19.9.04

Para um debate em torno do dispositivo televisivo (*)

Numa introdução à temática da ‘comunicação audiovisual’, importa contextualizar a emergência da Televisão no âmbito do dispositivo histórico-cultural e comunicacional do século passado e procurar compreender esse fenómeno no plano societal, no contexto jurídico-político e cultural do tempo.

Compreender, por exemplo, os mecanismos de apropriação dos media por parte dos diversos campos de dominação, transformando-os, por vezes em máquinas de propaganda, ou em aparelhos ideológicos de poder, através da imposição de lógicas de consenso social, cultural e político. Explicitar os contextos mass-mediáticos, quer enquanto processo de enunciação subsumido num fluxo unívoco de comunicação, quer enquanto fluxo bidireccional em transição para um dispositivo matricial ponto-a-ponto, interactivo.

Pensar, enfim, as relações entre a televisão e a sociedade, sistema complexo ao qual a investigação científica não tem dado a devida importância, apesar de se tratar de uma complexa temática, porventura decisiva para uma percepção mais clara da contemporaneidade.

Ora é sabido que um meio de comunicação, isto é, os seus principais actores, organizam e enunciam o seu discurso em função das relações de poder e das representações que se configuram num determinado campo social e num contexto epocal. No sentido de se poder pensar o modo como se constitui o sentido dessa dinâmica discursiva, importa conhecer e compreender a noção de dispositivo mediático, nas suas diferentes dimensões, que do ponto de vista do emissor – através das dimensões técnica, instrumental e performativa –, quer do ponto de vista da recepção, percebendo-se a lógica de inflexão de modelos comunicacionais e dos respectivos campos de mediação a partir da emergência do conceito de audimetria e das práticas da recepção específicas atinentes ao campo do telespectador.

Repare-se que as práticas culturais dos portugueses, nomeadamente no que diz respeito ao consumo de televisão têm vindo a mudar nos últimos anos. Desde a chegada da televisão por cabo, foram conquistados cerca de três milhões de telespectadores à televisão hertziana, boa parte dos quais tornaram-se progressivamente telespectadores de canais temáticos, nas suas diferentes tipologias.

Claro que uma visão actualizada do dispositivo televisivo implica problematizar a própria inflexão tecnológica do presente e nessa perspectiva implica Introduzir as problemáticas da evolução das linguagens e dos conteúdos específicos da transição do ambiente analógico para o novo contexto digital.

Vejamos para já a anterior lógica de difusão ponto-multiponto, específica do modelo tradicional de televisão generalista, que ainda se mantém, apesar da cada vez maior fragmentação do audiovisual. Neste modelo de ‘pirâmide’ a comunicação é unívoca, integra uma complexa rede discursiva vinculante, legitimadora, uma nova ordem simbólica, de certa forma dissuasora, unilateral, estabelecendo-se assim um modelo contratual, no fundo, uma ordem política e um quadro normativo-cultural, com impacto também no plano dos comportamentos e das condutas.

Poder-se-ia referir aqui o texto clássico de Casetti e Odin, onde se problematiza a oposição entre Paleo e Neo televisão. Para estes autores, a televisão foi desde logo apropriada por uma experiência de comunicação pedagógica, processo que se configurou, nas primeiras décadas da sua história, num ‘contrato’ com o telespectador, transformando-se assim, claramente a televisão como uma ‘empresa’ de escolarização alargada o todo o social.

A televisão prolongava assim a família e a escola, era uma sua extensão, sendo que nessa altura ‘ver TV’ era como que um respeitável ‘acto social’ em que todos queriam estar comprometidos. Nesta fase a emissão é segmentada de forma muito óbvia nos diferentes géneros tradicionais e a grelha, o velho «mapa-tipo» tem de facto um papel estruturante na emissão.

Mas a esta lógica específica do início da televisão, designadamente na Europa, rompe com o anterior modelo relacional, ao qual sucede um modelo de ‘contacto’, caracterizado por um novo modo de estruturação do fluxo e pelo esbatimento do fluxo contínuo clássico, configurado no estereótipo dos fluxos de programação, dos alinhamentos, das formas de representação do real. É como se o mundo se tornasse fábula. O discurso televisivo conduz ao espectáculo de ritualização do acontecimento e à efabulação sempre violenta do real. Um modelo que se manifesta através da criação de uma cultura‑mosaico e de um contrato de visibilidade e de legitimação com o telespectador.

Mas é também o tempo da emergência de processos de interactividade entre o emissor e o receptor. A relação com o telespectador torna-se mais próxima, mais familiar e mais convivial. Apesar disso, é claro que o tipo de representação do mundo que a televisão dá a ver é ainda assim limitada pelo dispositivo clássico, sendo, em geral, mais conservadora do que as próprias possibilidades técnico-discursivas do meio permitem.

A televisão generalista confronta-se agora com os seus híbridos interactivos, sendo este claramente um sintoma de um novo ciclo em relação ao qual, aliás, quer os produtores de conteúdos, quer o campo da recepção, se estão a adaptar progressivamente, ainda que a formatação de conteúdos no domínio do multimédia interactivo tenha aqui uma dificuldade maior. De facto, a era digital e a pós-televisão assentam num novo modelo de comunicação audiovisual que nos fará progressivamente esquecer esse primeiro modelo unívoco e, de certa maneira, autista, da era analógica.

Nesta mesa procurar-se-á então, nas diferentes investigações, dar um enquadramento crítico, reflexivo, epistemológico e ainda jurídico-político às práticas, discursos e procedimentos específicos do objecto televisivo, quer em referência aos conteúdos, quer no plano histórico e jurídico, configurando e problematizando as tecnodiscursividades, a instrumentalidade, a performatividade, as estratégias e os contextos de enunciação, e, enfim, as políticas públicas.

Pretende-se assim aprofundar neste debate e nas intervenções da mesa de Comunicação Audiovisual algumas questões em torno de dispositivos de informação de programação da era da televisão clássica, das respectivas mediações simbólicas, discursivas, tecnológicas, históricas e jurídico-políticas. Do mesmo modo se procurará fazer a análise de contextos, práticas e regularidades discursivas e das condições de produção histórica do real comunicacional, não só no plano de agenciamento ‘televisivo’ do mundo, como também da lei dos sistemas que orientam o aparecimento de enunciados como acontecimentos singulares no campo da videocultura televisiva.

A analítica destes ‘fragmentos’ do fluxo televisivo, claramente mais específicos da neo-televisão, é extensiva à questão dos modelos televisivos, do serviço público de televisão, passa pelo âmbito sociológico, onde se podem evidenciar designadamente tópicos relativos a uma estética e uma política da recepção, sendo que aqui importa cuidar da interpretação de dados quantitativos através de uma estratégia de investigação onde os estudos qualitativos possam esclarecer o que a audimetria esconde, na sua lógica determinada pelas dinâmicas de mercado e comercial.

Na abordagem das diferentes séries e «acontecimentos-monumentos», específicos da narrativa televisiva e bem assim das modalidades enunciativas e fluxos que se estruturam na emissão de ar, procurar-se-á problematizar a emergência de lógicas de mediação do dispositivo, designadamente a partir da configuração de campos, simbólicos, culturais e políticos criados a partir da interacção entre a televisão e a sua recepção.

Por fim, refira-se que a análise acima referida das relações complexas entre televisão e sociedade só poderá ter as suas consequências através de uma analítica porfiada, arqueológica, do contexto, discursos, modo de recepção e condições de produção do sentido do objecto televisivo. Essa analítica é naturalmente enquadrada também pelas lógicas públicas e privadas e ainda pela questão da regulação sectorial, no âmbito da actual dualidade entre serviço público e mercado, para além naturalmente da fragmentação do modelo audiovisual e da multiplicidade da oferta, com base nos novos dispositivos tecnológicos interactivos.


(*) Texto de Francisco Rui Cádima apresentado na abertura da mesa de Comunicação Audiovisual no III Congresso da SOPCOM - Congresso Ibérico, Universidade da Beira Interior, Covilhã, Abril de 2004.


Referências Bibliográficas

CÁDIMA, Francisco Rui
- «Televisão, serviço público e qualidade», Observatório, nº 6, Obercom, Lisboa, Novembro de 2002.
-,«Proto e pós-televisão. Adorno, Bourdieu e os outros – ou na pista da ‘Qualimetria’», Revista de Comunicação e Linguagens, nº 30, CECL e Relógio de Água, Lisboa, 2001.
-, O Fenómeno Televisivo, Círculo de Leitores, Lisboa, 1995.

CASETTI, Francesco e ODIN, Roger,
«De la Paléo à la néo-télévision. Approche sémio-pragmatique», Communications, nº 51, Paris,1990.

CASETTI, Francesco e CHIO, Federico di
Análisis de la Televisión - Instrumentos, Métodos y Prácticas de Investigación, Paidós, Barcelona, 1999.

12.9.04

bio@net

«Nunca te enamores do teu próprio Zeppelin»Umberto Eco

As grandes áreas de crescimento mundial no sector das tecnologias têm sido a Internet, a convergência TMT e as comunicações móveis, que são não só grandes mercados, mas, fundamentalmente, áreas estratégicas para o desenvolvimento e para a cidadania.

O facto é que se a Net permite o acesso a conteúdos da rede através do telefone móvel, a maior parte dos utilizadores ainda não integrou o novo conceito na sua prática quotidiana.

A situação evoluiu desde há uns anos atrás, mas mantém-se a dificuldade de massificação daquela ligação. Veja-se que num estudo «global» realizado em 2001 pela Accenture, dos cerca de 3.000 inquiridos nos Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha, Finlândia e Japão, apenas 15 por cento dos que possuíam telefone móvel o utilizavam para aceder à Internet. Menos de um por cento dos inquiridos efectuava compras on-line a partir dos seus telefones móveis.

Certo é que o acesso móvel à Internet está crescer. A Forrester estimava, numa sua projecção, que 54 por cento dos europeus terão acesso à Net através do telemóvel já em 2005, o que, a verificar-se, constitui um importante avanço.

A convergência nas tecnologias da informação e das telecomunicações marca indelevelmente a realidade do sector. Nesta área, em particular, o número de telefones fixos passou a ser menor do que o número de telemóveis, a nível do planeta (cerca de mil milhões de unidades cada), o que vem acentuar a importância do comércio electrónico móvel.

Cada vez mais se percebe que só uma pequena percentagem de um «móvel» de terceira geração se parecerá com aquilo a que no passado chamávamos telemóvel. O escritor espanhol Juan José Millás glosava esta possibilidade «neuronal» da tecnologia da seguinte maneira: «(...) la familia, en lugar de llevarte flores al cementerio te llevará pilas al móvil, para que continúes latiendo eternamente en el interior de sus circuitos impresos».

Tal como a publicidade endereçada, interactiva e ligada a bases de dados, os EPG’s – Electronic Program Guides constituirão também um dos eixos centrais que farão convergir televisão e internet, sabendo-se que o custo de transferência de um terabite (1000 gigabites) de dados pode cair para apenas alguns dólares.

Mas como será, no fundo, a nova web? Falou-se no sistema GRID, preparado por físicos de partículas, um sistema com uma capacidade de computação, de armazenamento e de transmissão de dados superior em várias ordens de magnitude à actual Internet, milhões de vezes mais potente que a actual, suportado pelo superacelerador de partículas LHC.

De facto, é cada vez mais plausível a hipótese de que a Net possa vir a estar tecida numa mesma base matemática, isto é, segundo os princípios organizativos universais da própria natureza, das redes de moléculas de uma célula, ou mesmo de espécies, num ecossistema ou ainda inclusivamente de pessoas num grupo social. Actualmente, pensa-se que as verdadeiras redes distam muito de ser aleatórias, isto é, apresentam um elevado grau de ordem e universalidade facto que, de certa maneira, foi inesperado para a ciência.

De certa forma, estas redes, ao se constituírem, organizam-se de tal modo que a maioria do seus nós tem muito poucas conexões, mas um número muito pequeno de nós – hubs – tem um elevado número de conexões.

Este tipo de estrutura pode ajudar a explicar que redes tão diversas como os metabolismos, os ecossistemas ou a própria Internet sejam geralmente muito estáveis e resistentes, ainda que propensas a ocasionais colapsos catastróficos.

Dado que a maioria dos nós (moléculas, espécies, servidores de PC) têm um número reduzido de conexões, pouco depende efectivamente deles: pode eliminar-se uma grande fracção que a rede se manterá. Mas se se eliminam uns quantos nós com um grande número de conexões todo o sistema virá abaixo.

Outro exemplo na reflexão das sinergias com as redes é o das nanotecnologias. A nanotecnologia «trabalha» o mundo e as coisas a uma escala um milhão de vezes menor que um milímetro, o nano.

Ciência e tecnologia vêem assim facilitada a exploração dos limites de redução física dos dispositivos mecânicos. A nanotecnologia permite criar dispositivos complexos do tamanho de moléculas e nanomáquinas tão pequenas que poderão interagir directamente com o corpo humano no plano da bio-comunicação.

Dentro das possíveis aplicações para a nanotecnologia inclui-se a possibilidade de introduzir dispositivos de investigação em miniatura na circulação sanguínea ou a de armazenar bibliotecas inteiras em componentes com cerca de um centímetro.

Daí à criação de micro sistemas neuronais de raíz tecnológica vai um pequeno passo, que pode, muito naturalmente, ser o passo para o abismo.

Como evitar então esse abismo? A questão é que aqui poderá também residir a transição do corpo biológico para o «corpo-terminal», bio-maquínico.

Para Dan Tapscott, a hierarquia e a economia industriais estão a dar lugar às organizações e às estruturas económicas moleculares (...), a unidade de base da nova economia digital é o indivíduo. Trata-se também de uma atomização que se configura ainda num novo conceito «virtual» do trabalho, agora mercadoria apátrida e volátil que favorece uma nova divisão internacional do trabalho. Empresa virtual, trabalho à distância, corpo_sujeito_ nómada - «corpo-terminal»…

É certo, como defendia Lyotard, que uma nova eficácia da performatividade dos enunciados deriva da utilização das máquinas informacionais, bem como uma nova ordem de legitimacão. São os sistemas e os programas mais eficazes a 'ter razão’. Em acréscimo, é o próprio regime da tecnociência que se configura como auto-regulador de tecno-desejos e de tecno-imaginários à margem de eventuais solicitações do humano. A razão moderna e os novos tecno-imaginários perdem-se assim nesse espaço disseminado e é justamente nessa zona de sombra e de incredulidade que o escândalo ontológico poderá ser total.

Ora, se estamos, aparentemente, perante essa realidade modelizada pelos tecno-imaginários, e se a sua resultante se configura sobretudo nas novas estratégias informacionais, será então a altura de nos confrontarmos com esse ruído, essa sobreinformação que é uma crise de solidariedade entre o sentido e o ser.

Isto é – e para voltarmos ao essencial: se o «continente», a arquitectura da rede (da Net), a aproxima dos sistemas complexos da própria natureza, que estranho paradoxo poderá fazer com que o seu «conteúdo» a afaste cada vez mais dos mundos da vida das comunidades virtuais? É como se o sistema da vida entrasse numa lógica hipertélica irreversível e radical, deixando-se contaminar por um qualquer vírus letal.

Como dizia Manuel Castells, o poder consiste hoje em criar e impor códigos de informação. A realidade, essa, parece não contar. E a realidade aqui é, sem dúvida, a vida, os mundos da vida.

5.9.04

Videocultura, Memória e Esquecimento

A relação dos media com o mundo ‑ e designadamente a relação específica com a "máquina" televisiva - ­é, no seu complexo campo reticular de produção de saber e fazer, simultaneamente desestabilizadora e apaziguadora, na medida em que a prosa precária que a televisão induz, emerge ora como momento fundador de visibilidade, ora como instrumento de verdade do qual não devem ser iludidos os seus dispositivos, os seus poderes e os seus limites.
A televisão é, por excelência, uma máquina produtora de redundância, recicla continuamente o seu dispositivo e organiza no seu fluxo discursivo um novo espaço‑tempo, uma visão do mundo generalista e compósita.
Existe, por assim dizer, uma acção socializante do imaginário televisivo que se configura nos modelos estabilizados das suas "grelhas" de programação e das suas formas de representação do mundo, as quais conduzem, grosso modo, ao espectáculo de ritualização da cultura e da informação. Sintoma, cujo princípio de realidade se manifesta sem se autodesignar, isto é, trabalha num registo de ilusão naturalista e de criação de efeitos de legitimação tendo por horizonte de conhecimento o seu contrato de visibilidade e de credibilidade com o telespectador, em suma, um horizonte de acontecimento.
Daí, o dispositivo televisivo parte para a construção do seu puzzle ‑ ou da sua "cultura‑mosaico", como dizia Abraham Moles. Toda a sua complexa organização discursiva, o seu dispositivo logotécnico, tem, como primeira acção do seu interface ‑ do seu écran de univocidades -, solicitar a capacidade de identificação do telespectador enquanto parte da audiência, envolvendo‑o num fluxo de tempo sem memória e imaterial, pelo carácter efémero de materialização visual instantânea das imagens que difunde, estratégia de facto redutora, designadamente quando se trata de um media com o impacto e o poder de veicular saber que a televisão, objectivamente, tem.
Imagens em perda, portanto, écrans‑espectáculo do esquecimento, écran de superfícies múltiplas, ambos adstritos ao modelo tecnodiscursivo unívoco da televisão clássica, onde, em acréscimo, a função hegemónica é, em regra, a do "divertimento". Dispositivo tanto mais complexo quanto a máquina televisiva se torna assim, de alguma forma, um "a priori" da consciência moderna.
Pode por isso dizer‑se que a televisão generalista clássica perdeu o sentido da história, isto é, o seu dispositivo evolui de tal forma ao ritmo do "quotidiano", como espelho de uma realidade prosaica, vulgar, que, com alguma perversidade, o registo "telereal" se faz, nela, a uma velocidade directamente proporcional à fugacidade da ordem natural das coisas, do tempo, e do mundo...
A actual sociedade de comunicação, sobretudo com o auxílio da panóplia multimedia de fim de século, constituiu‑se em "sociedade transparente", embora o tenha conseguido numa espécie de duplicação do mundo, provocando assim a erosão do tradicional ‑ ou convencional - "princípio de realidade". O mundo "verdadeiro" torna‑se, então, fábula... E se a história pode também ser interpretada como um inventário do esquecimento, a televisão, mais do que inventariar a figura da raridade, no sentido de Foucault, faz, por paradoxal que pareça, ascender à "dignidade" do seu écran, apenas determinados factos, em preterição de todos os outros.
Produz, por assim dizer, a grande amnésia do tempo. Mas também aqui nada de fundamentalmente novo acontece, isto é, a perda de memória e o esquecimento já se haviam transformado nos traços estruturais da sociedade contemporânea...
Para além da "materialização" do mundo no seu dispositivo logotécnico - técnico e discursivo -, a televisão tem essa faculdade particular de produzir e reciclar as identidades colectivas, de criar um dispositivo simbólico partilhado ‑ uma "vida simbólica comum" 1, o que, em última instância, pode ser visto como uma estratégia de agenciamento de conteúdos e de saberes à imagem do que acontecia com a dependência dos meios de comunicação pública da tutela jurídico‑administrativa do Estado.
É essa filiação histórica e arqueológica que nos permitirá caracterizar o registo inacabado do contexto da emergência, designadamente, do dispositivo televisivo e da ordem do mundo que este institui ‑ quantas vezes também em ruptura com as aquisições e a experiência de um tempo passado.
Diremos, em síntese, que procuramos estabelecer uma arqueologia das estratégias e práticas emergentes da complexa rede interactiva entre os acontecimentos, os pseudo‑acontecimentos e a agenda dos media, o protocolo e as suas mediatizações, entre estes e os seus enquadramentos jurídicos, institucionais e políticos, não excluindo as respectivas máquinas censurantes, persecutórias e propagandísticas. Por outro lado, pretendemos apontar o modo de configuração dessa rede como programa, e procurar, finalmente, a partir da identificação dos seus regimes de enunciação, de transparência e de opacidade, dos seus efeitos de real, e função estratégica da construção do "espaço‑tempo" dominante do dispositivo.
O princípio de realidade emergente, o regime de visibilidade e o contrato de credibilidade que o discurso televisivo, designadamente, institui, trabalham, em conjunto, um registo de real que funciona enquanto telerealidade ‑ uma realidade criada por imagens electrónicas, difundidas por uma máquina e por um dispositivo que é um "intensificador de poder" 2 . Tal como no panopticon de Bentham, esta nova máquina catódica dissocia a dualidade ver/ser visto em novas modalidades, através de novos encadeamentos, nos quais o "ser visto" ‑ tudo o que está virtualmente disponível para a "mise‑en‑ordre" da máquina ‑ emerge, no essencial, enquanto acontecimento, embora no plano absolutamente redutor da política e da catástrofe - da actualidade trágica, da pequena política e do fait-divers dos telejornais.
Diferentes ordens de imagens televisivas instituem diferentes regimes, ou contratos de visibilidade com o telespectador, incidindo ora numa "moral do ver", quando o que é suposto passar é a credibilidade das imagens do desempenho ou da representação política, por exemplo, ou numa pregnância do olhar quando irrompe, com o directo, um signo do real, ou uma imagem-pulsação, ou se dissolve ‑ ou quebra ‑, a lógica de eficácia comercial e consensual do media.
Vejamos um pouco mais para além desses parâmetros essenciais do dispositivo televisivo que estamos a referir. Analisemos concretamente o suporte onde esta lógica dual se institui, o écran imaterial a que Preikschat chamou "palimpsesto electrónico" e através do qual emergem as imagens do mundo, agora convertidas ao regime catódico, imagens das quais nascem imagens, num sistema de hipertelia definitivamente em crise referencial. Mas imagens também que se constituem em fundo de referência das esferas pública e privada dos campos sociais mais directamente dependentes do dispositivo, desse interface‑écran que transforma o antigo modo de ver - sequencial, politópico, nomádico -, em figura, precisamente em matriz centrada, em écran catódico, justamente, de onde procede exponencialmente a infinitude de combinações de pixels.
E é, sem dúvida, neste regime de visibilidade e de temporalidade, em que as imagens se reproduzem em séries 3, e em que a banalização dos efeitos surge como estratégia de fidelização, que os jogos formais tendem de facto a substituir‑se aos jogos de sentido. A imagem entra então numa era de insignificância, esvaziada de sentido, numa espiral de esquecimento em que também cada imagem apenas remete para si própria. E, de facto, repetição e esquecimento completam‑se: a disponibilidade dos telespectadores para se tornarem cativos deste regime pode ser vista, em primeiro lugar, do ponto de vista da máquina de organização televisiva, como um dispositivo contra o tempo e o correr do tempo, e do ponto de vista do destinatário, como "paragem" do corpo‑receptador 4, enfim, como um écran­‑interface sem sentido nem memória ‑ afinal a estratégia natural para que cada série pareça sempre diferente. Mas no fundo ela subsume no seio da programação a noção de grelha, que será, por assim dizer, a "hiper‑série".
Referíamo-nos atrás ao consenso como memória, isto é, à inscrição dos consensos como forma de memória do sujeito reflexivo perante o écran catódico, ele próprio interface neutralizador de todas as distâncias e da próprio temporalidade. E aqui radica exactamente um novo parâmetro fundamental na caracterização do dispositivo televisivo clássico: no écran esbate‑se o tempo e o espaço, havendo como que uma incompatibilidade radical entre a "culture de flot" e a melancolia por uma imagem.
Dizia Deleuze que é, pelo contrário, a totalidade das imagens que se fixa em nós... E seria nesse regime excessivo de desvitalização das imagens ‑ regime que tem percorrido uma espiral desde o início da televisão, num processo progressivo, emergente desse palimpsesto electrónico que materializa em telerealidade todas as razões do mundo, todos os seus acontecimentos ‑, que é desafiado cada vez mais o dispositivo de ‘contacto’ passando portanto, aparentemente, a um dispositivo de ‘contrato’, em constante actualização, expondo‑se assim a crise do próprio dispositivo e bem assim a crise da coesão e da produção dos consensos.
O écran catódico unívoco funciona, também, como neutralizador das especificidades dos processos discursivos que lhe são exteriores, na medida em que ao integrá‑los no seu fluxo homogeneizante, a televisão molda‑os ao seu dispositivo enunciador através de um complexo processo de adequação à sua lógica tecnodiscursiva. Por outro lado, funciona como neutralizador das condições ‑ ainda técnicas e discursivas ‑ de retenção das imagens e dos sons, de registo, não só devido à diversidade da teia enunciativa e da sua lógica de fragmentação/recomposição, como também devido à essência do seu dispositivo cujo modo de desvelamento é deixar aparecer o que, de seguida, inevitavelmente se esquece; sob o ponto de vista técnico trata‑se sobretudo da questão da efemeridade da conservação da imagem electrónica, e portanto da conservação das suas próprias imagens, como se de uma técnica "erosiva" se tratasse...
Este novo espaço‑tempo emergente, que é finalmente caracterizado por um novo tempo dado pela "velocidade audiovisual" 5 suplanta em definitivo, através dessa errância logotécnica, a realidade da presença do espaço real, dos objectos e dos lugares.
Nietzsche dizia que o homem se constituía por uma faculdade activa de esquecimento, por uma espécie de recalcamento da memória biológica: a mnemotécnica, com a emergência do alfabeto, teria sido assim o sistema da crueldade por excelência, um "alfabeto terrível", a organização que traça signos no próprio corpo e lhe dá uma memória de palavras e imagens, esse "inventário domesticador" ‑ o que, em última instância, poderá explicar porventura a natureza desse "pecado" originário ‑ uma convenção, um contrato, nos quais radica a reemergência da faculdade da indiferença e do esquecimento.
Instituída assim uma amnésia do tempo e da história, denegado o acontecimento e as singularidades, através de um saber circunscrito ao "pequeno mundo" da política e da catástrofe, resta a memória algorítmica, ou a "poiética" de uma memória ‑ Jean‑Luc Godard lembrava que se a televisão produzia de facto e esquecimento, o cinema havia criado os seus "souvenirs"... Mas, dir‑se‑ia então, é no espaço do esquecimento que novos holocaustos aguardam a sua vez.
Tal como, no écran catódico, em pleno processo vertiginoso, as imagens se confundem de imagens, também a memória do mundo e das coisas atinge o seu estádio de degradação, não por um excesso de imagens e de memória, mas antes pelo seu recalcamento, por aquilo que Foucault reconhecia ser a possibilidade de memória de um qualquer acontecimento: «Mostra-se às pessoas não aquilo que elas foram, mas aquilo que é necessário que elas se lembrem que foram». O que é algo diferente do "métier de vivre" de Bill Viola (1988:372): «Le regard est son exercice, le monde son théâtre, la perception son mode de passage, la mémoire sa condition» 6 .
Poder‑se‑ia pois dizer, com Florence de Mèredieu 7, que todo o sistema do visível e da representação, tão fina e pacientemente construído após a Renascença, parece assim desagregar‑se brutalmente na pequena dimensão do écran video, quer no self‑media, no video alternativo, quer no écran generalista ou temático, ainda que, com diferenças expressas. Figuras do presente e do diferendo que o encerra, as práticas e as representações singulares da arte vídeo ‑ essa "estética do narcisismo" contemporâneo, como lhe chamou Rosalind Krauss, colocam‑se na linha de resistência ao fluxo, expõem sobretudo um "trabalho de memória" que guarda uma certa verdade, salva a ideia de real - pois, como defendia Godard (referindo‑se ao desporto na televisão), tratar‑se‑ia do trabalho mostrado na sua durée, ou seja, tratar‑se‑ia da memória de um corpo possível de decompor nos seus mais ligeiros movimentos, numa vertigem sem tempo, como em Marey ou Muybridge.
Se ao vídeo alternativo e aos self-media cabe o desvelar dos segredos do sujeito reflexivo, participativo, e do seu processo de afirmação e individuação, à televisão restar‑lhe‑á a prosa do mundo, o corpo inscrito pelos signos que iludem o 'naturalismo' do real. A televisão será, assim, não uma "janela sobre o Mundo", mas um interface‑écran que na sua vertigem centrípeta absorve o vitalismo dos seres, das coisas e do mundo, dando a ver apenas os seus restos e fragmentos ‑ figura, aliás, da "grande política" e do desempenho mediático dos seus protagonistas, da actualidade trágica e do fait‑divers.
E no que concerne à imagem electrónica, a arte vídeo será nesse sentido uma "anti-televisão", espécie de índice‑limite da expressão dos traços constitutivos do sujeito moderno: «Se a comunicação de massa preenche mais ou menos no mundo contemporâneo as funções positivas que eram outrora as da antiga retórica, se a televisão, mais particularmente, detém hoje uma função global de regulação da invenção e da memória, o auto-retrato (vídeo) é naturalmente a expressão mais subjectiva da resistência que a arte vídeo opõe de modo específico à televisão (contra, totalmente contra)» 8. Sem dúvida que o pioneirismo do vídeo e da arte‑vídeo, que remonta ao pós‑experimentalismo do novo cinema americano dos anos 40 e 50, nomeadamente através dos trabalhos de Vostell e Nam June Paik (recorde‑se a sua importante exposição já em finais dos anos 60, "TV as a creative medium", na Howard Wise Gallery), permitem configurar estratégias cuja especificidade remete para um reencontro entre o electrónico e o cinematográfico. O próprio conceito restrito de self‑media, de que todos eles eram adeptos, corresponde claramente ao seu posicionamento enquanto artistas e críticos perante a linguagem convencional da televisão. Dir‑se‑ia inclusive que não se tratava de uma demarcação elitista face à TV, uma vez que as suas propostas surgiam no sentido de propor uma maior participacão das experiências sociais, de uma televisão "do real", verdadeira alternativa ao discurso dos grandes meios, e portanto de um maior acesso das diferentes comunidades à televisão (esse era por exemplo o objectivo das street‑tapes produzidas pelos colectivos‑vídeo em diferentes cidades norte‑americanas, experiências que mais tarde se desenvolveriam em TV's locais, comunitárias e redes por cabo). Como diria o documentarista Geoffrey Reggio, trinta anos mais tarde, «os acontecimentos relatados pelos media não interessam ‑ não é isso que está a acontecer».
No fundo, passado todo esse tempo, os problemas continuam os mesmos... O dispositivo mantém‑se. O trabalho a realizar continua ainda a ser o mesmo ‑ recusa das práticas e dos modelos constituídos, reencontro das fissuras a partir das quais pode irromper a paixão, o "mundo da vida". Nem que para tal se deva invocar a interactividade e o video on demand - o que representará sem dúvida uma ruptura no actual dispositivo da televisão generalista clássica. «A questão é de se chegar a sociedades autónomas, verdadeiros laboratórios de resocialização(...). É necessário aumentar o desejo de desenvolver uma alternativa ao modo de grande difusão. Isso implica evidentemente elaborar o protótipo de uma revolução da comunicação, de a simular: ao desenvolver uma meta-arquitectura social devemos permitir um largo acesso público a modelos de redes conversacionais auto-geridas pelos utilizadores» 9 .
É esta resistência, esta tensão, que a televisão tenderá por certo a reduzir, abrindo‑se ao pulsar do mundo e das coisas, ao conjunto das experiências sociais, indo assim ao encontro dos seus "dissidentes" e das singularidades, democratizando‑se, operando a transformação do sujeito‑estatístico, destinatário fantasma, em sujeito operante, reflexivo, "actor" em corpo, actor em desejo, actor que vê com o corpo todo.

1 Desaulniers, Jean-Pierre, "Télévision et nationalisme", Communication et Information, Vol. VII, nº 3, pp.25-36.
2 Nöel Nel, Le débat télévisé, Paris, Armand Colin, 1990, pág. 132.

3 Michel Kokoreff,"Sérialité et répétition: l'esthétique télévisuelle en question", Paris, Quaderni, nº 9, 1989/90, Hiver, pp. 19-39.

4 Um depoimento de uma entrevistada dado a Jean-Pierre Corbeau (1978) aquando da realização do seu trabalho de campo intitulado Le village à l'heure de la Télé explicitava isso mesmo: «A 19h20 je me dis, bon maintenant, si tu veux connaître la suite, il faut attendre jusqu'a demain 19 heures, je sais qu'a mon âge, je risque de faire le grand saut, et c'est pour cela que chaque fois que j'entends la musique de générique, je pense, tu as vécu un jour de plus» (p.115).
5 Paul Virilio, "La lumière indirecte", Communications, nº 48, 1988, Paris, Seuil, pp. 45-52.

6 Bill Viola, "Y aura-t-il copropriété dans l'espace de données?", Communications, n º 48, 1988, Paris, Seuil.

7 Florence de Mèredieu,"Babel TV", Revue d'Esthétique, nº 10, 1986,Toulouse, Privat, p. 248.

8 Raymond Bellour,"Autoportraits", Communications, nº 48, Paris, 1988, pp. 345-346.
9 Gene Youngblood,"Vidéo et utopie", Communications, nº 48, 1988, Paris, Seuil, pp. 176-181.

1.9.04

A Televisão e a Ditadura (1957-1974) *


Ao longo dos cerca de dezassete anos de estreitas relações entre o salazarismo, o caetanismo e a RTP, a televisão revelou-se inquestionavelmente um aparelho - técnico e discursivo - e um instrumento, determinante para a legitimação e a longevidade da ditadura.
E curiosamente a RTP foi mais marcadamente instrumentalizada por Marcello Caetano do que por Salazar. Com Salazar, o regime «político-televisivo» é expectante e sobretudo provinciano face ao desenvolvimento do novo e poderoso meio de comunicação, ­provavelmente temendo uma mais ampla publicidade às coisas da vida e do mundo. E cria, nessa media, um imobilismo informativo através do modelo protocolar e oficioso determinado pelas estruturas censórias e persecutórias do regime.
A censura era naturalmente um modelo estruturante da política de informação de Salazar e Caetano, mas na televisão foi algo mais do que isso: na sua dimensão dissuasora, no plano da criação de uma estratégia dos consensos e enquanto «organismo ético», como Moreira Baptista definia o próprio sistema tecnodiscursivo da televisão, a censura foi um modelo repressivo e normativo essencial e determinante na manutenção do regime a do seu aparelho. Para além disso, os telejornais eram submetidos a uma outra fiscalização (para além do controlo diário do próprio «chefe de Divisão»), isto é, obedeciam a regras de produção e selecção extremamente rigorosas e os seus responsáveis, tanto no caso da rádio como da televisão, deveriam antecipar‑se a qualquer intervenção da Direcção dos Serviços de Censura. Veja‑se, por exemplo, a «ordem de serviço nº 1», da referida Direcção, que apenas vinha confirmar uma situação de facto já real. Com data de 14 de Janeiro de 1960, no seu artigo 7º, alíneas a) e e), dizia‑se: «São sempre de submeter à decisão da Direcção, devidamente datados, os seguintes casos: Críticas ou comentários à acção do Chefe de Estado, Presidente do Conselho e membros do Governo; Artigos ou noticiário visando a forma de estrutura política do Estado ou do Regime: Críticas à política económica financeira e externa do Governo; Movimento de embarques, ataques e críticas à acção das Forças Armadas e de Segurança ou das Polícias» 1 .
Se Salazar era refractário aos «teatrais efeitos» mediáticos, Marcello não o será. Ele próprio, aliás, se há‑de vangloriar do facto de ter sido não só o fundador, mas também o primeiro membro do governo a utilizar a TV. Salazar permanecia imóvel no esquadrinhar lento de uma complexa teia política e social, na montagem do seu pequeno mundo administrativo e burocrático. O isolacionismo, a censura, o homem anti‑carisma, são sobretudo determinados por fenómenos de identidade e mentalidade a que a sua experiência política e filosófica não era totalmente alheia.
A gestão administrativa ‑ e oficiosa ‑ da televisão, ao tempo de Salazar, enquadra‑se nas estruturas censórias do aparelho de Estado, rege‑se pelos seus princípios, mas parece não ambicionar ir mais além: a propaganda acabará por encontrar os seus limites no próprio modelo pedagógico e orgânico do «mestrado» de Salazar, como Manuel Maria Múrias gostava de dizer.
O discurso, designadamente da informação televisiva, mediava assim entre a legitimação de um regime «indiscutível» e de um homem «insubstituível», e a crise dessa legitimação pela incapacidade de representação e desempenho mediático da principal figura do regime, Oliveira Salazar. Essa demissão do campo de representação, ou, melhor, a privacidade a que o próprio Salazar auto‑subtrai o corpo jurídico do ditador, sobrepondo‑o ao seu próprio corpo físico, mas elidindo‑o, confere‑lhe com alguma preversidade a talvez tão procurada dimensão de «eternidade» de um projecto que as mais de quatro décadas da sua permanência no governo e na liderança administrativa do país bem atestam.
O pensamento de Salazar, o seu misantropismo e refracção aos media, associado ao facto de o salazarismo ter tido no controlo policial e administrativo das liberdades de expressão e associação um dos principais esteios de manutenção do Poder, e associado ainda ao facto do monopartidarismo autoritário não adquirir funções de controlo no âmbito do sistema politico, tendo ficado sempre subordinado ao Estado, conduziram à natural diluição da capacidade do regime se auto‑promover através da propaganda inflamada. O dispositivo da informação televisiva do salazarismo e do marcelismo, assentava assim, essencialmente, numa prática monológica constante, definida pela omissão das opiniões discordantes do regime e das suas estratégias, ou tão somente pela sua exclusão.
Outros parâmetros específicos da estrutura e agenciamento dos TJ's do tempo de Múrias e Valadão foram decisivos para o objectivo propagandístico do regime: referimo‑nos em concreto aos comentários e editoriais, que são a grande formação discursiva, o grande conjunto temático, aliás, quase sempre editados na abertura do principal bloco noticioso. São centenas, ao longo de 17 anos de informação, e por eles passa a opinião e a representação de uma acção política estrita. É através desses textos que se produz a auto‑celebração do regime e se concretiza a estratégia discursiva que faz emergir o carácter monumental da realidade histórica de então.
Os meta‑acontecimentos faziam também a actualidade televisiva do salazarismo. Emergem com o arranque das campanhas de «imagem» turística das colónias logo após o início da guerra, com as Comemorações Henriquinas, no início do ano de 1960, bem como de todo o noticiário sobre o contencioso com a União Indiana, ou ainda com as críticas interpostas à comissão de Curadorias da ONU, ainda nos finais dos anos 50, quando em Nova Iorque o Império começa a ser posto em causa pelos próprios países africanos então emergentes enquanto novos Estados independentes.
Mas, de facto, após as sucessivas independências africanas do ano de 1960, nova estratégia de produção de meta‑acontecimentos emerge no telejornal: aumentam significativamente os filmes enviados pelos correspondentes de RTP nas diferentes colónias, ou mesmo realizados por enviados‑especiais. A esmagadora maioria das vezes eram peças sem qualquer importância jornalística. À medida que a situação se vai agravando para Portugal, com o endurecimento das críticas dos países africanos e do bloco de Leste contra a presença portuguesa em África, o regime faz avançar os seus media para combater aquilo a que passa a chamar os «agravos dirigidos contra Portugal». A televisão e a comunicação social em geral, adquirem assim o estatuto de porta‑vozes do regime, aceitando colocar‑se oficialmente ao serviço da ditadura, funcionando como um seu prolongamento, tornando‑se assim claramente em aparelho ideológico.
Era, no fundo, um tempo de crise que antecipava o início da guerra colonial. Salazar fazia sobre o caso o mais profundo silêncio nesses meses finais de 1960. Em Novembro desse ano vêem‑se os primeiros efeitos da radicalização da estratégia televisiva: o telejornal inicia então o que viria a ser o longo requisitório de opinião produzida ao longo dos anos do salazarismo e do caetanismo. A primeira nota dessa longa série, que é anónima, intitulava‑se «A Nação Portuguesa e o momento internacional», e marca de facto o princípio da instrumentalização do telejornal no plano editorial, configurando‑o como um dos canais privilegiados de doutrina e propaganda. O próprio Salazar quebra o silêncio sobre a campanha «anti‑colonialista» e fala em directo (e em telegravação), na RTP, a 30 de Novembro de 1960.
E o facto é que a partir do início de 1961, nada voltaria a ser como dantes. Se o caso da operação de Henrique Galvão no Santa Maria é seguido desde início, inclusivamente com reportagens de enviados especiais da RTP, como uma espécie de folhetim de pirataria, o Programa para a Democratização da República, lançado pelo oposição em Lisboa, é omitido pela informação televisiva. O maior golpe para o regime seria dado, no entanto, em Luanda, com os acontecimentos do 4 de Fevereiro de 1961, noticiados pelo enviado a Luanda, Henrique Mendes, como se tratando de «banditismo em Angola».
Quando, porém, Américo Tomás recebe um grupo de oposicionistas liderados por Manuel Azevedo Gomes, os quais na sequência dessa audiência divulgam o «Comunicado aos democratas», em 8 de Fevereiro de 1961, a RTP reage condenando o comunicado, chamando‑lhe um «deplorável documento», e eximindo‑se, explicitamente, de divulgá‑lo, ­coisa que o próprio gabinete da presidência da República não havia feito... Este episódio constitui, por assim dizer, a metáfora de toda a história da informação televisiva durante a ditadura.
A partir de 15 de Março de 1961, com o incremento das acções dos guerrilheiros nacionalistas no norte de Angola, e paralelamente à aprovação, contra o governo português, pelos Estados Unidos e pela Uniao Soviética, da admissão à discussão na ONU dos recentes acontecimentos ocorridos em território angolano, a informação da RTP passa a apresentar reportagens realizadas nos locais em guerra, introduzindo inclusivamente edições especiais sobre os acontecimentos, e, depois, abrindo uma «campanha de auxílio às vítimas do terrorismo», a qual constituiria um novo e importante elemento do dispositivo instrumental dos telejornais. A RTP, por outro lado, estabelecia um contraponto estratégico relativamente à «frente» de combate. Os seus editorialistas, com frequência, consideravam estar num dos bastiões da «retaguarda».
Poder‑se‑ia dizer, seguindo uma ideia de Fernando Rosas, que da mesma forma que o império colonial desempenhou um papel historicamente decisivo na perpetuação da estrutura económica e social metropolitana e no retardamento das suas mudanças ate à descolonização 2 , assim a estrutura «mole» da informação televisiva, como meio privilegiado de fazer opinião viria a contribuir claramente ao longo da guerra colonial não só para a manutenção do statu quo, mas também para o adiamento, quer da liberalização do regime, quer da possível introdução de soluções flexíveis na política administrativa das colónias.
No período inicial da guerra colonial, é em torno de quatro vectores que emergem, com uma identidade e uma unidade específica, os alinhamentos que marcam o desenvolvimento da informação. Referimo‑nos designadamente, no que concerne à recorrência e regularidade do texto jornalístico propriamente dito, às suas práticas e temáticas sobre a guerra colonial. Isto fundamentalmente nos telejornais de inícios dos anos 60, uma vez que o período imediatamente anterior é caracterizado pela delegação da intervenção marcadamente política nas revistas de imprensa e por uma estratégia de alinhamento da informação de acordo com a hierarquia politica.
Um segundo vector constantemente presente era o relevo dado ao campo institucional, à agenda e ao protocolo oficial, aos comunicados e notas oficiosas, enfim, às actividades ministeriais e oficiais em geral, e de comando militar, nomeadamente sobre os «acontecimentos em Angola». Complementarmente, as crónicas sobre este mesmo tema, agora assinadas pelos jornalistas responsáveis pela informação e pela propaganda oficial, exteriores ao TJ, designadamente Ramiro Valadão (na altura Director dos Serviços de Informação do SNI), Barradas de Oliveira (director do Diário da Manhã), e também por João Coito, com a Letra de Imprensa. Mais tarde, pelos próprios jornalistas da RTP, designadamente Manuel Figueira, Manuel Maria Múrias, Vasco Teves e José Mensurado, todos eles responsáveis máximos ‑ a nivel de direcção ‑ pela informação televisiva.
Um terceiro aspecto não menos importante tinha a ver com a promoção das campanhas de «donativos» e de «benemerência», ­o vinho e as madrinhas para os expedicionários da Guerra (campanhas da Cruz Vermelha Portuguesa e do Movimento Nacional Feminino) a que a RTP dá largo tempo de antena.
Sendo as temáticas estruturantes do discurso jornalístico ­e as suas modalidades de enunciação um elemento fulcral do dispositivo intrumental da televisão, há que reconhecer que elementos laterais, como por exemplo louvores e condecorações governamentais e militares (também provenientes da própria administração da RTP) aos profissionais da televisão enviados para o cenário de guerra, eram ainda parâmetros relevantes da estratégia politico‑discursiva. E bem assim as múltiplas referências no interior da própria redacção do telejornal ao trabalho político na «retaguarda», como se de um «soldado chamado Televisão» se tratasse ‑ na concludente asserção de João Coito.
As diferentes modalidades de instrumentalização do dispositivo de enunciação da informação televisiva e a estratégia propagandistica do regime em período de guerra colonial viriam a atingir o seu ponto mais alto através da «neutralização» eleitoral da Emissora Nacional e da RTP na campanha Novembro de 1961. Idêntica medida seria tomada nas eleições para as Juntas de Freguesia em 1964.
Para as aberturas ficavam sempre as noticias protocolares e a agenda, designadamente reuniões, almoços, inaugurações, as múltiplas e intermináveis viagens ‑ e os directos da partida e da chegada, como aconteceu com a viagem de barco de Américo Tomás a Angola e S. Tomé, em Agosto de 1963. E todos os aniversários do regime, portanto, mas também obviamente os aniversários de Salazar (os vários aniversários de nomeações como ministro, da entrada para o governo, natalício, etc.) as entrevistas de Salazar à imprensa estrangeira, os reflexos dos seus discursos, as notas oficiosas que não levantavam melindre para o regime relativamente à opinião pública, mais raramente os comunicados do Conselho de Ministros, diversos comunicados e discursos ministeriais, as referências aos trabalhos da Assembleia Nacional, as efemérides do regime (como o «plebiscito da Constituição de 33», no TJ 19/3/63), etc. Mais raramente também os aniversários de Américo Tomás e de Cerejeira (TJ's de 19/11 e 18/11/67). E, claro, os Comentários, as Notas do dia, os Editoriais com origem na própria redacção do TJ.
Vejamos então a questão editorialista. Em 19 Abril de 1962 começam por aparecer os primeiros Comentários assinados, primeiro por João Coito, e depois, a 24/5/62, pelo próprio Manuel Figueira. Uma nova etapa se iniciava então na informação televisiva: doravante a redacção era «livre» de opinar sobre os factos e os acontecimentos, e sobretudo tinha uma linha editorialista apologética do mais refinado salazarismo. Daí até ao final do regime, apenas com alguns interregnos, seriam os comentários e os editoriais que marcariam o posicionamento do telejornal perante as grandes linhas de acção de Salazar e Caetano.
É a assinatura de Manuel Maria Múrias que marca a transição da informação televisiva de 1963 para 1964 ‑ e que assim continuará até que Ramiro Valadão entre na RTP, já em 1970, pela mão do «fundador» e «supremo inspirador» da televisão oficial, Marcello Caetano. Esta mudança não foi apenas uma mudança de pessoas, ou de liderança na redacção, mas significa também, uma importante alteração no quadro do próprio discurso televisivo e, nessa medida, no quadro da estratégia propagandística do regime, que encontrava agora neste novo responsável um profissional dado a militâncias e à defesa das grandes causas da extrema‑direita.
E para isso nada melhor do que a RTP, como aliás o próprio Múrias reconhecerá. Salazaristas indefectiveis ascendem a lugares da administração da RTP, como é o caso de Eduardo Freitas da Costa, em representação do Estado. Este, cedo ultrapassará as suas competências específicas no quadro da gestão da televisão para se tornar comentador do Telejornal, exactamente no início do ano de 1965.
Sempre que se tratasse da política para as colónias, Múrias invocava o «apelo de Salazar» (TJ 15/4/66), exercitava a melhor argumentação, e admitia ser «inflexível»: «Estamos onde estamos e ninguém será capaz de nos fazer arredar pé». Mas, acima de tudo, Salazar. Era a ele que, finalmente, era devida «a glória do futuro que se aproxima» (TJ 27/4/64). Nos diferentes editoriais, nas aberturas e na estrutura dos alinhamentos, pairava sempre, portanto, o espectro da presença do salazarismo e de Salazar enquanto modelo omnisciente e enquanto dogma. A idolatria a Salazar atingia as raias do absurdo quando, por exemplo, no TJ de 29/1/65, Manuel Maria Múrias resolve assinar um editorial em que dava como «vencida», por Salazar, a guerra colonial: ­«ganhámos com as armas na mão e ganhámos junto da opinião internacional (...).»
Mais tarde, apesar da nomeação de Marcello Caetano, o telejornal continuava crente na recuperaçäo do «Presidente Salazar». No final de Outubro volta‑se a falar de novas «melhoras espectaculares», e Múrias afirma mesmo que «qualquer coisa de sobrenatural se evola» da luta «titânica» de Salazar contra a morte (TJ 25/10/68). Antes de abandonar a tribuna que ao longo de cerca de seis anos chefiou, enuncia aquilo que é aparentemente uma colagem a Marcello Caetano: «(...) O facho não se apagou. Mudou de mão. Apenas» (TJ 6/11/68). Mas era tarde. Marcello Caetano preparava agora a entrada de Ramiro Valadão para a Presidência da RTP.
O episódio Delgado 3 e o episódio da SPE, referente a Luandino Vieira, constituíu também um dos momentos em que o discurso da intolerância foi mais longe na informação televisiva, chegando ao ponto de serem lidos telegramas de um telespectador que exigia castigo «exemplar» para a «traição». O racismo era outra das dimensões do dispositivo instrumental, sobretudo no período de Múrias. Expunha mais a intolerância e a virulência ‑ bem como uma estratégia de dominação colonial xenófoba. Em geral, o discurso de características racistas, ainda que de forma velada, estava sempre implícito nos comentários políticos dirigidos aos grupos de «bandoleiros» e «terroristas» que actuavam nas «províncias ultramarinas», ou ao grupo de países «afro‑asiáticos» que na ONU se opunham à «política africana de Portugal». Outras vezes era mais directo: no TJ de 29/11/64, aludindo a desacatos em Nairóbi, Múrias refere implicitamente o pretenso «canibalismo» dos africanos... Quando a 30 de Agosto de 1966 os líderes dos movimentos de libertação das colónias portuguesas se reúnem em Brazaville, Múrias chamar‑lhe‑á «reunião de criminosos» e considerará, em conclusão ao seu comentário, que assim «estaria desfeito o mito racista da negritude» e que assim «a selva voltava a ser senhora da maior parte de África»: «Pobre África onde o canibalismo voltou a ser oficializado e a lei da selva está institucionalizada» (TJ 15/9/67).
O dispositivo de enunciação da máquina de dissuasão do salazarismo respondeu assim a esse vazio do desempenho simbólico do regime, à inexistência do chefe carismático e panfletário. A alternativa era, de facto, gerir essa ausência através da máxima contenção informativa, tendo os responsáveis pela informação televisiva encontrado na estratégia de propaganda protocolar e no editorialismo doutrinário e militante, o antídoto para o défice de representatividade e protagonismo político de Salazar. Finalmente, nessa estratégia, também a encenação brutal, dita «viril», de um Império, que embora em fase terminal, em desagregação, chegava ao écran televisivo glorificado.
Uma glorificação, no fundo, dos efeitos de verdade disciplinarmente encenados, que não fizeram esquecer, porém, a «dessalarização» ‑ um documento que ao pretender dar a ver o corpo físico do ditador, expõe sobretudo a sua finitude jurídico‑política. Um «cadáver empalhado» ‑ um «espectáculo abominável» na expressão de um dos indefectíveis salazaristas 4 . Marcello Caetano ascende portanto a figura cimeira Governo a 26 de Setembro de 1968, após a recaída de Salazar. Com ele é pois toda uma nova estratégia de comunicação, e nomeadamente da informação televisiva que é relançada. Dir‑se‑ia que ao espírito de militância de Múrias sucede uma política de instrumentalização racionalizada, de propaganda reflectida, protagonizada agora por Ramiro Valadão.
O facto é que Marcello Caetano era o político que melhor poderia contribuir para uma nova estratégia de imagem do regime, uma vez que já havia demonstrado como ministro da Presidência que, ao contrário de Salazar, recorria frequentemente à televisão como forma de fazer chegar à opinião pública a legitimação do regime. Ele próprio o enuncia no seu discurso de 27 de Setembro de 1968: «Não me falta ânimo para enfrentar os ciclópicos trabalhos que antevejo. Mas seria estulta pretensão de os levar a cabo sem o apoio do País». (...) Esse apoio (...) será solicitado através da informação tão completa e frequente quanto possível procurando‑se estabelecer comunicação desejável entre o Governo e a Nação». E é fundamentalmente isso que depois fará, já como Presidente do Conselho de ministros, através das Conversas em Família.
E aquilo que Salazar havia feito quase sempre impelido pelo limite das situações, Marcello passará a fazer com regularidade e com profundo empenho: referimo‑nos às suas «conversas», a primeira das quais ia para o ar a 8 de Janeiro de 1969, dias depois de ter sido nomeado um novo secretário de Estado da agora secretaria de Estado da Informação e Turismo ‑ no caso, César Moreira Baptista -, a quem coube, mais tarde, nos primeiros meses de 1973, assumir funções de comentador nas aberturas do telejornal. O facto viria a configurar‑se como um dos momentos, ao tempo de Valadão, em que a lógica propagandística do regime para a televisão mais extravasou o limite dos seus próprios objectivos e também dos seus habituais procedimentos.
O ano de 1969 traria ao pequeno écran novas e significativas operações de propaganda do regime, dadas como grandes acontecimentos nacionais, designadamente as eleições para a Assembleia de deputados, e as viagens de Marcello Caetano ao Brasil e a África ‑ viagem esta, que se tornava tanto mais importante quanto Salazar a tinha tornado incontornável. Afinal, ao longo de mais de quarenta anos no governo, o anterior Presidente do Conselho nunca havia visitado o «Ultramar».
Além do «espectáculo abominável» que havia constituído a passagem do filme sobre o aniversário de Salazar, em 1969 outro acontecimento poderia merecer esse epíteto. A maior operação de propaganda de toda a história da informação de RTP terá então lugar, a propósito das eleições para a Assembleia Nacional. As referências ao acto começarão a ser divulgadas cerca de dois meses antes da data da sua realização, marcada para 28 de Outubro desse ano. Mas a montagem da estratégia política propagandística, na RTP, para as eleições de Outubro, acaba por planificar o arranque do primeiro de uma longa série de editoriais precisamente, a 26 de Setembro de 1969. São esses editoriais que constituirão, no seu conjunto, diariamente, ao longo de um mês, uma das armas mais poderosas da propaganda marcelista, procurando, um tanto desesperadamente, inculcar na maioria dos portugueses a ideia de que «só uma política é possível» (TJ 30/9/69), e assim legitimar a evolução na continuidade protagonizada pelo sucessor.
No seu conjunto, desde o final do mês de Setembro até à véspera das eleições, a redacção do telejornal produziu nada mais nada menos do que 20 editoriais para outras tantas aberturas do telejornal, actuando como uma perfeita máquina de propaganda ao serviço do poder instalado, participando na montagem do próprio discurso marcelista, na encenação dos seus efeitos simbólicos, sendo peça decisiva da sua estratégia, permitindo assim a instrumentalização da televisão de uma forma absolutamente inédita - num primeiro tempo «neutralizando-se» para a campanha e acabando por ter, finalmente, um comportamento de autêntica secretaria de Estado da Propaganda, como inclusivamente a própria SEIT não chegaria a ter.
A agenda política continuava a fazer a actualidade nas semanas subsequentes, com uma particularidade relevante por ocasião do 13º aniversário da RTP, em que o editorial do telejornal manifestava a «deferência» e «admiração» da RTP a Américo Tomás, «nosso primeiro espectador», e a Marcello Caetano designado como «o fundador, primeiro trabalhador desta casa e seu supremo inspirador». Para trás havia ficado aquele "histórico" alinhamento do telejornal de 20/7/69 em que esse extraordinário - a todos os títulos - acontecimento da chegada do homem à Lua era relegado para segundo plano face a notícias como uma visita de Américo Tomás a uma fábrica de cimento, e outras idênticas, do protocolo oficial.
«Todos - como um só» - o final do discurso de Marcello Caetano aos membros da ANP (TJ 21/6/71), alertando para o perigo da «revolução socialista» e para a necessidade de opor uma «barreira eficaz ao comunismo», era a chamada de primeira página desse telejornal. Dez anos depois do início da guerra colonial o regime expunha assim, através do telejornal, as feridas em aberto nas múltiplas «frentes», sinal de que, pelo menos no plano da propaganda televisiva e da «retaguarda», não haveriam concessões ao «ínimigo, insidioso e cobarde», como então se dizia (TJ 10/6/71).
A grande questão, para o regime, era a de sempre: ou Marcello Caetano ou «a revolução, a guerra e caos» (TJ 22/7/71). Um reduzido leque de séries temáticas - o ultramar, a subversão, o monopartidarismo -, integram a maioria das quase três centenas de editoriais ao longo dos 17 anos de informação televisiva. A explicitação através dessa rede reticular de formações discursivas de um projecto impositivo, não contraditório, dá a homogeneização das condutas políticas e culturais do regime.
Nas datas passíveis de comemoração, como é o caso do aniversário da própria RTP, e noutras efemérides, discursos de circunstância e editoriais retomavam a doutrina de intransigência do regime e a sua lógica monologal. César Moreira Baptista, que foi, aliás, o protagonista de uma das mais insólitas campanhas de propaganda do telejornal, com os seus Comentários de abertura ao longo de 1973, introduzia relativamente à RTP o conceito de «organismo ético», referindo que a televisão deveria estar submetida, «para além de todas as razões», ao «interesse nacional».
A Acta nº 395 do Conselho de Gerência da RTP, de 7/10/1972, dava conta entretanto da proposta de Ramiro Valadão referente a um «Prémio Marcello Caetano», «a conceder anualmente (...) àquele que de entre os Portugueses - e que como tal nos seja indicado pelo Ministro da Defesa - melhor tenha sido o intérprete da grandeza do Povo do meu País».
Muito perto já do 25 de Abril, o ano de 1973 começava com Mensurado a defender um seu editorial «ao encontro dos bravos que no Ultramar defendem a integridade da Pátria»... E surge então a primeira «palestra» do secretário de Estado da Informação e Turismo, César Moreira Baptista, emitida na abertura do TJ de 25/1/73, comentário que se tornaria habitual ao longo dos meses seguintes, com uma periodicidade ora quinzenal, ora mensal. O facto de um secretário de Estado ter acesso, de forma periódica, e com comentário pessoal, às aberturas do telejornal, era, com efeito, prática inédita na RTP. Nunca a propaganda, através do texto de opinião oficial, havia ido tão longe.
Seis meses antes do 25 de Abril, a RTP e o regime têm de novo uma campanha eleitoral para «gerir». Desta vez a tarefa estará mais facilitada, apesar da inexistência de editoriais nas aberturas, como em 1969: a oposição havia desistido de ir às urnas e o espaço designado «momento eleitoral» será preenchido apenas com a ANP. Na antevéspera da votação - a 26/10/73 -, a RTP anuncia uma «homenagem» ao «pensamento viril» de Marcello Caetano e aos cinco anos de governo - tratava-se da edição de um livro produzido pela RTP e com autoria de um redactor do TJ - Horácio Caio. O livro em questão havia sido proposto em reunião do Conselho de Gerência da RTP por Ramiro Valadão e reconhecido pelo administrador em representação do Estado como «uma homenagem da RTP ao seu fundador» 5 .
A coerência instrumental e monológica do modelo informativo, a sua estrutura de agenciamento protocolar e oficioso, e a lógica de produção - constante - de pseudo-acontecimentos e meta-acontecimentos, valorizando as diferentes modalidades de enunciação propagandísticas -, caracterizavam, em linhas gerais, a estratégia, o modo de produção e as práticas editoriais dos blocos noticiosos da RTP, desde o seu início até ao 25 de Abril de 1974. E da mesma forma que o sistema de monopartidarismo político se subordinava ao Estado, assim o monopólio da informação televisiva e a sua estrutura protocolar se subordinavam, na sua prática, ao sistema político e aos seus protagonistas. Uma prática que se diria impositiva de uma ideia obstinada e intransigente para Portugal. Prática registada, sobretudo, nas aberturas do TJ, através de uma espiral de redundâncias que encenava, por assim dizer, a amnésia do tempo.
Ao tempo de Ramiro Valadão são de facto diversos os documentos que nos permitem uma melhor compreensão da forma como todo este sistema havia sido gerado. Veja-se o caso do Conselho de Programas da RTP, que a certa altura se debruça, em exclusivo, sobre o telejornal. Na sua 45ª reunião, de 7 de Janeiro de 1971, da ordem do dia constava apenas a apreciação do TJ. O então presidente do Conselho de Programas, Pedro Geraldes Cardoso, procedia nessa mesma reunião à leitura de um relatório sobre o serviço noticioso da RTP. Ramiro Valadão, comentando as suas observações, enquadrava a questão do ponto de vista político, do seguinte modo: «(...) Entende-se superiormente que o Telejornal pode contribuir, dada a sua excepcional difusão, para que sejam atingidos os objectivos do Governo da Nação» 6 .
Marcello Caetano, por seu lado, não perdia as «boas» ocasiões para intervir... Nas mensagens por si enviadas ao presidente do Conselho de Administração da RTP, evidenciava uma despudorada intenção de controle deste meio por parte do Governo a que presidia. Em carta datada de 28/12/1970 não podia ser mais claro: «Conto com o apoio fiel, dedicado e inteligente dos amigos, sobretudo daqueles a quem estão confiadas posições-chave, como sucede consigo. A televisão é nos tempos correntes um instrumento essencial de acção política e nós não podemos hesitar na sua utilização - nem em vedar aos adversários da ordem social essa arma de propaganda. Sei que está atento, mas nos tempos que correm toda a vigilância é pouca, toda a inteligência e argúcia na acção são insuficientes: há que pôr em jogo todas as nossas faculdades de combate» 7 . Numa outra situação, a 3 de Abril de 1972, dirigindo-se mais uma vez a Valadão, Marcello repetiria o seu «nos tempos que vão correndo o controlo efectivo da TV é essencial para o Governo» 8 ...
César Moreira Baptista, aliás, havia definido na própria RTP toda esta estratégia, do seguinte modo: «Creio, que em nenhuma outra época os governantes portugueses tiveram tanto a preocupação de informar, justificar, fornecer dados e razões que permitam um exacto juízo dos fundamentos das orientações seguidas e das decisões tomadas. E ninguém melhor e com mais autoridade e esclarecido juízo o tem feito que o próprio Presidente Marcello Caetano que tantas vezes aqui vem para conversar com o povo (...)» (abertura do TJ de 25/1/73).
No ano de 1972, o Anuário da RTP refere-se ao telejornal do seguinte modo: «Sendo o primeiro órgão de informação, por isso mesmo são enormes as responsabilidades que lhe cabem. Uma notícia qualquer no Telejornal transforma-se num grande acontecimento; o escândalo, o sensacionalismo, a cultura dos menos grados interesses do público, estão-lhe deste modo vedados. O Telejornal é, pela sua própria natureza, um instrumento de informação frio e objectivo, um instrumento na acepção literal do termo». O telejornal continuava então a ser considerado pela própria RTP como «o primeiro órgão português da informação», com uma audiência «na sua edição maior de cerca de dois milhões de telespectadores» 9 . Era, por isso, o canal de Informação preferido do fundador da RTP.
Lógica criadora também de um complexo normativo, que, de facto, obliterava a emergência das singularidades, das subjectividades dissidentes, impondo assim a globalização do seu pequeno universo político como matriz normativa. Tratar-se-ia, no fundo, não de um registo, ou de uma dimensão espectacular, alimentada por uma cena dialogal, conflitual, mas, antes, insuflada pelo princípio da dramaturgia monológica, no sentido da palavra exclusiva e inquestionável
Mais não pretendia este discurso moralista senão legitimar através do pretenso didactismo a figura paternal do pedagogo, mimando a competência (o «poder», o «dever fazer») procurando criar a simulação do consenso que em última instãncia permitiria a atribuição de um poder ao enunciador e a imposição de um dever ao enunciatário. Repare-se que no plano interaccional 10 a argumentação é uma pressão exercida sobre o destinatário para o convencer (fazer crer) e o levar a agir (fazer fazer). Este é, por assim dizer, o princípio de organização de uma estratégia e de uma conduta comunicacional que era articulada com a coerência do dispositivo tecno-discursivo por forma a gerir a eficácia do modelo não-contraditório, monológico No fundo, provocar a subordinação das práticas do jornalismo às práticas da propaganda e manter a estratégia manipulatória e o «fazer persuasivo» como o eixo fundamental da rede reticular do sistema político e da sua perpetuação, ao longo dos consulados de Salazar e Caetano.
Estratégia que finalmente se concretiza através dos pseudo-acontecimentos e da sua performatividade. Instala-se assim uma nova ordem remitificadora do mundo, efeito de real que foi produto de uma estrutura e de um regime, teve uma intencionalidade política - foi dado como sendo a «raridade» da matéria noticiosa, embora não passe de um discurso manifesto, que apenas reprime a totalidade da experiência.
A TV foi (é) um dos dispositivos fundadores da ordem securizante do Estado-providência e da perpetuação da sua classe política em crise de representatividade. A predominância e a inflação do sistema político no conjunto das práticas, discursos - e categorias - na informação televisiva é de facto um sintoma do défice de legitimação do sistema político, quer pela sua macrocefalia, e inevitável alheamento do mundo da vida, quer pela sua pouca sensibilidade, ou mesmo pela incapacidade mais genérica de integrar a experiência social. O que é dado a ver no dispositivo inscreve-se na ordem do discurso protocolar, do fait-divers e do meta-acontecimento. De forma recorrente, repetida, através também de um efeito-série que joga como factor de naturalização, como ilusão naturalista, como actualidade-sintoma onde o acontecimento-problema ou o jornalismo investigativo são métodos e práticas não reconhecidas.
A história da informação televisiva em Portugal entre 1957 e 1974 é modelar nesse aspecto, sobretudo pelo carácter totalitário do regime e da sua máquina censurante. Mas práticas «democráticas» por assim dizer, como no caso francês, ao tempo de De Gaulle, ou mesmo depois 11 , não alteram substancialmente os pressupostos em causa. Aliás, a incapacidade de dar a ver a experiência social radica efectivamente na crise do político e por conseguinte na sua estratégia de representação mediática. O contrato de visibilidade que deriva da instrumentalização do dispositivo televisivo pela ordem política impõe assim a opacidade e o segredo do acontecimento-problema para deixar emergir a performance do político.
A TV cumpre, de algum modo, mercê do seu dispositivo de visibilidade específico, uma função precisa - fática, identitária, vinculante. Fragmenta e recompõe o plano do real num novo universo simbólico: dir-se-ia que em vez de põr em cena as evidências, o dispositivo televisivo materializa-as nos seus «pixels» electrónicos. De facto, a elaboração da informação audiovisual é potencialmente desreística em confronto com a realidade manifesta, fechando-se por isso num universo de abstração das modalidades de enunciação do real. Emerge assim uma mega impressão de realidade, uma visão compósita do mundo, através de uma concepção publicitária do divertimento, ou da transmutação do real em espectáculo, ou ainda através dos efeitos de real dramatizados em directo, confluindo para uma remitologização, em última instância, uma experiência «catódica» do quotidiano.
É claro, finalmente, que a dimensão tecnodiscursiva da máquina de organização protocolar televisiva, ao tempo de Salazar e Caetano, foi estruturada e orientada segundo um modelo jurídico-administrativo que tinha como estratégia fundamental a subordinação do mundo da vida aos imperativos do sistema político monopartidário e, enfim, a subordinação e repressão da virtude civil e da experiência social ao sistema político-televisivo autocrático - como meio para a sua perpetuação e para a sua auto-celebração.


*Este texto segue de perto a investigação desenvolvida pelo autor no âmbito da tese de doutoramento defendida em 1993, na Universidade Nova de Lisboa (FCSH), subordinada ao tema «O Telejornal e o Sistema Político em Portugal ao Tempo de Salazar e Caetano (1957-1974)», posteriormente editada, parcialmente, pela Editorial Presença, em 1996, sob o título Salazar, Caetano e a Televisão Portuguesa.

1 A política de informação do regime fascista, Comissão do Livro Negro Sobre o Regime Fascista, Lisboa, 1980, pp. 166-168.

2 Fernando Rosas, «Salazar e o Salazarismo: Um Caso de Longevidade Política», Salazar e o Salazarismo, Lisboa, D. Quixote, p. 17.

3 Ver, sobre o caso Delgado e a RTP, o nosso artigo «História de Uma Perseguição», História, nº5, Fevereiro de 1995, pp. 16-23.

4 Portugal - Os Anos do Fim, Jaime Nogueira Pinto, Lisboa, Sociedade de Publicações Economia e Finanças, 1977.

5 Acta nº 428 do Conselho de Administração da RTP, de 17 de Outubro de 1973.

6 "Projecto de Acta da 45ª reunião do Conselho de Programas" da RTP, de 7/1/1971, A Política de Informação
no Regime Fascista , Comissão do Livro Negro, Lisboa, 1980 pp. 240-242.

7 Op. cit., p. 239

8 Op. cit., p. 263.

9 Anuário da RTP de 1972, edição da RTP, Lisboa, 1973, p. 19.

10 Noel Nel, Le débat télévisé, Paris, Armand Colin, 1990, p. 192.

11 Ver, a este propósito os nossos trabalhos O Fenómeno Televisivo, Lisboa, Círculo de Leitores, 1996, e «O Sistema Político e a Informação Televisiva, Ou a Ilusão Naturalista das Notícias do Mundo», História e Crítica da Comunicação, Lisboa, Século XXI, pp.90-114.
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