5.1.05

as Imagens que fazem tropeçar a História também são Arquivo


(a propósito do facto de a UNESCO relançar o International Appeal for the Preservation of the World Audiovisual Heritage - “The world audiovisual heritage that bears witness to the people's cultural identity is under immediate threat. 200 million hours of audio and video records are endangered, particularly in the developing countries” says the International Federation of Television Archives inviting for on-line signatures to its “Call from Paris”)

O conceito de ‘documento’ evoluiu no Tempo. Da Pré-História à Escrita, dos meios de massa da era industrial aos cyber media.

No passado, o Monumento liga-se intencionalmente ao poder de perpetuação das sociedades históricas. O termo latino documentum evoluiu para o significado de ‘prova’ e para o positivismo, no séc. XIX - foi o fundamento (texto) do facto histórico.

Samaran dizia que ‘Não há história sem documentos’. E Paul Zumthor: ‘O texto é mais frequentemente monumento do que documento’. É o produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de forças que aí detinham o poder.

Os Media e o retorno do ‘acontecimento’ criaram o conceito de documento-monumento, trouxeram a crítica do acontecimento (événement) e a convicção de que não há acontecimento sem os Media.

No século XX, os Media substituem-se ao historiador, que legitimava o real no passado. São eles que hoje criam o acontecimento e o ‘real’ e de alguma forma o legitimam.
E as escolas críticas vêm dizer que os media não falam do que verdadeiramente está a acontecer…

Do que falam então os media (a informação)? Do privilégio do acontecimento-catástrofe, do acontecimento-espectáculo, da actualidade trágica e do fait-divers.

E, em consequência, da menorização da virtude civil, da experiência social, da vitalidade da sociedade civil. Não há, tão pouco, uma discriminação positiva do acontecimento, que é a antítese da mercantilização da notícia.

Jacques Le Goff dizia que, «no limite, não existe o documento-verdade. Todo o documento é mentira. Cabe ao historiador não fazer o papel de ingénuo. (…) Qualquer documento é ao mesmo tempo verdadeiro e falso, porque um monumento é em primeiro lugar uma roupagem, uma aparência enganadora, uma montagem».

Uma análise de caso de uma ‘massa’ documental: por exemplo, o Diário de Notícias, na sociedade portuguesa, ao longo do Século XX (foi, ao longo do século passado, monárquico, republicano, fascista, comunista, socialista, social-democrata…) o que ilustra bem o facto de a história e o arquivo dos média ser sobretudo um 'ensimesmamento', de passar ao lado do que está a acontecer.

Há que ter consciência de que o acervo documental do Audiovisual hoje, para além do ‘não-dito, inclui um pouco de tudo: documentos manipulados, instrumentalizados, desfocalizados, forjados, verosímeis, verosimelhantes, factuais, bons e maus trabalhos jornalísticos, boas e más imagens, etc. É também com todos eles que se fará a História e se procurará configurar um real que é já passado.

Há que ter consciência das leis da ‘arqueologia’ dos documentos e da lei do Arquivo – o Arquivo não é apenas o conjunto de uma massa documental. É sobretudo a lógica que dele se extrai, o sentido que lhe deu origem e que é exposto pela descrição intrínseca dos seus documentos-monumentos.


Há que ter consciência da lei da Raridade – da complexidade do real e do facto de só termos conhecimento de um certo número de traços e de relatos, os únicos – os raros – que finalmente emergiram à ‘dignidade’ mediática.

A ‘raridade’ dos documentos reforça a importância do seu arquivo e da sua boa conservação. A complexidade do ‘sentido’ do Arquivo reforça a importância do seu estudo e de práticas de investigação histórica e documental patrocinada pelas entidades que regulam a investigação científica. Mas também por iniciativa das próprias empresas de media, face à necessidade de produção de conteúdos com base documental.

A importância dos documentos Audiovisuais tem ainda a ver com os impactos desses mesmos documentos na sociedade contemporânea. Se algumas imagens mudaram a História: as manifestações de Chicago de 1965; Walter Cronkite, a TV e a Guerra do Vietnam; a emergência da TV na África do Sul e o fim do apartheid; a queda do Muro de Berlim (RDA, Roménia, etc.); as imagens de Timor, etc., o facto é que uma boa parte das imagens faz tropeçar a História.

A ‘Caixa que Mudou o Mundo’ mudou realmente o Mundo? Mudou a experiência social e vivencial do Norte para o Sul? Mudou a experiência cultural e o saber no plano da humanidade no seu conjunto? Mudou o Mundo no sentido de um Mundo mais solidário? Conseguiu fazer passar uma mensagem e uma prática civilizacionais?

Ou a ‘caixa’, no fundo, tem sobretudo tendência a tornar mudo o Mundo?

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