5.5.05

Os media regionais face à TV Local

[ainda a propósito do Congresso da APR]

De que se fala quando se fala de televisão local? De uma liberalização anarquizante, espécie de cacofonia televisiva, onde tudo e todos têm acesso a um bem escasso? Claro que não. Fundamentalmente, e por maioria de razão em oposição às famigeradas globalizações, de que sejam criadas as condições para que, por exemplo a cidade ou as regiões A, B ou C possam vir a ter também o seu modelo de comunicação audiovisual, o seu canal local de televisão, seja através da net, da TV digital terrestre, ou da televisão de acesso, comunitária, ou outra, específica ainda da velha radiodifusão hertziana.

Todos concordarão, naturalmente, não ser possível passar um atestado de insanidade económica e cultural aos habitantes e ao potencial das grandes cidades e das regiões portuguesas que os afaste irremediavelmente de um projecto de TV local, emanado directamente da sua sociedade civil, ou de qualquer grupo autónomo dos seus cidadãos.

O tema desta reflexão configura desde logo, no seu próprio título, uma preocupação - ou a procura de informação - no sentido de se saber do impacto das televisões de proximidade (locais e regionais) num mercado já de si pequeno para os operadores existentes, tanto no sector da Rádio como no da Televisão, bem como ainda no da Imprensa.

A questão é sem dúvida importante, mas uma resposta técnica a essa inquietação, para além de não poder decicir de per si sobre a possibilidade e a legitimidade do arranque dessas mesmas televisões de proximidade, implicará um estudo económico aprofundado sobre os cenários futuros do mercado no contexto da chegada das novas televisões, nomeadamente dessas. Nesse sentido, aliás, foi recomendado, no passado, designadamente pela Comissão de Reflexão Sobre o Futuro da Televisão, um estudo técnico nessa área precisa. A dúvida sobre esta matéria vai no sentido de nos questionarmos sobre o verdadeiro e último objectivo de um estudo técnico no quadro de uma tomada de decisão política. Ele deveria ser, em primeiro lugar, um estudo de enquadramento da questão e de aconselhamento, de informação. E tão só isso. Quero dizer: será possível impedir, no limite, a emergência de um meio de comunicação com as características de uma televisão local ou regional com base no argumento económico da insuficiência do mercado publicitário? A ver pelos projectos entretanto surgidos no audiovisual português através da TV Cabo e todos os outros que se anunciam esta é já uma falsa questão.

Mas mesmo que assim não fosse, a resposta seria negativa. Fundamentalmente por três motivos. Em primeiro lugar, pelo argumento político de fundo: o direito ao audiovisual no plano das regiões e das comunidades locais é um direito que se configura no quadro do direito à cidadania e à liberdade de acesso ao sistema dos media pela sociedade civil, em particular pelos cidadãos do interior do país - ou das ilhas - que habitualmente não se reconhecem nos meios de comunicação de cobertura nacional. Em segundo lugar por um argumento jurídico formal: em abstracto, a legitimidade de existência de uma televisão local ou regional é idêntica à de uma rádio local ou regional. Em terceiro lugar pelo argumento cultural, ou seja, pela necessidade das regiões e das comunidades locais participarem de forma activa no modelo de comunicação audiovisual cada vez mais próximo das suas tradições e das suas realidades quotidianas e culturais, e cada vez necessariamente menos dependente de fluxos de informação globalizantes e/ou pan-europeus, mais afastados do modelo de comunicação que a Europa precisa para o seu projecto político, económico e cultural.

Gostaria de introduzir agora uma nova vertente que se prende com a mutação no plano dos media, dos mass media para os self e cyber media, na perspectiva da Sociedade de Informação. Dizia Manuel Castells que a Sociedade de Informação, ao mesmo tempo que diversifica as imagens concentra o poder de produzi-las e a capacidade de emiti-las, fazendo da sua virtualidade a nossa realidade. Na perspectiva de Alain Touraine, do que se deveria tratar seria, com efeito, de uma reconversão e actualização das estratégias públicas na área da cultura face à esmagadora mundovisão. De facto importa hoje pensar seriamente o conjunto de práticas, estratégias e tecnologias, que, concentrando a área de media, modelizando e uniformizando fluxos, criam novas legitimidades que dissimulam realmente o desaparecimento da virtude civil e, em acréscimo, reciclam os velhos impasses dos sistemas participativos e as múltiplas crises de autonomia comunicacional e interaccional dos cidadãos. Ora, em primeiro lugar, a comunicação audiovisual no plano local e regional deve criar uma alternativa a esses bloqueios clássicos e, mais, às próprias linguagens e fluxos de programas que pouco têm a ver com as realidades locais e regionais e com as suas especificidades singulares.

A grande questão é, ainda, num tempo de afluxo de estratégias de comunicação conglomeradas, problematizar exactamente o lugar das singularidades, o lugar das subjectividades dissidentes, pensar o lugar do Outro, de todos os diferentes, na cultura modelizadora deste final de século. O campo audiovisual, designadamente o que está ligado aos grandes fluxos de difusão de programas de TV, videos e filmes, é, assim, no plano estratégico, no plano das discursividades e dos contextos historico-culturais, um dos eixos preferenciais, necessariamente incontornáveis, para a reflexão nesta área e para argumentar claramente na tomada de decisão.

Trata-se portanto de inverter no plano local esse efeito perverso e os modelos protocolares, normativos, comportamentais, que o audiovisual dos impérios macroculturais difunde como uma espécie de novo dogma. É pois contra este receituário da mundialização, contra a contaminação dos particularismos, localismos, que se apela sempre, de modo a preservar as redes de singularidades, enfim, as identidades, as culturas e as tradições locais. E aí não há dúvida que novas competências emergem relativamente à acção das administrações centrais e regionais, das suas estratégias de comunicação e de afirmação autónoma dos seus cidadãos.

E se é um facto que a definição da estratégia do país para a globalização não pode ser hipotecada aos localismos, também o desenvolvimento da comunicação local e regional deve ser salvaguardado face aos interesses dos grandes conglomerados mediáticos por forma a proteger-se, como se disse, a cultura local, os particularismos e o conhecimento das realidades locais.

Importa reter sobretudo o seguinte: não é de todo aceitável que uma lógica de eficácia ou de mercado, ou qualquer lógica económica restritiva possa vir a substituir-se aos princípios e valores da própria ordem democrática onde ela é exactamente mais sensível, isto é, no plano da liberdade de expressão, no plano da liberdade de comunicação e no plano da liberdade de cidadania. Julgo, correndo o risco de pactuar com a utopia, que o direito às TV's locais e regionais está aí mesmo.

Há depois uma reflexão crítica a fazer em torno dos conceitos de Interactividade e Democracia. De facto, hoje é possível afirmar que há um debate que se está a fazer na sociedade portuguesa em torno das temáticas da sociedade da informação e das tecnologias interactivas, procurando-se os atalhos que nos conduzirão à era digital plena. Importa, naturalmente, como tenho dito, alargar esse debate o mais possível, e colocá-lo, de preferência, nos grandes meios de comunicação social. A questão para a qual me proponho sugerir algumas interrogações prende-se com a dúvida em torno da relação intertactividade vs. democracia. Ou seja, será assim tão líquido que a comunicação interactiva que se anuncia nos conduz rapidamente ao paraíso da democracia directa, ou esse não será mais um dos mitos cíclicos do fenómenos comunicacional e mediático? Essa era, por exemplo, a crença de Bertold Brecht, quando, nos anos 30, criticava o meio rádio, então emergente, por não ser um «autêntico processo de comunicação democrática».

A questão coloca-se de forma mais complexa, mais crítica também: a evolução dos meios de comunicação de massa, nos seus percursos contrários - por um lado, os sistemas hiperconcentrados, controlados ainda pelos velhos aparelhos de Estado e instituintes das normas enquadradas muitas das vezes por um quadro político e jurídico da era industrial, por outro, os sistemas miniaturizados, que abrem, como disse Guattari, a possibilidade de uma apropriação colectiva dos media, designadamente pelas minorias, e pelas diferentes comunidades em geral -, tinha, na sua vertente minimal, e concretamente no caso italiano, uma característica nova, «não oficial» pelo menos, ao contrário do que acabou por acontecer em França, com a atribuição de frequências a quem assegurasse pela sua representatividade a «boa emissão».

De facto, é num contexto de experimentação de um novo tipo de democracia mais aberta e mais partilhada que se inscreve a questão da comunicação regional, ou da televisão comunitária. Esta utopia da plena interactividade, mais tarde, nos anos 80, relançada pelo Relatório McBride da Unesco, para uma Nova Ordem Internacional da Informação, reconhecia a necessidade de lançar aquilo a que se chamava então o «princípio da reciprocidade na comunicação». Mais uma vez tratava-se aqui de reconhecer os direitos inalienáveis à comunicação, à cidadania e a novas relações de produção na informação. Hoje pode pensar-se que a Internet e a interactividade podem cumprir a utopia e relançar a civilização para uma nova lógica social de comunicação, mais participativa, directa. Mas aí estamos certamente, de novo, submersos nas lógicas da utopia.

Voltando ao tema das televisões locais e regionais, de facto, se há jornais e rádios locais, por que não um canal de televisão, eventualmente participado por esses mesmos jornais e rádios, pelos investidores locais, associações, universidades, enfim, uma televisão à escala da região, com emissores de baixa potência, para uma zona de cobertura limitada? Têm argumentado os opositores das TV's regionais e locais várias ordens de razões: por um lado, não haver mercado publicitário; por outro lado, estar-se a criar o grande coveiro das TV's nacionais; por último, que a participação, mesmo lateral, dos municípios nas TV's regionais ou locais poderia dar azo a algumas prepotências e inclusivamente a guerrilhas interegionais.

Tudo isso pode ser verdade. Desde que o mercado esteja desregulado, e que tudo seja permitido, um pouco como aconteceu em Itália no final dos anos 70, é possível que os lamentos dos opositores das regionais se viesse a confirmar. Mas é isso precisamente que a experiência aconselha a evitar. Vejamos então os três dados da questão: quanto ao mercado publicitário, não é crível que, por exemplo a nível local - pense-se em Bragança, Viseu, Coimbra, Castelo Branco, Faro, Funchal, etc. -, não existam recursos privados para lançar pequenas televisões locais. Não é crível, também, que não haja um mercado publicitário local. Na maior parte das grandes cidades e em regiões turísticas, esse mercado existe e pode dar retorno aos investimentos realizados.

Resta uma questão: saber se o mercado permite televisões regionais hertzianas na Grande Lisboa e no Grande Porto, que são as regiões mais atractivas para o mercado da publicidade. E aí, até prova em contrário, penso que não, que não será nada saudável. Mas por esse país fora, sobretudo no plano local, onde haja desenvolvimento e agentes económicos e culturais determinados, então, que mil televisões floresçam, passe a alusão...

Ora, se nem sempre é verdade que «mais televisão seja melhor televisão», o facto é que quase sempre é verdade que «mais comunicação é melhor participação». Essa tem sido, pelo menos, uma verdade irrecusável, desde que o Homem conhece as primeiras formas simbólicas de comunicação. Todos concordarão, certamente, que as sociedades mais avançadas neste final de século - designadamente os EUA, a Europa e o Japão - têm hoje um sistema democrático representativo que é cada vez mais participado pela opinião pública e pela sociedade civil, justamente pelas facilidades que os meios de comunicação cada vez mais proporcionam.

Estamos entretanto a evoluir de uma sociedade em que ainda predominam os mass media - a imprensa, a rádio, a televisão -, para uma sociedade cada vez mais participada pelos cidadãos através dos novos media - o computador pessoal e a Internet; telemóvel, as rádios e televisões locais através de protocolo IP, e também comunitárias e temáticas, os serviços interactivos, Webpages, chat’s, etc., etc. Passa por aí a «via rápida» para era digital plena.

Portugal deu, já em Março de 1997, um importante passo na descentralização das emissões de televisão e na afirmação do serviço público de televisão. Precisamente na data do 40º aniversário da RTP, eram lançadas as emissões de informação regional, de norte a sul do país, centradas em seis capitais de distrito. Trata-se de uma medida há muito pretendida pelas comunidades e centros urbanos do interior, que a partir dessa altura passaram a ter a sua pequena «aldeia local» na demasiado imensa aldeia global.

Fizeram-se alterações legislativas na área do cabo, que permitem emissões temáticas aos operadores de televisão por cabo e emissões regionais. O que significa que a paisagem audiovisual portuguesa caminha de facto para algo muito diferente da «paleo-televisão». É curioso ver os diferentes movimentos e iniciativas que um pouco por todo o lado discutem e preparam futuras emissões locais e regionais. Escolas profissionais, Universidades, Empresários locais e Câmaras, mais directamente envolvidos, mas também o Turismo, a Indústria, o Comércio local/regional, os operadores de comunicações, etc., todos estão atentos aos desenvolvimentos próximos no sector.

E não se pense que as rádios locais e a imprensa regional podem vir a ser afectadas pelas futuras televisões locais e regionais. É que tanto uns como outros são dos mais interessados na abertura da legislação, precisamente, às televisões locais e regionais (veja-se, entre outros, o encontro do Movimento para a TV's Regionais Portuguesas em Mangualde, organizado também pela Rádio Mangualde).

Por fim, o argumento técnico, que demonstra que muita coisa está em aberto no que diz respeito a mercado publicitário. Jean-Louis Laborie, um dos mais prestigiados especialistas da Europa em «media research», divulgou um estudo, por si coordenado, no qual conclui, um tanto surpreendentemente, que o poder das mensagens publicitárias em Televisão é menor do que na Imprensa. Deste estudo infere-se que a Televisão é presentemente o «media» que distorce mais os efeitos das mensagens publicitárias junto do público-alvo dos anunciantes. Com efeito, a avaliação do «tempo médio publicitário individual» é feita analisando o comportamento do público perante os media e as suas mensagens publicitárias. Se, por exemplo, um telespectador assistiu a um programa de informação com meia hora de duração no qual foi passado um único «spot» publicitário, apenas «contactou» com 8 segundos de publicidade em 30 minutos de programação; pelo contrário, segundo Laborie, a publicidade inserida nos jornais e nas revistas está durante mais tempo no campo visual do leitor, o que faz com que ele «contacte» também durante mais tempo com as mensagens. A Televisão não é o media tradicionalmente dominante e nem sequer se aproxima da Imprensa no que se refere à duração da frequência dos seus espaços publicitários: o «tempo publicitário» eficaz, em termos do consumidor-alvo, é bastante maior para a Imprensa - 19 minutos diários contra 11 da Televisão. Este estudo é, sem dúvida, um pequeno exorcismo da publicidade, mas a verdade é que um exorcismo maior acaba de chegar ao mercado português, e esse vem corromper, de forma paciente mais irrefutável, todas as lógicas de eficácia possíveis de descortinar pelo media research: chama-se publicidade interactiva, e mais uma vez trata-se de algo que pode beneficiar a comunicação «global», abrindo certamente um espaço à publicidade «local», que aliás ela não tem no actual modelo publicitário.

Embora não deva ser impeditivo político do desenvolvimento das TV's locais e regionais, deve ser naturalmente exigido um estudo aprofundado sobre o impacto das TV's locais e regionais, hertzianas e por cabo, no quadro dos mercados publicitários emergentes. E no diálogo com o legislador os protagonistas dos sectores mais interessados, designadamente os media regionais, devem naturalmente ser interlocutores privilegiados e devem ter o reconhecimento das suas competências, tratando-se de eventual parte interessada no processo de atribuição de alvarás de futuros canais de TV local/regional.

Em conclusão: como diz Giuseppe Richeri, as televisões pan-europeias e mesmo as TV's nacionais não conseguem ter em conta as diferenças das regiões e o que inevitavelmente acabam por fazer é tentar anulá-las em vez de as valorizar. As futuras TV's locais e regionais devem no entanto renunciar a produzir em pequena escala os modelos de programação das grandes redes nacionais e internacionais, aproveitando as oportunidades do processo de construção política e cultural da Europa e revalorizando sobretudo as identidades dos cidadãos europeus começando pelo seu contexto linguístico, cultural e geográfico de origem.


* Publicado na Observatório, nº 2, Novembro de 2000.
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