote se verifica a figuração da inscrição imperial. A partir de Warburton (Essai sur les hiéroglyphes des Egyptiens) finda a crença de que o padre egípcio inventou os hieróglifos com o único objectivo de «cacher leur science au vulgaire» (a vehicle for secrecy) foi de igual modo desmistificado o sentido de dissimulação imanente à origem da escrita, ao seu mito fundador. Retirado o effet de voile à origem da escrita e todo o efeito de enigma que o seu mito fundador circunscrevia há que reconhecer que é exactamente nesta errância da marca, nos sentidos contraditórios que antecedem o significante despótico, que ganha forma o poder do déspota. «Le vulgaire ne sait plus alors où donner de la tête, où trouver le maître-sens, le dépôt où la disposition du savoir»
[24] . Trata-se pois de um regime pré-significante onde impera a inscrição nómada, arbitrária, embora territorializada.
Quando o valor representativo do signo afecta o próprio espaço do domínio simbólico do poder, isto é, quando a marca é óbvia, rapidamente é substituída por signos abstractos que concedem, por acréscimo, ainda mais poder ao já de si arbitrário poder do déspota. É curioso notar que a própria invenção da escrita alfabética era atribuída no Egipto ao secretário do Rei - o verdadeiro hierofante - se bem que no domínio da mitologia fosse atribuída a Toth, o verdadeiro escriba dos deuses - o deus da sabedoria e da arte de escrever.
O secretário do Rei teria substituído finalmente as coisas por palavras, sobretudo com o objectivo de assegurar uma inequívoca circulação da informação ao nível do poder. Nesse aspecto a escrita fonética não deixava de constituir um "segredo de Estado", uma escrita de poder, tarefa facilitada dado tratar-se agora de um veículo invisível e não de um hieróglifo.
Particularmente evidente no Egipto onde, apesar de tudo, as marcas continuaram a prevalecer mesmo depois da emergência da escrita, é o facto do padre colocar a alternativa do alfabeto "sagrado" ao político, após, efectivamente, a radicação e ''democratização" da fonetização. Digamos que, descodificado um segredo, um novo código, novo enigma, deve surgir, sob pena de estabilização, ou mesmo redução, da dominação simbólica e, claro, da hegemonia da casta sacerdotal. Trata-se, no fundo, da função clerical de assegurar a expansão dos círculos de signos, isto é, da sua recapitalização.
Da mesma forma que no acto de fundação da escrita há um sistema de representação simbólica semelhante, extensível às grandes civilizações da Antiguidade, também se verifica, quer no Egipto, quer na China, quer na América, ainda que com variações ao nível hierárquico, a presença do Secretário-déspota, que pode ser o reth, ministro, o sábio, o escriba.
O alfabeto, no fundo, opera à transferência do poder da classe sacerdotal para a classe militar: «O alfabeto significou o poder, a autoridade e o controle das estruturas militares à distância. Quando combinado com o papiro, o alfabeto decretou o fim das burocracias templárias e dos monopólios sacerdotais do conhecimento e do poder»
[25] . Enquanto na posse da classe sacerdotal a escrita ainda não está em definitivo sobre-codificada, sofre portanto constantes recapitalizações - é esse pelo menos o caso do Egipto que conheceu os hieróglifos, a escrita hierática (que os gregos pensavam exactamente ser do uso exclusivo dos sacerdotes, embora fosse do uso laico) e a escrita demótica, ''popular''. Os hieróglifos, como já referimos, foram porém utilizados até ao século V, como escrita monumental, de revelação, sendo pois por excelência a escrita "sagrada"
[26] .
Todo o sistema primitivo passa a ser sobre-codificado pela formação imperial. Segundo Deleuze/Guattari é esta sobre-codificação que define precisamente a operação que constitui a essência do Estado. Mais: é o déspota que faz a escrita, é a formação imperial que faz do grafismo uma escrita propriamente dita. «Legislação, burocracia, contabilidade, cobrança de impostos, monopólio de Estado, justiça imperial, actividade dos funcionários, historiografia - tudo se inscreve no cortejo do déspota»
[27] .
Atendendo ao nomadismo ideográfico egípcio, o que o déspota faz, em última instância, não é a escrita, mas uma reescrita, dando constantemente a ver a máscara, reterritorializando o significante durante tanto tempo quanto o necessário por forma a não permitir a legibilidade do rosto, e portanto a manter o segredo. Este parece-nos ser de qualquer modo um caso excepcional, visto que na maior parte das civilizações verifica-se de facto uma transição nítida das castas sacerdotais para as militares com tudo o que isso implica ao nível da radicação do dispositivo linear - aquele que melhor servia às "estradas de papel", e aos grandes impérios militares e coloniais.
A ausência da escrita não servia tanto o arbítrio do déspota quanto a sua efectiva radicação, fosse ela pré-significante, ou significante-despótica. Alfabetizar era pois reforçar o poder sobre os alfabetizados, vinculando-os ao código hegemónico.
Finalmente, com a radicação do dispositivo linear é sobretudo o movimento de desterritorialização que impera. "Os signos da terra" são substituídos pelos "signos abstractos". Para trás ficam portanto os geo-grafismos, o território de ressonância da inscrição, do código e da marca primitiva. No novo regime "o significante é o signo que se tornou signo do signo, o signo despótico que substitui o signo territorial, que franqueou o limiar de desterritorialização; o significante não é mais do que o signo desterritorializado. O signo que se tornou letra. O desejo já nem se atreve a desejar, tornou-se desejo de desejo, desejo do desejo do déspota. A boca já não fala, bebe a letra. O olho já não vê, lê. O corpo não se deixa gravar como a terra, prostra-se em frente das gravuras do déspota, a outra terra, o novo corpo pleno»
[28] .
Fica então a questão do efeito de palimpsesto, enfim, como diria Deleuze, a questão de preexistirem máquinas imperiais relativamente às formações históricas tradicionais: «em última análise já não se sabe quem é, de facto, primeiro, nem se a máquina territorial de linhagens não pressupõe uma máquina despótica»
[29]Trata-se no fundo de inverter a relação entre a letra e o ídolo - o ídolo nasce da letra e não o contrário, como se pretendia inclusive na mitologia, fazendo derivar a escrita do próprio Toth
[30] . No limite há sempre uma escrita prévia, uma religião. «Pas de premier texte, pas même de surface vierge pour son inscription, et si le palimpseste exige la matière d'un support nu pour une archi-écriture, pas de palimpseste»
[31] .
A escrita, o poder e o Estado, encobrem, no fundo, a máquina despótica, gerando como que um mega-efeito de latência. Desvendado o enigma do palimpsesto, verificar-se-á deste ponto de vista que é a política que produz a língua, que o princípio constitutivo da linguagem não está na língua mas na máquina abstracta. É nela que provavelmente tudo se funda.
Voltando, porém, à questão da instauração da máquina despótica e tomando como referência os autores aqui mencionados, bem como outros, aos quais nos referiremos, vemos que a emergência da escrita altera de facto radicalmente todo o universo da oralidade, nomeadamente nos seguintes aspectos: operando à transição de universos audiotácteis e sagrados para universos profanos, onde impera a ordem visual (McLuhan e Mircea Eliade); operando à transição de universos mágicos e mitopoiéticos para universos onde emerge a razão, lógico-empíricos (Vernant e Cassirer); delineando a passagem de sociedades fechadas, que têm como que uma unidade biológica, para as nossas sociedades abertas que funcionam por meio de relações abstractas, tais como trocas, cooperação, alfabeto (Karl Popper, Deleuze/Guattari) enfim, levando à emergência de novos modos de dominação que correspondem, no fundo, à introdução de um novo modo de comunicação, instituindo assim um novo dispositivo de sujeição inerente à mega-máquina da formação imperial desconhecido das sociedades orais conforme defendem Jack Goody e nomeadamente Louis Quéré: «en modifiant le système de communication, l'écriture transforme non seulement le système socio-culturel mais aussi tout le mode de domination. Plus précisément, elle substitue une domination anonyme, abstraite et décontextualisée, à une domination médiatisée par des individus (anciens, prêtes, propriétaires fonciers...) et par le groupe de voisinage (controle par la convenance). L'écrit est en effet corrélatif non seulement de la constitution d'un appareil de domination bureaucratique (possibilité d'enregistrement et de comptabilisation) mais aussi de l'avènement de l'échange marchand et de la Loi comme moyens de régulation dominants»
[32] .
Notas:
[1] André Leroi-Gourhan, O Gesto e a Palavra, Vol. I, «Técnica e Linguagem», Lisboa, Edições 70, s/d, p.197. Ver também, do mesmo autor, L'art pariétal - Langage de la préhistoire, Grenoble, ed. Jerôme Millon, 1992.
[2] Gilles Deleuze e Felix Guattari, O anti-édipo, Lisboa, Assírio e Alvim, s/d., p.162.
[3] André Leroi-Gourhan, O Gesto e a Palavra, Vol I, p. 210.
[4] Julia Kristeva, Le langage, cet inconnu, Paris, Éditions du Seuil, 1981, p. 29.
[5] Leroi-Gourhan, O Gesto e a Palavra, Vol II, «Memória e Ritmos», Lisboa, Edições 70, 1983, p. 221.
[6] Deleuze/Guattari, O anti-édipo, p. 161.
[7] Citado por Julia Kristeva, Le langage cet inconnu, p. 52.
[8] Leroi-Gourhan, O Gesto e a Palavra, Vol I, p. 201.
[9] Deleuze/Guattari, Mille Plateaux, Paris, Éditions de Minuit, 1980, p. 123. No que concerne à questão da linguagem ver também Robert Lafont, Anthropologie de l'écriture, Paris, CGP, 1984, p. 11: «A questão da origem da linguagem e da sua data de emergência no processo de hominização da espécie é simultaneamente inelutável (é central na antropologia) e, à falta de documentos, indecidível. O mais simples e menos arriscado é crer na única referência existente de uma actividade humana que poderá se inscrever em linha evolutiva na órbita da lingugem: o traço como antepassado da escrita».
[10] Deleuze/Guattari, O anti-édipo, p. 164.
[11] Claude Lévi-Strauss, Tristes trópicos, Lisboa, Edições 70, 1981, pp. 295-296.
[12] Ver designadamente Jack Goody, La raison graphique, Paris, Éditions de Minuit, 1979.
[13] Deluze/Guattari, O anti-édipo, p. 193.
[14] Georges Charbonnier, Entretiens avec Claude Lévi-Strauss, Paris UGE, 1971, p.32.
[15] Marshall McLuhan, A Galáxia de Gutenberg, São Paulo, CEN, 1977, p.97.
[16] Jack Goody, La raison graphique, Paris, Éditions de Minuit, 1979, p. 46. Ver ainda do mesmo autor «Alfabetos y escritura», Historia de la Comunicación, Raymond Williams (ed.), Barcelona, Bosch Comunicación, 1992.
[17] Goody, La raison graphique, p. 56.
[18] Pierre Clastres, A sociedade contra o Estado, Porto, Afrontamento, 1975, p.9.
[19] Clastres, op. cit., p. 11
[20] Jacques Derrida, «Scribble», Essai sur les hiéroglyphes des Égyptiens de William Warburton, Paris, Aubier-Flammarion, 1978.
[21] Cf. Marc Abélès, Poder, Sociedade, Simbólico, Lisboa, A Regra do Jogo, 1977.
[22] Abélès, op. cit., p. 34.
[23] O anti-édipo, p. 155.
[24] Jacques Derrida, «Scribble», p. 32.
[25] Marshall McLuhan, Os meios de comunicação como extensões do homem, São Paulo, Cultrix, 1979, p. 101.
[26] Marcel Cohen, A escrita, Lisboa, Europa-América, s/d., pp. 36 e ss.
[27] Deleuze/Guattari, O anti-édipo, p. 161.
[28] Deleuze/Guattari, op. cit., p. 164.
[29] Ibid., p. 175.
[30] Patrick Tort, «Transfigurations», Essai sur les hiéroglyphes des Égyptiens de William Warburton, Paris, Aubier-Flammarion, 1978.
[31] Jacques Derrida, «Scribble», op. cit., p.42.
[32] Louis Quéré, Des miroirs équivoques - aux origines de la communication moderne, Paris, Aubier-Montaigne, 1982, pp. 124-125.