5.9.04

Videocultura, Memória e Esquecimento

A relação dos media com o mundo ‑ e designadamente a relação específica com a "máquina" televisiva - ­é, no seu complexo campo reticular de produção de saber e fazer, simultaneamente desestabilizadora e apaziguadora, na medida em que a prosa precária que a televisão induz, emerge ora como momento fundador de visibilidade, ora como instrumento de verdade do qual não devem ser iludidos os seus dispositivos, os seus poderes e os seus limites.
A televisão é, por excelência, uma máquina produtora de redundância, recicla continuamente o seu dispositivo e organiza no seu fluxo discursivo um novo espaço‑tempo, uma visão do mundo generalista e compósita.
Existe, por assim dizer, uma acção socializante do imaginário televisivo que se configura nos modelos estabilizados das suas "grelhas" de programação e das suas formas de representação do mundo, as quais conduzem, grosso modo, ao espectáculo de ritualização da cultura e da informação. Sintoma, cujo princípio de realidade se manifesta sem se autodesignar, isto é, trabalha num registo de ilusão naturalista e de criação de efeitos de legitimação tendo por horizonte de conhecimento o seu contrato de visibilidade e de credibilidade com o telespectador, em suma, um horizonte de acontecimento.
Daí, o dispositivo televisivo parte para a construção do seu puzzle ‑ ou da sua "cultura‑mosaico", como dizia Abraham Moles. Toda a sua complexa organização discursiva, o seu dispositivo logotécnico, tem, como primeira acção do seu interface ‑ do seu écran de univocidades -, solicitar a capacidade de identificação do telespectador enquanto parte da audiência, envolvendo‑o num fluxo de tempo sem memória e imaterial, pelo carácter efémero de materialização visual instantânea das imagens que difunde, estratégia de facto redutora, designadamente quando se trata de um media com o impacto e o poder de veicular saber que a televisão, objectivamente, tem.
Imagens em perda, portanto, écrans‑espectáculo do esquecimento, écran de superfícies múltiplas, ambos adstritos ao modelo tecnodiscursivo unívoco da televisão clássica, onde, em acréscimo, a função hegemónica é, em regra, a do "divertimento". Dispositivo tanto mais complexo quanto a máquina televisiva se torna assim, de alguma forma, um "a priori" da consciência moderna.
Pode por isso dizer‑se que a televisão generalista clássica perdeu o sentido da história, isto é, o seu dispositivo evolui de tal forma ao ritmo do "quotidiano", como espelho de uma realidade prosaica, vulgar, que, com alguma perversidade, o registo "telereal" se faz, nela, a uma velocidade directamente proporcional à fugacidade da ordem natural das coisas, do tempo, e do mundo...
A actual sociedade de comunicação, sobretudo com o auxílio da panóplia multimedia de fim de século, constituiu‑se em "sociedade transparente", embora o tenha conseguido numa espécie de duplicação do mundo, provocando assim a erosão do tradicional ‑ ou convencional - "princípio de realidade". O mundo "verdadeiro" torna‑se, então, fábula... E se a história pode também ser interpretada como um inventário do esquecimento, a televisão, mais do que inventariar a figura da raridade, no sentido de Foucault, faz, por paradoxal que pareça, ascender à "dignidade" do seu écran, apenas determinados factos, em preterição de todos os outros.
Produz, por assim dizer, a grande amnésia do tempo. Mas também aqui nada de fundamentalmente novo acontece, isto é, a perda de memória e o esquecimento já se haviam transformado nos traços estruturais da sociedade contemporânea...
Para além da "materialização" do mundo no seu dispositivo logotécnico - técnico e discursivo -, a televisão tem essa faculdade particular de produzir e reciclar as identidades colectivas, de criar um dispositivo simbólico partilhado ‑ uma "vida simbólica comum" 1, o que, em última instância, pode ser visto como uma estratégia de agenciamento de conteúdos e de saberes à imagem do que acontecia com a dependência dos meios de comunicação pública da tutela jurídico‑administrativa do Estado.
É essa filiação histórica e arqueológica que nos permitirá caracterizar o registo inacabado do contexto da emergência, designadamente, do dispositivo televisivo e da ordem do mundo que este institui ‑ quantas vezes também em ruptura com as aquisições e a experiência de um tempo passado.
Diremos, em síntese, que procuramos estabelecer uma arqueologia das estratégias e práticas emergentes da complexa rede interactiva entre os acontecimentos, os pseudo‑acontecimentos e a agenda dos media, o protocolo e as suas mediatizações, entre estes e os seus enquadramentos jurídicos, institucionais e políticos, não excluindo as respectivas máquinas censurantes, persecutórias e propagandísticas. Por outro lado, pretendemos apontar o modo de configuração dessa rede como programa, e procurar, finalmente, a partir da identificação dos seus regimes de enunciação, de transparência e de opacidade, dos seus efeitos de real, e função estratégica da construção do "espaço‑tempo" dominante do dispositivo.
O princípio de realidade emergente, o regime de visibilidade e o contrato de credibilidade que o discurso televisivo, designadamente, institui, trabalham, em conjunto, um registo de real que funciona enquanto telerealidade ‑ uma realidade criada por imagens electrónicas, difundidas por uma máquina e por um dispositivo que é um "intensificador de poder" 2 . Tal como no panopticon de Bentham, esta nova máquina catódica dissocia a dualidade ver/ser visto em novas modalidades, através de novos encadeamentos, nos quais o "ser visto" ‑ tudo o que está virtualmente disponível para a "mise‑en‑ordre" da máquina ‑ emerge, no essencial, enquanto acontecimento, embora no plano absolutamente redutor da política e da catástrofe - da actualidade trágica, da pequena política e do fait-divers dos telejornais.
Diferentes ordens de imagens televisivas instituem diferentes regimes, ou contratos de visibilidade com o telespectador, incidindo ora numa "moral do ver", quando o que é suposto passar é a credibilidade das imagens do desempenho ou da representação política, por exemplo, ou numa pregnância do olhar quando irrompe, com o directo, um signo do real, ou uma imagem-pulsação, ou se dissolve ‑ ou quebra ‑, a lógica de eficácia comercial e consensual do media.
Vejamos um pouco mais para além desses parâmetros essenciais do dispositivo televisivo que estamos a referir. Analisemos concretamente o suporte onde esta lógica dual se institui, o écran imaterial a que Preikschat chamou "palimpsesto electrónico" e através do qual emergem as imagens do mundo, agora convertidas ao regime catódico, imagens das quais nascem imagens, num sistema de hipertelia definitivamente em crise referencial. Mas imagens também que se constituem em fundo de referência das esferas pública e privada dos campos sociais mais directamente dependentes do dispositivo, desse interface‑écran que transforma o antigo modo de ver - sequencial, politópico, nomádico -, em figura, precisamente em matriz centrada, em écran catódico, justamente, de onde procede exponencialmente a infinitude de combinações de pixels.
E é, sem dúvida, neste regime de visibilidade e de temporalidade, em que as imagens se reproduzem em séries 3, e em que a banalização dos efeitos surge como estratégia de fidelização, que os jogos formais tendem de facto a substituir‑se aos jogos de sentido. A imagem entra então numa era de insignificância, esvaziada de sentido, numa espiral de esquecimento em que também cada imagem apenas remete para si própria. E, de facto, repetição e esquecimento completam‑se: a disponibilidade dos telespectadores para se tornarem cativos deste regime pode ser vista, em primeiro lugar, do ponto de vista da máquina de organização televisiva, como um dispositivo contra o tempo e o correr do tempo, e do ponto de vista do destinatário, como "paragem" do corpo‑receptador 4, enfim, como um écran­‑interface sem sentido nem memória ‑ afinal a estratégia natural para que cada série pareça sempre diferente. Mas no fundo ela subsume no seio da programação a noção de grelha, que será, por assim dizer, a "hiper‑série".
Referíamo-nos atrás ao consenso como memória, isto é, à inscrição dos consensos como forma de memória do sujeito reflexivo perante o écran catódico, ele próprio interface neutralizador de todas as distâncias e da próprio temporalidade. E aqui radica exactamente um novo parâmetro fundamental na caracterização do dispositivo televisivo clássico: no écran esbate‑se o tempo e o espaço, havendo como que uma incompatibilidade radical entre a "culture de flot" e a melancolia por uma imagem.
Dizia Deleuze que é, pelo contrário, a totalidade das imagens que se fixa em nós... E seria nesse regime excessivo de desvitalização das imagens ‑ regime que tem percorrido uma espiral desde o início da televisão, num processo progressivo, emergente desse palimpsesto electrónico que materializa em telerealidade todas as razões do mundo, todos os seus acontecimentos ‑, que é desafiado cada vez mais o dispositivo de ‘contacto’ passando portanto, aparentemente, a um dispositivo de ‘contrato’, em constante actualização, expondo‑se assim a crise do próprio dispositivo e bem assim a crise da coesão e da produção dos consensos.
O écran catódico unívoco funciona, também, como neutralizador das especificidades dos processos discursivos que lhe são exteriores, na medida em que ao integrá‑los no seu fluxo homogeneizante, a televisão molda‑os ao seu dispositivo enunciador através de um complexo processo de adequação à sua lógica tecnodiscursiva. Por outro lado, funciona como neutralizador das condições ‑ ainda técnicas e discursivas ‑ de retenção das imagens e dos sons, de registo, não só devido à diversidade da teia enunciativa e da sua lógica de fragmentação/recomposição, como também devido à essência do seu dispositivo cujo modo de desvelamento é deixar aparecer o que, de seguida, inevitavelmente se esquece; sob o ponto de vista técnico trata‑se sobretudo da questão da efemeridade da conservação da imagem electrónica, e portanto da conservação das suas próprias imagens, como se de uma técnica "erosiva" se tratasse...
Este novo espaço‑tempo emergente, que é finalmente caracterizado por um novo tempo dado pela "velocidade audiovisual" 5 suplanta em definitivo, através dessa errância logotécnica, a realidade da presença do espaço real, dos objectos e dos lugares.
Nietzsche dizia que o homem se constituía por uma faculdade activa de esquecimento, por uma espécie de recalcamento da memória biológica: a mnemotécnica, com a emergência do alfabeto, teria sido assim o sistema da crueldade por excelência, um "alfabeto terrível", a organização que traça signos no próprio corpo e lhe dá uma memória de palavras e imagens, esse "inventário domesticador" ‑ o que, em última instância, poderá explicar porventura a natureza desse "pecado" originário ‑ uma convenção, um contrato, nos quais radica a reemergência da faculdade da indiferença e do esquecimento.
Instituída assim uma amnésia do tempo e da história, denegado o acontecimento e as singularidades, através de um saber circunscrito ao "pequeno mundo" da política e da catástrofe, resta a memória algorítmica, ou a "poiética" de uma memória ‑ Jean‑Luc Godard lembrava que se a televisão produzia de facto e esquecimento, o cinema havia criado os seus "souvenirs"... Mas, dir‑se‑ia então, é no espaço do esquecimento que novos holocaustos aguardam a sua vez.
Tal como, no écran catódico, em pleno processo vertiginoso, as imagens se confundem de imagens, também a memória do mundo e das coisas atinge o seu estádio de degradação, não por um excesso de imagens e de memória, mas antes pelo seu recalcamento, por aquilo que Foucault reconhecia ser a possibilidade de memória de um qualquer acontecimento: «Mostra-se às pessoas não aquilo que elas foram, mas aquilo que é necessário que elas se lembrem que foram». O que é algo diferente do "métier de vivre" de Bill Viola (1988:372): «Le regard est son exercice, le monde son théâtre, la perception son mode de passage, la mémoire sa condition» 6 .
Poder‑se‑ia pois dizer, com Florence de Mèredieu 7, que todo o sistema do visível e da representação, tão fina e pacientemente construído após a Renascença, parece assim desagregar‑se brutalmente na pequena dimensão do écran video, quer no self‑media, no video alternativo, quer no écran generalista ou temático, ainda que, com diferenças expressas. Figuras do presente e do diferendo que o encerra, as práticas e as representações singulares da arte vídeo ‑ essa "estética do narcisismo" contemporâneo, como lhe chamou Rosalind Krauss, colocam‑se na linha de resistência ao fluxo, expõem sobretudo um "trabalho de memória" que guarda uma certa verdade, salva a ideia de real - pois, como defendia Godard (referindo‑se ao desporto na televisão), tratar‑se‑ia do trabalho mostrado na sua durée, ou seja, tratar‑se‑ia da memória de um corpo possível de decompor nos seus mais ligeiros movimentos, numa vertigem sem tempo, como em Marey ou Muybridge.
Se ao vídeo alternativo e aos self-media cabe o desvelar dos segredos do sujeito reflexivo, participativo, e do seu processo de afirmação e individuação, à televisão restar‑lhe‑á a prosa do mundo, o corpo inscrito pelos signos que iludem o 'naturalismo' do real. A televisão será, assim, não uma "janela sobre o Mundo", mas um interface‑écran que na sua vertigem centrípeta absorve o vitalismo dos seres, das coisas e do mundo, dando a ver apenas os seus restos e fragmentos ‑ figura, aliás, da "grande política" e do desempenho mediático dos seus protagonistas, da actualidade trágica e do fait‑divers.
E no que concerne à imagem electrónica, a arte vídeo será nesse sentido uma "anti-televisão", espécie de índice‑limite da expressão dos traços constitutivos do sujeito moderno: «Se a comunicação de massa preenche mais ou menos no mundo contemporâneo as funções positivas que eram outrora as da antiga retórica, se a televisão, mais particularmente, detém hoje uma função global de regulação da invenção e da memória, o auto-retrato (vídeo) é naturalmente a expressão mais subjectiva da resistência que a arte vídeo opõe de modo específico à televisão (contra, totalmente contra)» 8. Sem dúvida que o pioneirismo do vídeo e da arte‑vídeo, que remonta ao pós‑experimentalismo do novo cinema americano dos anos 40 e 50, nomeadamente através dos trabalhos de Vostell e Nam June Paik (recorde‑se a sua importante exposição já em finais dos anos 60, "TV as a creative medium", na Howard Wise Gallery), permitem configurar estratégias cuja especificidade remete para um reencontro entre o electrónico e o cinematográfico. O próprio conceito restrito de self‑media, de que todos eles eram adeptos, corresponde claramente ao seu posicionamento enquanto artistas e críticos perante a linguagem convencional da televisão. Dir‑se‑ia inclusive que não se tratava de uma demarcação elitista face à TV, uma vez que as suas propostas surgiam no sentido de propor uma maior participacão das experiências sociais, de uma televisão "do real", verdadeira alternativa ao discurso dos grandes meios, e portanto de um maior acesso das diferentes comunidades à televisão (esse era por exemplo o objectivo das street‑tapes produzidas pelos colectivos‑vídeo em diferentes cidades norte‑americanas, experiências que mais tarde se desenvolveriam em TV's locais, comunitárias e redes por cabo). Como diria o documentarista Geoffrey Reggio, trinta anos mais tarde, «os acontecimentos relatados pelos media não interessam ‑ não é isso que está a acontecer».
No fundo, passado todo esse tempo, os problemas continuam os mesmos... O dispositivo mantém‑se. O trabalho a realizar continua ainda a ser o mesmo ‑ recusa das práticas e dos modelos constituídos, reencontro das fissuras a partir das quais pode irromper a paixão, o "mundo da vida". Nem que para tal se deva invocar a interactividade e o video on demand - o que representará sem dúvida uma ruptura no actual dispositivo da televisão generalista clássica. «A questão é de se chegar a sociedades autónomas, verdadeiros laboratórios de resocialização(...). É necessário aumentar o desejo de desenvolver uma alternativa ao modo de grande difusão. Isso implica evidentemente elaborar o protótipo de uma revolução da comunicação, de a simular: ao desenvolver uma meta-arquitectura social devemos permitir um largo acesso público a modelos de redes conversacionais auto-geridas pelos utilizadores» 9 .
É esta resistência, esta tensão, que a televisão tenderá por certo a reduzir, abrindo‑se ao pulsar do mundo e das coisas, ao conjunto das experiências sociais, indo assim ao encontro dos seus "dissidentes" e das singularidades, democratizando‑se, operando a transformação do sujeito‑estatístico, destinatário fantasma, em sujeito operante, reflexivo, "actor" em corpo, actor em desejo, actor que vê com o corpo todo.

1 Desaulniers, Jean-Pierre, "Télévision et nationalisme", Communication et Information, Vol. VII, nº 3, pp.25-36.
2 Nöel Nel, Le débat télévisé, Paris, Armand Colin, 1990, pág. 132.

3 Michel Kokoreff,"Sérialité et répétition: l'esthétique télévisuelle en question", Paris, Quaderni, nº 9, 1989/90, Hiver, pp. 19-39.

4 Um depoimento de uma entrevistada dado a Jean-Pierre Corbeau (1978) aquando da realização do seu trabalho de campo intitulado Le village à l'heure de la Télé explicitava isso mesmo: «A 19h20 je me dis, bon maintenant, si tu veux connaître la suite, il faut attendre jusqu'a demain 19 heures, je sais qu'a mon âge, je risque de faire le grand saut, et c'est pour cela que chaque fois que j'entends la musique de générique, je pense, tu as vécu un jour de plus» (p.115).
5 Paul Virilio, "La lumière indirecte", Communications, nº 48, 1988, Paris, Seuil, pp. 45-52.

6 Bill Viola, "Y aura-t-il copropriété dans l'espace de données?", Communications, n º 48, 1988, Paris, Seuil.

7 Florence de Mèredieu,"Babel TV", Revue d'Esthétique, nº 10, 1986,Toulouse, Privat, p. 248.

8 Raymond Bellour,"Autoportraits", Communications, nº 48, Paris, 1988, pp. 345-346.
9 Gene Youngblood,"Vidéo et utopie", Communications, nº 48, 1988, Paris, Seuil, pp. 176-181.

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