2006 tele(re)visto
Começou também com um (por todos os motivos) elucidativo comunicado da AACS (4 de Janeiro de 2006), em despedida de funções, sobre a censura e a discriminação televisiva da pré-campanha para a Presidência da República.
Com a eleição da ERC, a 2 de Fevereiro, depois de atrabiliárias configurações do seu conselho regulador e da questão da sua independência – que é, de um maneira geral, também a questão das nomeações governamentais dos reguladores sectoriais – ficava a certeza, neste final de ano de 2006, de que este regulador teria tido um ganho claro em transparência se, como se fez agora na ERSE, ou como se fez na Anacom, na AdC, etc., os seus líderes fossem nomeados pelas respectivas tutelas. Tinha-se poupado muito papel e tinta e os pontos tinham ficado bem em cima dos ii.
O ano correu sob o signo da ‘monocultura’ telenovelística, não se sabendo se o Regulador ainda está a fazer contas às 10 horas de novelas com que SIC e TVI ‘embrulham’ os seus telejornais, num verdadeiro atentado à sanidade mental de miúdos e graúdos deste país, ou se a ERC já está também anestesiada pela droga electrónica produzida em doses industriais em Carnaxide e Queluz de Baixo.
E estamos no cinquentenário da Televisão em Portugal. Ao fim destes 50 anos de história, é mais do que tempo de exigir que a RTP1 vá ao encontro do caminho pedido pelo Tribunal de Contas (já que o Regulador até agora mostrou pouca vontade de o fazer), através de uma inequívoca ética de antena e de um inequívoco Serviço Público prestado aos Cidadãos deste país.
A verdade é que o sector televisivo, desde 1992, é ele próprio um desregulador dos media em Portugal. Como escrevemos, as consequências dos erros cometidos na regulação e na gestão política do audiovisual conduziram, em Portugal, a um sistema extremamente crítico no sector televisivo, que, claramente, não se estruturou, como a Lei prescreve, em ordem à satisfação do interesse público. Daí, este ser um sector:
i) Sem mercado suficiente para todos os operadores;
ii) Sem indicadores precisos e estudos independentes, claros, objectivos, com metodologias técnico-científicas apropriadas, sobre o desempenho do Audiovisual público e privado ao longo das concessões/alvarás;
iii) Sem uma estratégia aplicada, de referência, para o audiovisual público e sem objectivos ou metas quantificáveis, designadamente no tocante à sua missão e obrigações de programação;
iv) Sem regulamentação específica, com detalhe, no que é estratégico (ex: renovação das licenças de TV);
v) Sem cadernos de encargos atribuídos, enquanto tal, aos operadores privados;
vi) Sem monitorização consistente (até ver), atenta e regular da “ética de antena” e dos conteúdos emitidos pelo serviço público de TV e pelos canais privados.
Para além disso:
i) Existe uma “espiral de silêncio” na SIC e na TVI que eliminou o debate público, cultural e político nas suas grelhas de programas;
ii) A informação está regularmente submetida ao ‘diktat’ de estratégias de programação, desprogramação e contra-programação dos canais, bem como à actualidade trágica e à catástrofe;
iii) Os telejornais continuam também submetidos a uma organização burocrática e mimética da informação dependente da agenda institucional e dos porta-vozes oficiais, censurando na maior parte das vezes a virtude civil, a expressão da Cidadania, a experiência social e não tendo uma visão estratégica do país;
iv) O horário nobre está, nos três canais de maior audiência, fidelizado horizontal e verticalmente, tem um elevado défice de diversidade e de pluralidade de géneros televisivos e uma ‘monocultura’ praticamente exclusiva de dois géneros: novelas e concursos;
v) Existem canais (ex: SIC) de tal modo contaminados pelas novelas brasileiras, que não têm uma grelha generalista e não assumem o desígnio da Lei no plano da identidade cultural e nacional portuguesa;
vi) O cumprimento de quotas europeias está assente numa lógica descartável (de nivelamento por baixo) de programação de “fluxo” sem qualquer tipo de exigência no âmbito da programação de “stock”, onde até o telelixo serve para preencher quotas (com o beneplácito régio dos burocratas de Bruxelas).
No caso do principal canal de Serviço Público, a RTP1:
- mantém-se uma grelha de programas dependente de uma obsessão audimétrica/comercial;
- verifica-se a não subordinação das grelhas a estudos qualitativos estruturados em função da missão e das atribuições e competências enunciadas no Contrato de Concessão;
- verifica-se a inexistência de magazines sobre as artes, o património, a língua e a cultura portuguesa;
- em regra, a inexistência de programas de divulgação e de formação para a cidadania;
- a inexistência regular de documentários;
- também a inexistência de cinema e teatro português;
- e das outras artes do palco portuguesas, de programas eruditos, etc;
- e de programas infantis e juvenis à semana.
E registe-se a entrada em funções do Provedor da RTP, esperando-se que venha a conseguir passar a mensagem de que o Serviço Público de Televisão antes do(s) interesse(s) do(s) público(s), tem um programa de interesse público por cumprir.
Registe-se também, no contexto da renovação das licenças das privadas, que passados 15 anos sobre a atribuição dos alvarás da SIC e TVI, a ERC, na sua Deliberação 1-L/2006 - "Renovação das licenças para o exercício da actividade televisiva dos operadores SIC e TVI", vem considerar, na conclusão do documento, que na análise realizada se verificou “o incumprimento de obrigações assumidas pelos requerentes”. Considerando ainda que “os objectivos constantes da ordem jurídica relativos à actividade de televisão pressupõem o estrito cumprimento das obrigações a que os operadores SIC e TVI estão adstritos, em especial nas áreas da programação infantil, cultural e informativa”, a ERC decidia-se pela renovação das licenças, na condição do cumprimento de certas “obrigações” por parte da SIC e da TVI.
SIC e TVI deverão, genericamente, “emitir uma programação que contribua para a formação e informação do público e para a promoção de língua e cultura portuguesas, tendo em consideração as necessidades especiais de certas categorias de espectadores, entre as quais as crianças e os jovens; contemplar na sua programação os interesses gerais e diversificados do público, incluindo grupos minoritários, étnicos, religiosos, culturais e sociais; emitir programas de informação dos sub-géneros debate e entrevista, autónomos em relação aos blocos noticiosos diários, com periodicidade não inferior a semanal; emitir, diariamente, programas dirigidos ao público infantil/juvenil, no período da manhã ou da tarde; emitir programas de natureza cultural e formativa, nomeadamente, obras de criação documental, teatral, cinematográfica e musical, depois das 23 horas, em horário de audiência não reduzida e com periodicidade regular; diversificar os géneros da programação emitida no chamado “horário-nobre” (20h00-23h00)”, etc.
De um modo geral, as Obrigações agora impostas pelo regulador vêm ao encontro do espírito da Lei e do referido “interesse público” originário, o que deve ser, obviamente, aqui salientado.
Registe-se a importância da OPA da Sonaecom sobre a PT, que teve dois grandes méritos: o de mostrar que privados podem por reguladores e incumbentes na ordem - obrigando os primeiros a imporem a concorrência onde sempre estiveram os monopólios e evidenciando aos segundos que onde deveriam ser triple e quadruple players não são mais do que empresas que concorrem contra si próprias e contra os preços finais no consumo, em benefício próprio.
Por fim, registe-se também que 2006 foi um ano importante em termos legislativos: Estatuto do Jornalista, Lei da Concentração, Lei da Televisão, todos eles documentos com aspectos críticos, nomeadamente em matéria de direitos de autor e de incompatibilidades (estatuto) e em matéria de prestação de serviço público (Lei de TV), que mantém, entre outras coisas, o regime legal de ‘apartheid’ cultural entre a RTP1 e a RTP2, colocando a cultura portuguesa no ‘ghetto’ da RTP2, como se faz há mais de 20 anos neste país, com efeitos muito perniciosos para a cidadania e a democracia em Portugal.
Talvez por isso, Jorge Sampaio alertava em 2006 para os impactes da TV na vida democrática. Num depoimento à TV 7 Dias (ed. especial, nº 1000) dizia o ex-presidente da República: “ (…) Ninguém é obrigado a ver o 'telelixo' e não sei se isso não é apenas uma necessidade de rentabilização e de conseguir audiências. Penso que pode criar novos problemas à vida democrática (…)”.
Será que alguém o quer mesmo ouvir?
Etiquetas: ERC, Serviço Público, Telelixo
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