30.7.04

Modelos e profecias da aldeia global: Marshall McLuhan


Se o paradigma de McLuhan é pobre, o seu sintagma é rico (Edgar Morin)


É nos anos 40 que a análise sociológica da comunicação de massa toma corpo, nomeadamente nos Estados Unidos da América, com a investigação quantitativa dos efeitos dos media. Prosseguiu depois, logo após a II Guerra Mundial, entrando nos domínios do processo de comunicação, analisando os mecanismos lineares da transmissão da mensagem.
Praticamente só nos anos 60 os investigadores europeus, já sob um ponto de vista sociocultural, começaram a abordar os fenómenos da comunicação de massa, sendo dada a partir daí uma importância cada vez maior às funções do emissor e do receptor, isto é, aos «dois protagonistas do acto de comunicação», como Roman Jakobson sintetizou na sua então muito citada conferência da Universidade de Indiana, em 1952 1.
Inicialmente, o acto de comunicar era descrito, na sua forma mais simples, num esquema em que se colocava um agente emissor enviando uma mensagem para um público passivo. Este modelo, um tanto rudimentar, foi necessariamente evoluindo. Em 1948, enquanto Jakobson prossegue os seus estudos no campo linguístico, considerando que cada unidade linguística estava bipartida e comportava dois âmbitos - um sensível e o outro inteligível - de um lado o signans - o significante de Saussure - do outro lado o signatum - o significado 2, no âmbito da teoria da comunicação o processo, em toda a sua extensão, é decomposto por um professor de Direito da Universidade de Yale, Harold D. Lasswell 3 .
O modelo por si proposto, inscrevia-se num tempo de pesquisas em que se começou a observar um alargado estudo do fenómeno da comunicação aos diversos níveis, desde a produção da mensagem aos seus efeitos sociais, passando pelos canais de transmissão e pelo conteúdo da própria mensagem.
O paradigma de Lasswell propunha a divisão do processo de comunicação em cinco partes: Quem (emissor) diz o quê (mensagem) através de que meio (media) a quem (receptor) e com que efeito (impacte).
Ainda no ano em que Lasswell apresenta o seu paradigma dos efeitos (ao fim e ao cabo baseado na sua fórmula "Politics: who gets, what, when, how?"), título de uma sua obra de ciência política publicada em Nova Iorque em 1936), dois matemáticos norte-americanos publicavam aquilo a que chamaram a «teoria matemática da comunicação». Tratava-se aqui, obviamente, de informação quantitativa, a qual remetia exclusivamente para mensagens denotadas. Os autores desta nova teoria, Claude Shannon e Warren Weaver, acabaram por descrever o processo de comunicação com uma maior precisão, agregando, por assim dizer, ao modelo elementar, as componentes de transmissão da mensagem, isto é, a transformação da mensagem em sinal susceptível de ser transmitido pelo canal, e ainda a fonte de ruídos 4 .
A grande utilidade desta teoria foi, como notou Jean Cloutier, distinguir claramente os canais de transmissão das mensagens que eles próprios comportam 5. Mas vejamos esquematicamente como estava organizada a teoria matemática de Shannon e Weaver: Fonte de informação (produtor da mensagem) - transmissor (função de codificação técnica) - canal (meio de transmissão) - receptor (que é nessa teoria exclusivamente técnico) - destino (destinatário, pessoa). A fonte de ruídos, ou seja, qualquer obstáculo à transmissão normal da mensagem (acção sobre o canal transmissor, mas também sobre qualquer outro dos factores), era a nova proposta deste modelo da 'teoria da comunicação' de então.
Estamos pois perante casos em que o receptor já não é passivo. Assume, portanto, a sua função decifradora, cabendo-lhe captar a mensagem a partir do código comum utilizado no processo de comunicação. Entre o grupo humano emissor - que produz o sinal, ou a mensagem - e o grupo ou indivíduo que a recebe, está a própria mensagem, como objecto com autonomia estrutural, seja a sua expressão icónica, verbal ou sonora.
Mas voltemos a Jakobson: «Dans l' étude du langage en acte, la linguistique s'est trouvée solidement épaulée par le développement impressionant de deux disciplines parentes, la théorie mathématique de la communication et la théorie de l'nformation. Les recherches des ingénieurs des communications n' étaient pas au programme de cette Conférence 6 , mais il est symptômatique que l'influence de Shannon et Weaver, de Wiener, de Fano, ou de l'excellent groupe de Londres, se soit retrouvée dans pratiquement tous les exposés. Nous avons involontairement discuté dans des termes comme codage, décodage, redondance, etc., Quel est donc exactement la relation entre la théorie de la communication et la linguistique? Y a-t-il peut-être des conflits entre ces deux modes d'approche? En aucune façon, Il est un fait que la linguistique et les recherches des ingénieurs convergent, du point de vue de leur destination».
Como via Jakobson esta proximidade conceptual das duas teorias? Na Conferência de Indiana, a que temos estado a fazer referência, ele parte do princípio elementar de que todo o acto de comunicação coloca em jogo uma mensagem e quatro elementos que lhe estão ligados: o emissor, o receptor, o tema da mensagem (topic) e o código utilizado. Considera depois que sem um código comum ao emissor e ao receptor não é possível a troca das mensagens. Dez anos mais tarde, num artigo intitulado "Linguística e Teoria da Comunicação" 7, Jakobson volta a abordar este assunto, agora de uma forma mais clara: «L' ingénieur admet que l'émetteur et le receveur d'un message verbal ont en commun à peu près le même 'système de classement' de possibilités préfabriquées, et, de là même manière, la linguistique saussurienne parle de la langue qui rend possible l' échange de parole entre les interlocuteurs». Portanto, do mesmo modo que sem o código não circula a mensagem (ou sem a língua não é possível a troca da palavra), também toda a comunicação será impossível na ausência de um certo repertório de possibilidades preconcebidas, referência directa de Jakobson a D. McKay, um dos engenheiros mais elogiados na abordagem das dicotomias saussurianas.
É de facto a dicotomia código-mensagem, existente em ambas as disciplinas, que as faz corresponder, nomeadamente na interacção entre os dois factores. A descoberta pela linguística do princípio dicotómico (que está na base de todo o sistema dos traços distintivos da linguagem - os morfemas), tem o seu equivalente na unidade de medida informacional de Shannon e Weaver, os chamados bits (binary digits). Como referia Jakobson: «Quando os engenheiros definem a informação selectiva de uma mensagem como o número mínimo de decisões binárias que permitem ao receptor reconstruir aquilo que ele deve apreender da mensagem sobre a base de dados já à sua disposição, esta fórmula realista é perfeitamente aplicável ao papel dos traços distintivos na comunicação verbal» 8 .
O bit é assim a unidade que mede não a própria informação mas o número de sinais que a sua transmissão exige, segundo um sistema binário de numeração que utiliza somente os símbolos 1 e 0. Assim, uma quantidade de informações representa um bit se consistir simplesmente em operar uma selecção entre 1 e 0, entre sim e não; é a informação mais simples que se possa imaginar, aquela que conduzirá à opção entre dois casos. Wilbur Schramm é outro importante teórico desta fase. A sua obra, nos domínios da comunicação de massa, teve a sua importância antes de McLuhan, por exemplo, a que nos referiremos.
Quanto ao processo de comunicação, Schramm vem dar uma renovada importância à questão da codificação e da descodificação da mensagem aparecendo, por exemplo, pela primeira vez, a noção de feed-back, isto é, o fenómeno de retroacção numa cadeia interactiva que alinha pelo mesmo diapasão códico, digamos assim. Schramm avançava desde logo a hipótese tão explorada hoje pelas grandes cadeias de televisão norte-americanas, bem como pelos sistemas de cabo, do emissor corrigir a sua própria mensagem em função de reacções induzidas. Por fim Schramm inspira-se nalguns dos pressupostos de Lazarsfeld, propondo o seu "circuito" da mensagem, através dos grupos sociais, do receptor para o grupo, do leader de opinião para o seu público 9.
Destes esquemas lineares criados nos Estados Unidos da América nos anos 40 e 50, passemos agora aos primeiros esquemas culturais europeus nomeadamente franceses, dos anos 60. Edgar Morin, com o seu livro L'Esprit du Temps 10 é um dos primeiros teóricos europeus a sistematizar de uma forma inovadora aquilo a que chamou a lndústria Cultural, ou também mass culture, para retomar o estranho neologismo da corrente sociológica americana. Morin via no modelo burocrático-industrial um verdadeiro obstáculo ao poder cultural do autor: «A concentração técnico-burocrática pesa universalmente sobre a produção cultural de massa. Donde, a tendência para a despersonalização da criação, para o predomínio da organização racional da produção (técnica, comercial, política) sobre a invenção, para a desintegração do poder cultural» Ou ainda: «A contradição ínvenção-padronização é a contradição dinâmica da cultura de massa». Com Morin surge ainda a separação de conceitos como produção e criação: «O criador, isto é, o autor, criador da substância e da forma da sua obra, emergiu tardiamente na história da cultura: é artista do século XIX. Ele afirma-se precisamente no momento em que começa a era industrial. Tende a desagregar-se com a introdução das técnicas industriais na cultura. A criação tende a tornar-se produção».
No fundo, em relação ao processo de comunicação, Morin propunha uma relação a três elementos, individualizando a criação, opondo-a inclusive à produção padronizada, sendo esta a zona não-marginal da indústria cultural isto é, a tradução no consumismo, o triunfo da organização racional da produção sobre a invenção, com tudo o que daí deriva em termos de uma luta renovada pela individualização e pelo novo: «A relação padronização-invenção nunca é estável nem parada, modifica-se a cada nova obra, segundo relações de força singulares e detalhadas. Assim, a nouvelle vague cinematográfica provocou um recuo real da padronização».
Pierre Schaeffer 11 vem introduzir novos conceitos ao modelo embora não venham a ter importância para a evolução do estudo do processo de comunicação: o mediador será o artesão ou o manipulador do meio. Chama às influências exteriores os "meios autorizados" (Shannon havia-lhes chamado "ruído") e acaba por colocar o mediador-criador no centro do seu sistema de comunicação. A mensagem perde aqui, portanto, a sua posição central no modelo, perdendo mesmo o seu valor em todo o processo, passando o mediador-produtor a ocupá-lo.
Com a publicação da Sociodynamique de la Culture, de Abraham Moles 12, a cultura é vista como uma entidade globalizante, permitindo através de uma aproximação 'pancibernética' unificar o fenómeno cultural com o dos media. Distingue a cultura 'individual' (a soma da educação e da experiência de cada indivíduo no domínio do conhecimento) da cultura 'colectiva', ou cultura de uma sociedade, caracterizada por aquilo a que se poderia chamar a intertextualidade do grupo social, a sua rede de conhecimentos, segundo a expressão de Moles. Esta concepção era analisada, aliás, anos depois, por Edgar Morin 13 : «(...) privilegia o aspecto "semântico" da cultura, sendo a estética concebida exclusivamente do ponto de vista das "mensagens", como expressão do campo de liberdade em volta de cada signo normalizado. Em Moles o importante é o 'ciclo sócio-cultural' a partir das estruturas permanentes da comunicação de massa», acrescentava Morin. Este ciclo tem obviamente uma velocidade de rotação. Nele vamos encontrar as unidades de significação - semantemas - e as unidades de forma - os morfemas, veiculados pelos canais de transmissão, isto é, os meios, que difundem o fluxo de mensagens. Os elementos veiculados - cultura viva e/ou cultura adquirida -, ainda segundo Morin, «tomam forma e significado a partir de um micro-meio criador, transforma-se em produtos culturais através dos mass-media e chegam a um macro-meio consumidor (a massa, da qual fazem parte os próprios criadores).»
Esta doutrina dinâmica do processo de comunicação, espécie de 'mosaico' da cultura moderna, comporta ainda múltiplos elementos secundários, alguns tomados a Shaeffer, outros a Morin, e é todo esse conjunto que nos dá o amplo e complexo circuito ''cibernético'' de Abraham Moles. Mais simples era o modelo de Jakobson: «Le destinateur envoie un message au destinataire. Pour être opérant, le message requiert d'abord un contexte auquel il renvoit (c'est ce qu'on appelle aussi, dans une terminologie quelque peut ambigue, le "référent"), contexte saisissable par le destinataire, et qui est, soit verbal, soit susceptible d'être verbalisé; ensuite, le message requiert un code, commun, en tout ou au moins en partie, au destinateur et au destinataire (ou, en d'autres termes, à l'encodeur et au décodeur du message); enfin, le message requiert un contact, un canal physique et une connexion psychologique entre le destinateur et le destinataire, contact qui leur permet d'établir et de maintenir la communication 14 .
E chegamos a McLuhan. Nos anos 60, e de maneira diferente, Marshall McLuhan e Herbert Marcuse fazem com que a polémica sobre a sociedade de massa atinja um dos seus pontos mais altos. Cada um à sua maneira, um "mágico", outro "apocalíptico", analisam os media como detentores de um poder tanto perigoso (Marcuse) quanto revolucionário (McLhuan).
Umberto Eco reconheceu desde logo faltarem nestes teóricos os momentos de análise e o exame dos documentos: «(...) Faltam exactamente porque, os dois autores, cada um a seu modo, decidiram que sobre a análise dos documentos já se debruçaram demasiado e até com risco de perder de vista o panorama total» 15 . McLhuan adverte-nos - continua Eco: «É inútil analisar os conteúdos das comunicações de massa, aquilo que é transmitido através dos vários meios, porque são os próprios meios, com a sua natureza específica, o seu modo de solicitar respostas comportamentais, de favorecer mutações conjuntas, que constituem a primeira das mensagens. É inútil perguntar-se como este ou aquele grupo humano reage à televisão ou à publicidade porque aquilo que conta é o conjunto das respostas e o conjunto das respostas dá-nos um Homem diferente, que sente o mundo inteiro sob a própria pele, entra em contacto táctil com os acontecimentos distantes, vive todo o universo das comunicações como uma grande e feliz alucinação colectiva, na qual, e depois da qual não será nunca a Homem que era dantes».
Esta importância que McLhuan dá aos media e ao seu dispositivo, em oposição à mensagem, é desqualificada, por exemplo, sempre que não é encontrado destinatário no processo de comunicação. Nessas circunstâncias a sua fórmula the media is the message é completamente anulada, por extravio da mensagem, por assim dizer. De facto o seu modelo sé é válido, isto é, o media só "existe", sempre que tiver campo de recepção (Jakobson: «não há emissor sem receptor»). Morin, que já havia respondido ao paradigma mcluhaniano, referiu-se a esta questão de uma outra forma. «Examinemos o problema da recepção ao nível da teoria da ínformação. Que diz ela? A informação corresponde àquilo que traz um elemento novo ao conhecimento, àquilo que provoca uma certeza ou liberta uma incerteza. Mas o puro desconhecido não existe e toda a informação se deve enxertar naquilo a que a teoria chama a redundância e a que eu chamo uma estrutura de pensamento. Se a informação não for introduzida numa tal estrutura não será apreendida como tal: será negada ou esquecída 16 ». Ainda Morin: «La formule de Lasswell 'qui dit quoi, à qui, par quel medium et avec quel effet' morcelait le système des communications de masse et désintégrait toute notion de culture de masse. McLhuan ramène les termes lasswelliens au "médium'' qui non seulement englobe le 'quoi' ('le medium est le message'), mais englobe les deux "qui" dans une unité anthropologique: l'homme. Le medium technologique est toujours le prolongement d'un sens ou d'une faculté de l' homme; donc, le message, c'est, en acte, ce prolongement modificateur de la dialectique sensorielle-psychique 17
Se o aforismo mclhuaniano é, em termos de teoria da comunicação, redutor e polémico, a resposta que Edgar Morin lhe dá, colocando-o nos domínios da 'antropologia sensorialista' e da epistemologia, vem clarificar um pouco mais a questão. Em todo o caso, o aforismo the media is the message poderia ter despoletado, de algum modo, uma clarificação do velho modelo do processo de comunicação. Aqui, de facto, não estamos de acordo com o que um prestigiado crítico de televisão norte-americano, Michael Arlen, publicou no final dos anos 60 sobre o polémico mcluhanismo, dizendo que os seus aforismos tinham tido como principal resultado a 'diminuição da discussão'... Talvez que isso, nalguns casos, até fosse verdade... «A lot of people, I know, are down on him these days, because he's been so much in the public eye (...) and because, they say, he's inconsistent, which he is, and often wrong, which he is, and unfunny, which he certainly is, and even (they say) unoriginal. The thing is, about fifteen years ago, when McLuhan - then, as now, a teacher of undergraduate English courses - began writing about print and type and communications and media. He didn’t claim to be entirely original. Most of these notions about print and type and western man had been written about for a number of years by a number of people (even though the editions of Life may not have been reading them then). What McLuhan did that was original was to put them together in a new way and add a sort of twist of his own that gave them relevance and expensiveness (...). These days I get the feeling that the principal result of what he writes and speaks has been to diminish discussion. When he touches something ("the technology of the railway created the myth of a green-pasture world of innocence". "Pop Art simply tells you the only art form left for you today is your own natural environment"), he seems to do it in such a way that although there's often substance or interest in his thought, the effect is somehow to close the subject off, to leave it in the end (despite the aphorist crackle) more dead then alive 18.»
De alguma maneira McLuhan coloca em evidência a antropo-história (o meio como extensão do homem) e nesse sentido a mensagem não é mais senão uma também extensão fortuita, sensorial, no processo de comunicação, e não o objecto de comunicação. Mesmo aqueles que consideram que o aforismo significa, ao fim e ao cabo, que o conteúdo do que é comunicado importa menos do que o modo como é feito, não estarão certamente seguros de que tenha sido a partir daí que se passou a dar uma renovada importância à especificidade do meio 19 .
Tido como «o mais proeminente discípulo» de Harold Adams lnnis 20, Marshall McLuhan, cuja obra tentaremos agora analisar naquilo que tem de mais pertinente, foi, na segunda metade dos anos 80, uma referência implícita óbvia, ainda que na maior parte das vezes cuidadosamente evitada, por parte dos seus quase-epígonos, que, dir-se-ia, proliferam nas ciências sociais como seus prolongamentos e/ou desenvolvimentos. Essa será, porventura, a melhor homenagem que se lhe poderia prestar.
Numa leitura transversal dos seus textos essenciais passaremos necessariamente por cima da sua fase de crítica literária, após formação superior em engenharia (1934), correspondendo aos anos 30/40; veremos, de passagem, a sua 'fase de transição' - anos 50 - altura em que publica The Mechanical Bride e insistiremos sobretudo nas suas produções dos anos 60, período em que publicou as suas obras de maturidade.
O eixo do seu pensamento, por assim dizer, centra-se em dois aforismos fundamentais: um, o conhecido the medium is the message; o outro, o de que é a natureza dos meios, as tecnologias da comunicação propriamente ditas - e não o modo de produção, como bem referiu Harold lnnis, que informa, estigmatiza e estrutura o modelo das sociedades - e, portanto, acrescentaríamos nós, a própria história.
Isto mesmo nos parece estar claramente presente quando McLuhan pergunta porque é que Marx não apanhou o comboio da comunicação. No fundo, como escreveu Harold Rosenberg 21 , McLuhan substituiu o 'fetichismo das mercadorias' de Marx pelo fetichismo dos media para explicar as diversas crenças que dominaram o homem nas diferentes épocas.
The Mechanical Bride é, sem dúvida, algo mais do que apenas uma 'obra de transição'. Devido à sua curiosa apresentação, com imagens, jogos de composição, um lettering sugestivo, houve quem lhe chamasse inclusive 'pop art avant-Ia-lettre'. Para McLuhan, no entanto, tratar-se-ia, no fundo, de uma 'obra obsoleta' em plena era da televisão: 'Voilà bien des années, avant que j'écrive The Mechanical Bride, je me plaçais à un point de vue moral pour apprécier les faits de mon environnement. J'abominais le machinisme, les grandes villes, à peu près tout, à l'exception de certaines choses qui auraient été du goût de Rousseau. Peu à peu je me suis rendu compte à quel point c'était inutile. Je me suis aperçu que les artistes du XX ème siècle voyaient les choses différemment - et j'ai fait comme eux' 22 . Este, com efeito, o tempo em que McLuhan tinha em cima da sua secretária um cartão com os dizeres 'Especialistas: abstenham-se!'...
Concretamente, The Mechanical Bride marca a sua primeira abordagem - extremamente crítica, nalguns casos - da questão comunicacional. Inspirado provavelmente nas 'máquinas' eróticas de Duchamp e tendo como imagem obsessiva essas criaturas híbridas, metade mulheres, metade máquinas, McLuhan mergulha aqui claramente no maelström - à semelhança do marinheiro de Edgar Allan Poe - estabelecendo um duro diagnóstico do 'folclore do homem industrial', nomeadamente no que diz respeito à indústria e ao discurso da publicidade, aos comics e às sondagens. Atinge inclusive as raias do paroxismo quando a propósito de um dos principais 'símbolos' da América, publicitado num cartaz com uma "doce, inocente e belíssima jovem', diz o seguinte: 'A doce e inocente rapariga não vos fará provavelmente mal nenhum, mas o mesmo não acontecerá com a Coca-Cola. Na próxima vez que tirem um dente metam-no num copo de Coca-Cola e observem-no dissolver-se durante alguns dias'...
É fundamentalmente nos anos 60, concretamente a partir de A Galáxia de Gutenberg, que McLuhan desenvolve uma análise alargada, de características histórico-culturais, à emergência da escrita e da tipografia, análise essa que viria a ter como que uma fundamentação teórica cristalizada em esparsas formulações, nos seus postulados, de pendor claramente epistemológico, cuja pertinência, neste caso concreto, até por derivarem já de lnnis, nos parece menos discutível do que o restante da sua obra.
Para essa fundamentação concorrem, portanto, e nomeadamente, Harold lnnis, por um lado, e, por outro, o antropólogo Edmund Carpenter, que edita juntamente com McLuhan a partir de Dezembro de 1953 a revista Explorations 23 , onde muitas das suas teses mais conhecidas começam a surgir em esboço, se bem que subscritas por ambos.
A Galáxia de Gutenberg, no fundo, é uma circunstanciada análise daquilo que o autor designa por estado de catalepsia, de numbness, em que a tecnologia tipográfica fez mergulhar o Ocidente. Para McLuhan, Gutenberg encerra em si, de alguma forma, o "pecado original" fundador da modernidade e da civilização industrial. Tudo se passa, no fundo, a dois tempos: em primeiro lugar, McLuhan observa a transição de uma cultura tribal, fechada, estável, modelada para um espaço acústico, de relações totais e simultâneas, para uma cultura destribalizada, 'visual', transição que corresponde à quebra do 'círculo encantado" e da multiplicidade, isto é, à emergência do homem alfabetizado, de consciência fragmentária, de experiência empobrecido, à emergência, portanto, do processo de individuação e especialização, primeiros sintomas do desequilíbrio que, na sua perspectiva, atingiu a sociedade moderna.
Num segundo tempo, ter-se-ia completado o processo de alienação do homem, sobretudo do 'homem' como sublinha McLuhan e não tanto da mulher, porque ela 'é a última criatura a ser civilizada pelo homem' conforme escrevia Meredith em 1859 (citado por McLuhan, 1962: 288), ela mantém com efeito a figura da alteridade uma vez que a seu processo de fragmentação e especialização é tardio. Assim, 'a invenção da tipografia confirmou e fez alastrar a nova tendência visual do conhecimento, dando origem à primeira utilidade (commodity uniformemente reproduzível, à primeira linha de montagem e à primeira produção em série' (1962: 176). A tipografia vem pois reforçar o culto do indivíduo e da 'publicidade', do que é público, o I am / eye am simultaneamente cartesiano e newtoniano, bem como reforça o processo de radicação das línguas nacionais e da ideia de nação. Nacionalismo, industrialismo e mercados de massa são ainda consequências da extensão tipográfica do homem, da mesma maneira que o são a exigência da 'uniformidade social e a fragmentação individual que encontram a sua expressão natural no Estado-Nação' (1977: 45).
Num como noutro caso são óbvias as interacçóes entre tecnologias e civilização, já que a sua definição de medium comporta também a componente tecnológica e os seus prolongamentos enquanto extensões dos sentidos e, claro, do humano. Chegados aqui, é óbvio que McLuhan não apresenta nenhuma inovação de fundo relativamente a Harold lnnis, para quem o advento e o declínio das grandes civilizações, e as mudanças culturais, deveriam ser entendidas, em primeiro lugar, em função do meio de comunicação e das tecnologias predominantes. lnnis considerava, em síntese, que os media da Antiguidade eram mais propícios a um controlo no tempo do que no espaço. As sociedades antigas tinham assim tendência a insistir sobre o sagrado e a moral e a criar regimes políticos hierarquizados que reprimiam o individualismo. Pelo contrário, os media cujo 'biais' se centra sobre o espaço facilitam a emergência de instituições seculares, o desenvolvimento da ciência e a administração dos grandes territórios, condições que favorecem a eclosão de 'impérios' e a dominação de grupos periféricos 24 .
McLuhan, de facto, limita-se ou a citar lnnis, ou a propor uma deriva do seu mais conhecido e original aforismo, referindo, portanto, que o modelo das sociedades sempre foi mais influenciado pela natureza dos meios de comunicação do que pelo conteúdo da comunicação. Ele próprio, aliás, o reconhece quando em A Galáxia de Gutenberg diz taxativamente: 'Harold lnnis foi o primeiro a perceber que o processo de mudança estava implícito nas formas da tecnologia dos meios de comunicação. Este meu livro representa apenas notas de pé de página à sua obra, visando explicá-la' (1962: 82).
Um dos seus mais severos críticos, Jonathan Miller, via nessa máxima urna autêntica desculpabilização dos manipuladores dos meios de comunicação (e daí, dizia, uma das razões do sucesso de um 'improvisador brilhante') e, ainda, do público, que se via eximido de 'crime de autocomplacência': 'Espectadores inteligentes que só furtivamente ousavam contemplar a televisão, podem agora prender-se aos aparelhos, confiantes na crença de que, assim agindo, participam de uma comunidade nova de auto-interesse humano (...)' 25 .
Não deixa, no entanto, de ser importante ressalvar algo que em McLuhan não se refere tanto à interacção entre a tecnologia e o social, mas sobretudo às 'metamorfoses de sensibilidade' entre a tecnologia e o indivíduo: 'É a contínua adopção da nossa tecnologia no uso diário que fazemos dela que nos coloca no papel de Narciso, de consciência subliminar, e adormecido em relação às imagens de nós próprios. Incorporando continuamente tecnologias, relacionamo-nos a elas como servomecanismos (1964: 64). Daí, por exemplo, ele ver o humano também como uma espécie de prótese dos media, peça elementar na reprodutibilidade do próprio sistema mediático.
Para além destes 'determinismos' da técnica que marcam de facto o seu pensamento, McLuhan pouco adianta relativamente a lnnis no que concerne à crítica da sociedade mediatizada. Como assinalou Daniel Czytrom 26 , o que em lnnis eram críticas severas quanto ao rumo que tomavam as novas tecnologias da comunicação transformaram-se em McLuhan numa espécie de 'celebração do inevitável'. Assim, a questão da 'retribalização', da 'aldeia global', dando a ideia de um ganho óbvio na recomposição do dispositivo comunicacional moderno, tendo por consequência a "implosão" dos media o próprio fim da especialização: «L'état de catalepsie dans lequel Ia technologie de I'Imprimerie a plongé I'Occident a duré jusqu'à aujourd'hui c'est-à-dire en ce moment où, grâce aux médias électroniques, nous commençons, enfin à être 'déshypnotisés'» (1977: 46).
A nova galáxia Marconi coloca assim em questão uma regressão da ordem visual: 'L'emploi des media éléctroniques constitue une frontière marquant le clivage entre l'homme fragmenté de Gutenberg et l'homme intégral tout comme l'alphabétisation phonétique a marqué le passage de l'homme tribal, centré sur Ia connaissance oral, à l'homme conditionné par Ia perception visuelle' (1977:47).
Mas apesar de considerar os media electrónicos como o fim de um ciclo 'cataléptico', McLuhan não deixa de prever que o choque entre a cultura antiga, fraccionada e visual, e a cultura nova, integral e electrónica, provoca um eclipse do eu, uma crise de identidade, que pode resultar em violência desmedida e numa procura de identidade que pode revestir formas pessoais ou colectivas (1977: 55). No limite, tratar-se-á da desintegração dos grandes Estados dando lugar às 'aglomerações de tribos', de mini-Estados, o que não deixa de estar em contradição com a tese 'inclusiva' de um mundo simultâneo e imediato, onde tudo estaria em harmonia, como se se tratasse de um campo magnético, ou de toda uma família humana tecida de uma só membrana, a nova sociedade fechada.
Esta e outras contradições, ou 'boutades', como por exemplo. a de que a fotocópia conduz ao desaparecimento do livro 27 , ou a de que a televisão é um 'meio frio' por ter apenas 625 linhas de definição de imagem, ou o de que o verdadeiro factor de integração dos negros no Sul dos Estados-Unidos foi o automóvel, entre muitas outras, não ensombram no entanto a importância da sua obra nesta segunda metade do século. Será certamente difícil omitir o seu nome numa genealogia do saber e das conflitualidades entre os media e o mundo, a tecnologia e o indivíduo. No fundo, todas as suas recomendações poderiam sintetizar-se neste quadro: estudar os media a fim de extirpar ao subliminal, ao não-verbal todas as hipotéticas afirmações, a fim de passar ao crivo, de prever e controlar os objectivos da humanidade.
A finalizar, e em jeito de post-scriptum, poder-se-ia perguntar: E agora, McLuhan? Se a televisão, essa 'grande escola', essa 'universidade do ar' (Miller) é por excelência o 'instrumento da comunicação recíproca' (1977: 50); se vai introduzir novos feedbacks e conduzir a comunicação a tornar-se diálogo em vez de monólogo (1977: 57); se foi ela que pôs fim à guerra do Vietname 28, se com ela Hitler não tinha passado de um sargento-pintor; então, explica-nos, McLuhan, por favor, porque é que disseste uma vez que, se interrompêssemos as emissões de televisão por uns anos, os resultados seriam certamente benéficos? 29 . Há quem concorde cada vez mais contigo, sabes?



Notas:


1 Jakobson, Roman, "Le langage commun des linguistiques et des antropologues", Essais de Linguistique Générale, Vol. I, Les Éditions de Minuit, Paris, 1963.
2 Op. cit., "L'aspect phonologique et l'aspect grammatical du langage dans leurs interrelations", texto apresentado pela primeira vez por R. J. no sexto Congresso Internacional dos Linguistas (Paris, 1948).
3 Cf. o seu artigo "The Structure ans Functions of Communication in Society", The Communications of Ideas, Lyman Bryson , Harper, New York, 1948.
4 Shannon e Weaver, "The Mathematical Theory of Communication", Bell System Technical Journal, 1948.
5 CLOUTIER, Jean, A Era do Emerec, ITE, Lisboa, s/d.
6 Jakobson, op. cit.
7 Publicado pela primeira vez em 1961 - cf. Essais de Linguistique Générale, op. cit.
8 Cf. "Linguistique et Théorie de la Communication", Jakobson, op. cit.
9 Referimo-nos aqui concretamente à sua obra The Process and Effects of Mass Communications, co-editada com Donald F. Roberts, UIP, Illinois, 1954.
10 Morin, Edgar, L'Esprit du Temps, Essai sur la culture de masse, Éditions Bernard Grasset, Paris, 1962.
11 Schaeffer, Pierre, Les Machines à Communiquer, Éditions du Seuil, I e II, Paris, 1972.
12 Moles, Abraham, Sociodynamique de la Culture, Éditions la Haye, Paris, 1967.
13 Cf. "Nouveaux courants dans l'étude des communications de masse", Essais sur les mass-media et la culture, Unesco, 1971.
14 Jakobson, Roman, "Linguistique et poétique", Essais (...) op. cit., chapitre XI.
15 Eco, Umberto, "Introdução" a A Indústria da Cultura, Edição Meridiano, Lisboa, Outubro de 1981.
16 Morin, "Receptores Selectivos", citado na antologia Comunicação Social e Jornalismo, Regra do Jogo, 1981.
17 Morin, "Nouveaux courants dans l'étude de la communication de masse", op. cit.
18 Arlen, Michel J. "Marshall McLuhan and the Technological Embrace", Living Room War, The Viking Press, NY, 1969.
19 Cf. o artigo de J. M. Paquete de Oliveira "Marshall McLuhan, Profeta ou Impostor?", Expresso, 10 de Janeiro de 1981.
20 Harold Adams lnnis, importante historiador económico canadiano (1894-1952), discípulo de Veblen, autor, nomeadamente de Empire and Communication (1950), The Bias ot Communication (1951) e Changing Concepts of Time (1952), ed. University of Toronto Press.
21 Rosenberg, Harold, cf. 'Pour comprendre McLuhan' Pour ou Contre McLuhan, sob dir. de G. E. Stearn, Seuil, Paris, 1969.
22 Op. cit., Dialogue, G.E.Stearn-McLuhan, p. 287.
23 Explorations, revista trimestral de estudos sobre cultura e comunicação. Foram apenas publicados sete números, entre 1953 e 1957. Edição da Fundação Ford.
24 Miller, Jonathan, McLuhan, Cultrix, São Paulo, 1982, p. 14.
25 Heyer, Paul, "Pour une histoire des communications: quelques parallèles et contrastes entre Michel Foucault et la filière canadienne", Communication, Information, Vol. V, nº 2/3, 1983, pp.247-264.
26 Czytrom, Daniel, "Metahistory, mythology and the media: the american thought of Harold Innis and Marshall McLuhan", Theorists of modern communication, New York, pp. 147-182.
27 McLuhan, Marshall, "Xérox, simulacre et mort du livre", Les Imaginaires, UGE, Col. 10-18, Paris, 1972.
28 Pour ou contre McLuhan, pp. 267-8.
29 Idem, p. 293.

24.7.04

O novo espaço público e o dispositivo disciplinar do olhar

Le regard est le medium des médias.
Jean Baudrillard



Numa perspectiva histórico-cultural, tivemos sobretudo em conta, para o caso da escrita, os reajustamentos, as inflexões, que as diferentes civilizações e as diferentes idades da História sofrem quando novas estruturas comunicacionais, novas mediações simbólicas e tecnológicas emergem - e, nessa medida, definimos o dispositivo que se constitui com a emergência da escrita.
Para o caso da tipografia seguiremos o mesmo percurso, se bem que um outro nível hermenêutico se nos coloque, mais concretamente, aquele que resulta de uma reinterpretação do desenvolvimento do universo tipográfico em plena idade clássica.
Iniciemos então uma abordagem do universo tipográfico fazendo incidir a análise, numa primeira parte, sobre diferentes modelos culturais do campo representativo clássico e pré-clássico, bem como dos seus dispositivos de representação do real, para depois passarmos, numa segunda parte, à tecnologia tipográfica propriamente dita, emergente nessa estrutura histórico-cultural.
Começaremos portanto pela análise da instituição do dispositivo imanente ao que designaremos de progressiva radicação de uma ordem disciplinar do olhar, da visualidade, a partir dos finais da Idade Média.
Trata-se assim essencialmente, nesta primeira parte, de confrontar uma série de contributos diversos no sentido de problematizar também o contexto da emergência do espaço público. Procura-se, sobretudo, uma aproximação à natureza das mediações simbólicas, concretamente no domínio da visualidade, na instituição do regime do olhar pós-alfabético. Vamos analisar pois, fundamentalmente, tecnologias do olhar, estratégias que se produzem na espacialidade e na estrutura do espaço figurativo, nos corpos, enfim, técnicas que nos permitem localizar a emergência de um espaço simbolicamente activo, espaço gerador de hierarquias, ainda que elas não passem nesta primeira abordagem de um jogo de cumplicidades, jogo que se explicita exactamente nesta aproximação a uma arqueologia da "alfabetização" do olhar.
Porquê ainda a questão da teoria do espaço público? Trata-se sobretudo de uma questão epistemológica. Uma epistemologia da história das mediações tecnológicas e simbólicas pecaria certamente por defeito se não operasse à desconstrução do(s) espaço(s) produtores de hierofanias e ficções. Da cena para a rua, da catedral para a feira, do atelier do tipógrafo para o café, do salão para o domicílio, enfim, do público para o privado, em última instância, é no pulsar de todas estas redes de sociabilidade, destes lugares de quotidianeidade que emergem os rostos e as máscaras das sociedades, os seus símiles e simulacros, e por onde passam as estratégias normativas, de poder, e reivindicativas - ou de "resistência".
É exactamente sobre o final da Idade Média - altura em que se verifica o acentuar da divisão entre esfera pública e esfera privada (na alta Idade Média não há ainda uma esfera pública autónoma separada da esfera privada - o que há é uma "publicidade representativa" do monarca ou do senhor feudal simbolizada através do selo régio, por exemplo, ou por toda uma fenomenologia imanente ao corpo jurídico do rei ou à sua publicness), mas é, dizia, sobre o final da Idade Média, que, nomeadamente através de Huizinga, se havia já apontado a emergência da visualidade: «Um dos traços fundamentais do espírito do declínio da Idade Média é o predomínio do sentido da vista» 1.
Vários historiadores atribuíram ao período que se segue ao século V a.C., na Grécia, a introdução da ordem visual na escultura, na ciência e na literatura. McLuhan abordava a questão de um outro modo: «Do ponto de vista da aguda e intensa consciência que hoje temos dos componentes visuais da experiência, o mundo grego afigura-se tímido e tacteante. Nada existe, porém, na fase manuscrita da tecnologia alfabética, que fosse suficientemente intenso para romper o globalismo sensorial e separar inteiramente o visual do táctil. Nem mesmo o alfabeto romano teve força para fazê-lo. Foi somente com a experiência da produção em massa de tipo exactamente uniforme e repetível que a fissão dos sentidos ocorreu e a dimensão visual se separou dos outros sentidos» 2 . E explicitando melhor a sua posição em relação ao que chama de "fissão dos sentidos": «O que é necessário é saber porque é que o desenho primitivo é bidimensional, ao passo que o desenho e a pintura do homem alfabetizado tendem para a perspectiva. Sem tal conhecimento não podemos compreender porque é que o homem deixou de ser 'primitivo' ou audiotáctil na tendência dos seus sentidos. Nem poderíamos chegar a entender porque é que o homem desde Cézanne abandonou o visual em favor dos modos audiotácteis da experiência. Esclarecida essa questão, podemos abordar mais facilmente o papel que tiveram o alfabeto e a tipografia na atribuição da função dominante ao sentido da visão na linguagem e na arte em toda a extensão da vida política e social» 3 .
No fundo, quer o alfabeto, quer a tipografia, marcam dois momentos de ruptura afinal com o mesmo significado, isto é, geram e concluem a separação entre o universo táctil e o universo visual. O alfabeto fá-lo de uma forma radical e nova, enquanto a tipografia lhe confere uma nova autoridade, uma outra legitimidade - a que lhe advém do facto de corporizar e uniformizar sem ambiguidades a notação gráfica. Michel Butor diria de outra forma: «Dans l'imprimé l'auteur se lit comme s'il était un autre» 4 .
Se atendermos, porém, a Quéré, concluiremos que mais importante do que a própria redistribuição epistémica, histórico-estrutural, proposta por McLuhan, é a instituição do dispositivo de dominação imanente à própria génese de novas mediações tecnológicas, tal como vimos para o caso da escrita - e veremos para o caso da tipografia. Por agora vejamos como se foram sedimentando as práticas, as tecnologias do olhar e do campo representativo, a partir do classicismo greco-romano, por forma a melhor nos situarmos na emergência do espaço público renascentista, anunciador das grandes transformações que se operaram na esfera moderna da comunicação, designadamente no plano das mediações simbólicas e tecnológicas.
Continuando todo o procedimento ritualizante e fenomenológico que remonta a práticas tão antigas como o embalsamamento egípcio, a escultura grega ou a pintura renascentista, a fotografia conseguiu no século XIX algo que sempre havia sido desejado pelo homem desde os tempos mais remotos: exorcizar o tempo, salvar o ser, em absoluto, pela sua aparência, como disse André Bazin.
De facto, os rituais funerários egípcios, constituem na Antiguidade uma prática de salvação do corpo, uma vitória sobre a inexorabilidade do tempo. As múmias dos faraós, encerradas no labirinto das pirâmides, asseguravam assim a perenidade do corpo da mesma forma que, com o mesmo objectivo, Alexandre se fez representar na necrópole de Sidão, ou, enfim, Luís XIV se fez retratar por Lebrun.
É assim que a raiz ontológica da fotografia e do cinema, no que concerne concretamente à figuração primitiva do duplo, se tem de ir procurar exactamente nessas práticas diversas.
Com a escultura grega arcaica é já claramente uma concepção antropomórfica que ameaça querer constituir-se como centro do campo representativo. A própria mitologia, se no Egipto já tinha encontrado Toth como o fundador da escrita, na Grécia tem em Cadmo o deus introdutor das letras do alfabeto e em Dédalo, o primeiro a dar vida aos corpos de mármore, o artista qui deorum simulacro primus fecit, o criador das estátuas «o primeiro a abrir-lhes os olhos, a descerrar-lhes os lábios, aquele que lhes alargou as pernas, desprendeu os braços do corpo, soube infundir-lhes vida, de tal modo que pareciam mover-se, caminhar, olhar, respirar, erguendo-se à hipérbole repercutida por Platão no Menon de que era preciso prendê-las para que não fugissem» 5 .
É assim a própria mitologia a denunciar um momento fundamental da Antiguidade, a saber, o fim do transe tribal, como lhe chamou McLuhan, isto é, o momento em que o homem se liberta da ressonância das práticas mágicas das sociedades orais. Poder-se-á dizer, pois, que a escultura grega emerge com o alfabeto fonético. O mito de Cadmo, no fundo, explica isso mesmo.
Contudo, na Grécia, numa primeira fase, a plástica arcaica não é ainda da ordem da mimesis como viria a ser a escultura imperial em Roma no século de Augusto, ou mesmo a escultura helenística tardia. A escultura arcaica grega, fundamentalmente constituída por imagens de divindades, por deuses antropomorfizados, filiava-se numa poiesis, numa ordem de expressão e significação plural, por assim dizer. Não se tratava de facto da imagem do homem ou da imagem de um mundo coeso, que, tal como na pintura de vasos ou nos frescos, não era ainda um mundo unificado, «um mundo no interior do qual os corpos e os intervalos de espaço livre que os separa seriam somente as diferenciações ou as codificações de um continuum de ordem superior» 6 .
Este é de facto o período em que se começa a notar como que uma progressiva hemorragia do simbolismo. Como veremos, este fenómeno não se verificará somente no domínio da arte. Lévi-Strauss, aliás, já se havia referido a esta questão nas entrevistas a Georges Charbonnier: «Un ethnologue se sentirait parfaitement à son aise, et sur un terrain familier, avec l'art grec antérieur au Vè siècle et même avec la peinture italienne quand on l'arrête à l'Ecole de Sienne. Là où le terrain commencerait à ceder sous nos pas, ce serait donc seulement, d'une part avec l'art grec du Vè. siècle, de l'autre, avec la peinture italienne à partir du Quattrocento» 7 .
Lévi-Strauss coloca assim a questão em termos do progressivo desaparecimento da função semântica da obra, o qual se verifica no contexto de uma aproximação «de plus en plus grande du modèle qu'on cherche à imiter, et non plus à signifier» 8 , ou, de outro modo, «l'art, me semble-t-il, a perdu le contact avec sa fonction significative dans la statuaire grecque, et il le reperd dans la peinture italienne de la Renaissance» 9 .
É, pois, este investimento da ordem da mimesis sobre a poiesis, investimento do olhar, portanto, e que se poderia ver como um "desperdício dos símbolos da linguagem" (Leroi-Gourhan) ou como pura "evaporação do sentido da obra" (Gilbert Durand), que nos remete exactamente para a progressiva radicação de uma ordem dos signos desterritorializados, o que é de facto extremamente revelador quanto à cada vez maior importância a dar à "visualidade" na fundação de um verdadeiro regime disciplinar do olhar, e do seu significado em termos da emergência do espaço público, da "aptidão de ver" e, no fundo, da emergência da própria razão moderna.
A poiesis simbólica tinha sobretudo a haver, segundo Durand, com a confirmação de um sentido e uma liberdade pessoal: «É por isso que o símbolo não pode ser explicitado: a alquimia da transmutação, da transfiguração simbólica, em última análise só pode realizar-se no seio de uma liberdade. E o poder poético do símbolo define melhor a liberdade humana do que qualquer especulação filosófica: esta obstina-se em ver na liberdade uma escolha objectiva, enquanto que na experiência do símbolo verificamos que a liberdade é criadora de um sentido: ela é poética de uma transcendência no seio de um sujeito, por mais objectivo e empenhado no acontecimento concreto que ele seja. Ela é o motor da simbólica» 10 .
É assim que na transição do românico para o gótico se opera um corte que é para Durand exactamente um dos três estádios de "extinção" simbólica, de desvalorização do símbolo: «Este deslizar para o mundo do realismo perceptivo, no qual o expressionismo substitui a evolução simbólica, é sobretudo visível na passagem da arte românica para a arte gótica. A arte românica é uma arte "indirecta", toda de evocação simbólica, face à arte gótica tão "directa", da qual o "trompe-l'oeil" flamejante e renascentista será o prolongamento natural (...) Enquanto que o estilo românico, embora com menos continuidade do que Bizâncio, mantém uma arte icónica que assenta no princípio teofânico de uma angeologia, a arte gótica aparece como um procedimento que a torna o protótipo do iconoclasmo por excesso: ela acentua a tal ponto o significante que este passa de ícone a imagem naturalista perdendo o seu sentido sagrado e tornando-se simples ornamento realista, simples "objecto artístico" (...). Desde o século XIII, as artes e a consciência já não se propõem reconduzir a um sentido, mas sim "copiar a natureza". O conceptualismo gótico pretende ser um decalque realista das coisas tais como são» 11 .
Ora, em absoluto, "copiar a natureza" só era possível a partir efectivamente do século XV com a perspectiva artificialis. Digamos pois que já antes do Concílio de Trento se nota, como diria Bazin, que a pintura ocidental "começou a despreocupar-se da expressão de uma realidade espiritual com meios autónomos, para tender para a imitação mais ou menos completa do mundo exterior 12 .
É isso que vamos encontrar em Huizinga quando ele se refere ao "predomínio do sentido da vista" no declínio da Idade Média. Aí residia segundo ele, a razão da progressiva iconolatria medieval.
Novalis, por outro lado, dizia: «La pensée et le voir se ressemblent. La faculté de pressentir l'avenir et de rappeler le passé ont des rappports avec la faculté de voir loin». E outro estudioso da Antiguidade, Jean Franklin, no seu livro Le Discours du Pouvoir, afirmava: «La lumière qu'il (le soleil) dispense sur les objets de la connaissance signifie la vérité. Le sujet connaissant équivalent à un sujet voyant, l'organe de la connaissance est donné pour organe de la vue, la faculté de la vue pour faculté de la raison (l'oeil ou l'âme), l'exercice de la vue pour l'exercice de la raison(... ) l'aptitude à connaître c'est l'aptitude à voir» 13 .
Mais para além do livro, as imagens medievais finais, os vitrais, são os livros dos iletrados como dizia um cronista da Renascença. A poética transcendente de que falava Durand havia já terminado. O novo modo de representação, isto é, o regime analógico, emerge do próprio aristotelismo: «A poética de Aristóteles, que será a Bíblia da estética ocidental até ao romantismo, repousa essencialmente sobre a noção de imitação. A imitação não é mais do que a extrema degradação da redundância 14.»
A questão da pertinência do estudo da perspectiva como forma simbólica explicou-a Marisa Dalai Emiliani no prefácio que escreveu para a já citada obra de Panofsky: «A chaque période artistique, à travers la structure géométrique de l'espace figuratif - qu'elle soit identifiée avec les coordonnées euclidiennes du Quattrocento ou avec les rapports topologiques élémentaires prédominants dans l'art actuel - les schémas et les catégories de pensée, les degrés fondamenteaux de la connaissance qui caractérisent la vie d'une société à une époque déterminée, trouveraient leur expression» 15.
Importa no entanto dessacralizar o mito da origem da perspectiva na Renascença. Panofsky já havia dito que o seu trabalho sobre a perspectiva tratava exactamente do quase através do qual Ernst Gager separava a Antiguidade e o Renascimento: «L'Antiquité a connu le véritable espace, presque à l'égal de la Renaissance» 16 . E não é de facto por acaso que o "homem como medida de todas as coisas" não é um conceito renascentista mas sim antigo, concretamente de Protágoras. Este parece-nos ser um indício de uma importante questão epistemológica. No fundo não há um Renascimento, há renascimentos ...
Ou seja, poder-se-ia dizer que há como que uma constante imanente à 'arqueologia' de estruturas histórico-culturais, sejam elas por exemplo a moral sexual, a estrutura geométrica do espaço figurativo ou a linguagem: «(...) il ne faut pas conclure (dizia Foucault relativamente à moral sexual) que la morale chrétienne du sexe était en quelque sorte 'pré formée' dans la pensée ancienne; il faut plutôt concevoir que très tôt, dans la réflexion morale de l'Antiquité, s'est formée une thématique - une 'quadri-thématique' - de l'austérité sexuelle, autour et à propos de la vie du corps, de l'institution du marriage, des relations entre hommes, et de l'existence de sagesse. Et cette thématique, à travers des institutions, des ensembles de préceptes, des références théoriques extrémement diverses, et en dépis de beaucoup de remaniements a gardé a travers le temps, une certaine constance» 17 .
De facto poder-se-ia dizer por exemplo que a óptica do mundo greco-romano era já dominada pelo desenvolvimento dos fundamentos da geometria euclideana (que tinha emergido exactamente em função do alfabeto fonético) e da "perspectiva", bem como das leis da reflexão em espelhos planos e esféricos, de algumas premissas da lei da refracção e do percurso óptico 18 .
Ora, o que importa sobretudo reter é que não estamos de facto perante um sistema rígido, fundado no Renascimento, mas antes perante um elemento estilístico susceptível de ser continuamente reelaborado e reinterpretado nas diversas épocas ou regiões da arte 19 . Veremos que o mesmo acontece com o dispositivo historico-cultural de dominação.
A perspectiva artificialis, propriamente dita, interessa-nos sobretudo porque é a partir dela que se poderá justificar a transformação da espacialidade no Renascimento: «(...) Envisageant ainsi la perspective et la représentation de l'espace comme la manifestation concrète d'un état spécifique de la civilisation, j'ai été amené à me demander si la fortune du système plastique élaboré par le Quattrocento n'était pas aussi bien liée au déclin d'une certaine forme matérielle et intelectuelle de l'activité des hommes qu'a son apparition. J'ai été aussi amené à concevoir une démonstration en partie double: naissance et déclin d'un espace plastique lié à la naissance et au déclin d'un état de civilisation (...). Contrairement à Wolfflin qui tend à considérer la fonction visuelle indépendemment des autres fonctions intelectuelles, je crois qu'il est nécessaire de l'étudier par rapport à l'activité totale de l'homme à une époque donnée» 20 .
Aliás, essa descontinuidade operada na espacialidade renascentista havia sido referida por Cassirer como sendo a ruptura estabelecida entre o espaço psico-fisiológico, da percepção sensível (que não conhecia, por exemplo, a noção de infinito) e o espaço matemático estruturado em termos de infinito, continuidade e homogeneidade; ou, como referiria também Panofsky, baseando-se em Cassirer: «Alors que la fonction de la perspective de la Renaissance pourrait se comparer à celle du criticisme, on pourrait mettre en parallèle la fonction de la perspective romano-hellénistique et celle du scepticisme. En fait, on avait réussi a opérer la transposition de l'espace psychophysiologique en espace mathématique, en d'autres termes, l'objectivation du subjectif» 21.
Esta objectivação do subjectivo é sobretudo uma objectivação do olhar. O "olho-sujeito" é já de facto uma concepção da Renascença, em antecipação clara à analogia que Descartes fazia em La Dioptrique entre o olho e a camara obscura, que mais tarde irá produzir uma imagem análoga à do campo perspectivo renascentista, recolocando-se por isso, por excelência, no lugar do sujeito, no lugar produtor de sentido, um espaço que se funda - e se centra - agora, no olhar.
Também aqui, e retomando em parte o que já foi dito, a concepção do espaço que está na base da perspectiva renascentista difere obviamente da dos Gregos. Para estes, como refere Jean-Louis Baudry, o espaço é descontínuo e heterogéneo (em Aristóteles, mas também em Demócrito, onde o espaço é o lugar de uma infinidade de átomos indivisíveis) enquanto que em Nicolas de Cues vai nascer uma concepção do espaço formado pela relação entre elementos que se encontram igualmente vizinhos e afastados da "fonte de toda a vida". Por outro lado, a construção pictural dos Gregos teria respondido à organização da cena fundada sobre a multiplicidade dos pontos de vista (tal como surgirá, no teatro, a cena politópica antiga e medieval), enquanto que a pintura da Renascença vai elaborar um espaço centrado («A pintura não é mais do que a intersecção da pirâmide visível seguindo uma distância dada, um centro fixo e uma determinada luz» - Alberti) em que o centro coincide com o olho que será justamente chamado por Jean Pélerin Viator (De Artificialis Perspectiva, 1505) de "sujeito" 22 .
Nas vias abertas por Jean Duvignaud para uma antropologia do imaginário 23 baseada nos lugares do espaço, nas suas formas e nos seus discursos - das muralhas que o burgo destrói ao espaço huis-clos do teatro - é muito claramente definido o lugar da imagem do homem na variabilidade das concepções do espaço. Duvignaud exemplifica também os dois principais espaços do imaginário com duas figuras que denotam formas opostas de representação do homem: uma, atribuída a Villard de Honnecourt (séc. XIII) é exactamente o prolongamento medieval do descontínuo grego, espaço de disseminação da figura, espaço descentrado, portanto. Trata-se de facto de um conjunto de esquematizações geométricas que compõem figuras humanas e onde a lei é a da dispersão das linhas. Nada pressupõe o ponto focal exclusivo, nada pressupõe tão pouco a perspectiva. A este propósito Duvignaud cita Baltrusaitis (La stylistique ornamentale dans la sculpture romane): «Il existe un 'dessous' ornamental de cette figuration plastique, et ce dessous est sans doute plus qu'une infrastructure: il rappele la nature et les figures disséminées dans une étendue nomade, en tout cas une variété d'espaces juxtaposés et que ne coordonne pas un espace de pouvoir ou du sacré, un espace unique» 24 .
O último dos "nómadas" é Bosch, como referiu Certeau 25 . No oposto de Bosch e Honnecourt está, porém, o homem-microcosmo de Vitrúvio, amplamente redifundido por Leonardo, Alberti, Vasari, etc. Aqui, o homem é já verdadeiramente o "centro do mundo", para ele convergem linhas de fuga, dele parte o ponto focal, o corpo é aqui a metáfora do humanismo.
Por um lado, pois, a pluralidade de lugares, a disseminação do espaço; por outro, o seu reajustamento centrado, habitado por um só corpo, ele próprio centro do cosmos.
Não é só, no entanto, a concepção do espaço que muda radicalmente. Há um imenso movimento de descontextualização a atingir a Europa nos séculos XV/XVI. «Tudo sofre uma reviravolta: o tempo liberta-se pouco a pouco das redes simbólicas e, deixando de se medir pela vida humana, e pelos ciclos astrais, tende a tornar-se a medida de todas as coisas. Agora é o espaço que será medido pelo tempo. A geometria torna-se a linguagem da nova temporalidade objectiva, simultaneamente o seu critério e a sua expressão; daí em diante todo o espaço se prende nela. A verdade do corpo, dizem os primeiros teóricos da perspectiva como Alberti, retomado por Leonardo, está na geometria. O sentido da representação depende da sua fidelidade ao real e ela depende da geometria. Já não é o sentido da imagem representada que dá o seu valor ao espaço que o envolve, como na iconografia medieval mas o contrário» 26 .
Simultaneamente, duas mediações temporais opostas - e complementares - estão em confronto: o Livro de Horas e o relógio - a nova máquina medidora e quantificadora do tempo homogéneo. E não é por acaso, como bem notou Clara Meneres em L' horloge et le concept de temps en Occident 27 , que os Livros de Horas "degeneram" no final do século XVI, exactamente na altura em que surge Copérnico e as concepções cosmológicas se renovam: «À partir de ce siècle, l'esprit européen adopte la pensée scientifique et sa méthodologie. Le quantitatif prend le dessous sur le qualitatif et l'analogique. Le temps cesse d'être sacré pour devenir exclusivement astronomique, voire scientifique. Et de ce fait, il n'est plus nécessaire d' exorciser la durée par des prières rituelles à chaque nouvelle heure».
Com o Renascimento, o espaço deixa de dominar para ser dominado; a própria espacialidade encontra uma lei. Bruno Zevi notava que ao nível da arquitectura, com Brunelleschi, pela primeira vez, o edifício deixava de possuir o homem, para ser este, aprendendo a lei simples do espaço, a possuir o segredo do edifício 28 .
Dominado o espaço, emergem as figuras de ficção e a representação imaginária. E a esfera pública burguesa. É o reino, por excelência, do voyeur. Dominando o espaço, o homem deixa dominar-se por ele. Era exactamente isso que anunciavam as estátuas das catedrais góticas que continham já a esfera espacial que as "fechava". A própria imagem do homem muda com a concentração no espaço fechado que é a cidade - a ville-machine, ou a ville-matrice de Duvignaud: «Cette machine ne tourne pas a vide. De tout cela, de ces fragments de nature ou de matière, la ville fait autre chose, qui n'est plus la chose, mais la détourne vers un signe. Et de ce détournement, la ville construit d'innombrables signes ou métaphores. Elle est une machine à transformar la matière en symboles. L'homme qui l'habite se nourit lui-même de ces symboles, éloigne le désir ou la mort, efface la panique d'un tête à tête avec le cosmos, et trouve dans le discours abstrait le centre de gravité de son existence» 29 .
Espaços nómadas e espaços centrados, voltamos a encontrá-los respectivamente com as sacre representazione e os "mistérios" politópicos medievais, e com a matriz de toda a representação - o espaço fechado da cena à italiana, que vem acentuar, de facto, a tentação do Príncipe - propondo-lhe uma visão do mundo que lhe restituirá a soberania procurada, se bem que ainda como utopia.
O campo visual autonomiza-se, portanto. Isso explicará teses como as de Huizinga e Elias: «L'orientation du mouvement de civilisation vers une 'privatisation' sans cesse plus prononcée et plus complète de toutes les fonctions corporelles, vers leur déplacement hors du champ visuel de la société» 30 .
Nesse sentido, já no final da Idade Média, somos progressivamente confrontados com um controlo das pulsões cada vez mais acentuado; a lei não é tanto o expôr, mas sim o esconder. Lembremos por exemplo, as relações extra-conjugais do homem e a evolução do casamento no Ocidente: apesar das pressões da Igreja a monogamia só se institucionaliza, de facto, de uma forma obrigatória para os dois sexos, a partir do Concílio de Trento, no século XVI (1545-63). Até então é vulgar nas famílias burguesas filhos bastardos serem criados e educados juntamente com os legítimos, embora com direitos diferentes. Esconder, dissimular, é ainda a lei que prevalece sobre a "ingenuidade", a nudez medieval: a toilette de noite aparece sensivelmente ao mesmo tempo do lenço, do guardanapo, do garfo. Com o olhar vem o pudor. Ao rosto, sobrepõe-se a máscara.
Veja-se por exemplo Erasmo em A Civilidade Pueril: «É indigno de um homem bem educado descobrir, sem necessidade, as partes do corpo que o pudor natural leva a esconder. Quando a necessidade nos forçar a fazê-lo, devemos dar mostras de um decente recato - ainda que ninguém nos observe. Não há lugar onde os anjos não se encontrem! E o que mais lhes apraz numa criança é o pudor - companheiro e vigilante dos bons costumes. Por outro lado, se a decência nos ordena que escondamos essas partes dos olhares dos outros, menos ainda as devemos tocar com as mãos» 31 .
Esta ordem do olhar, ordem disciplinar do olhar, funda, por si só, o início de todo um processo de dominação e normativização do social a partir, portanto, do final da Idade Média. Aí se encontrará, pois, um dos índices mais importantes da constituição, ou melhor, da redefinição, do dispositivo histórico-cultural de dominação na emergência da modernidade. Veja-se, por exemplo, um dos casos limite, o do dispositivo disciplinar - o panopticon de Jeremy Bentham.
Algo mais suave no seu dispositivo, mas ditado, de certa maneira, pelos mesmos motivos, são de facto os manuais de boas maneiras dos séculos XV-XVI, entre os quais está o já citado livro de Erasmo publicado em 1530.
Tratava-se fundamentalmente, nesta literatura de civilidade, de prescrever normas de conduta, padrões de comportamento, corrigir gestos, se bem que nessa altura, como notou Philippe Ariès, ainda se não falasse em civilidade ou decoro, mas em cortesia: «No século XV estes manuscritos de cortesia são o equivalente, para o modo como se conduzir, das relações de costumes do direito; no século XVI constituem relações de regras costumeiras de comportamento ('Códigos de comportamento') que definiam como cada um se devia comportar nas diversas circunstâncias da vida quotidiana» 32 . O facto é que a vulgarização desta literatura - e nomeadamente do livro de Erasmo foi de tal modo importante que de um indivíduo que cometesse uma qualquer grosseria, se dizia então - «Não leu a Civilidade Pueril!»...
A máscara interpõe-se exactamente ao olhar: «L'oeil est au service d'une découverte du monde: c'est la pointe avancée d'une 'curiosité' encyclopédique qui, au XVIè siècle, 'entasse frénétiquement' les matériaux et pose ainsi les fondements de la science moderne. Le rare, l'étrange, le singulier - objets déjà collectionnés par l'attention médiévale - sont saisis dans la 'ferveur' d'une ambition: 'que rien ne demeure pour l'homme étranger et que tout lui devienne serviteur' (Alphonse Dupront, Espace et Humanisme). Il y a un 'vertige de curiosité', qui orchestre alors le développement de toutes les 'sciences curieuses' ou 'sciences occultes'. L'ivresse de savoir et le plaisir de voir pénètrent l'obscur et déplient l'intériorité des corps en surfaces offertes à l'oeil (...) Cette curiosité conquérente et jouissante, occupée à dévoiler le caché, a son symbole dans les récits de voyage avec le face à face du découvreur, vêtu, armé, croisé, et de l'Indienne nue'» 33 . «(...) Le corps du monde devient une surface offerte aux inquisitions de la curiosité. A l'époque, il en va de même pour le corps de la ville et celui du malade, mués en espaces lisibles. Par les 'petits pertuis' d' expériences sucessives, le voile traditionnel qui cachait l'opacité des choses se dêchire et permet de reconnaître la terre oculairement» 34 .
Para trás ficavam os banhos públicos medievais, frequentados inclusive pelas religiosas. Para trás ficava a alegria de ter uma 'alma' no corpo,... a alegria de ser - que Drieu la Rochelle referiu; E do mesmo modo que Foucault havia referido na Histoire de la Folie, também Michel de Certeau considera em La Fable Mystique que «face à Ia rationalité bourgeoise montante, se dressent les modèles d'une folie (l'idiot, Ia femme, l'enfant, le sauvage)». Origem de toda esta inversão: o "olho-sujeito" que transforma a terra-mãe em terra-objecto. Foucault chamava o "grand renfermement" da loucura às diferentes reacções suscitadas pela presença do louco na Idade Média e na Idade Clássica: «(...) Si le fou apparaissait familièrement dans le paysage humain du Moyen Age, c'était en venant d'autre monde. Maintenant, il va se détacher sur fond d'un problème de police, concernant l'ordre des individus dans la cité. On l'accueillait autrefois parce qu'il venait d'ailleurs; on va l'exclure maintenant parce qu'il vient d'ici même, et qu'il prend rang parmi les pauvres, les miséreaux, les vagabonds. L'hospitalité qui l'accueille va devenir, dans une nouvelle équivoque, la mesure d'assainissement qui le met hors circuit. Il erre, en effet; mais il n'est plus sur le chemin d'un étrange pèlerinage; il trouble l'ordonnance de l'espace social. Déchue des droits de la misère et dépouillée de sa gloire, la folie, avec la pauvreté de l'oisiveté, apparaît désormais, tout sèchement, dans Ia dialectique immanente des États. (...) L'internement se fait massif (...) 35 . (...) Le classicisme a inventé l'internement, un peu comme le Moyen Age la ségrégation des lépreux» 36 .
Compreende-se assim que Artaud tenha dito, por outras palavras, o mesmo que Clavel haveria de dizer de Foucault e da sua Histoire de la Folie, quando o acusou de ter sido o grande destruidor do Iluminismo. Artaud referia-se concretamente à Renascença e dizia o seguinte: «Avec une réalité qui avait ses lois surhumaines peut-être, mais naturelles, la Renaissance du XVIè siècle a rompu; et l'humanisme de Ia Renaissance ne fut pas un agrandissement, mais une diminution de l'homme» 37 .
A loucura, a homossexualidade, a prostituição compõem a exclusão-espectáculo em que se transforma o "grand renfermement" no final da Renascença. «Le corps devient un tableau lisible et donc traduisible en ce qui peut s'écrire dans un espace de langage. Grâce au dépliement du corps devant le regard, ce qui en est vu et ce qui en est su peuvent se superposer ou s'échanger (se traduire). Le corps est un chiffre en attente de décryptage. Ce qui du XVIIè au XVIIIè siècle rend possible la convertibilité du corps su, ou de l'organisation spatiale du corps en organisation sémantique d'un vocabulaire - et inversement -, c'est la transformation du corps en étendue, en intériorité ouverte comme un livre, un cadavre muet offert au regard 38.»
Sob o olhar-sujeito a loucura constitui-se assim em rejeição, já que ela própria era uma paradoxal manifestação do não-ser, do nada. Não espanta, pois, que meses após ter sido publicado o decreto de fundação, em Paris (1656), do Hospital Geral, um em cada cem parisienses tenha sido internado. A esfera pública burguesa estava assim mais tranquila. Os corpos visíveis são então os da Razão. De facto, com Descartes a loucura é exílio: o sujeito que pensa não pode ser louco, não duvida do seu próprio corpo nem dos sentidos... Com Descartes a visão geométrica e mecânica do espaço renascentista é retomada como o único espaço científico, o reino do algarismo matemático.
Se Bizâncio foi iconoclasta, se procedeu a uma verdadeira extinção simbólica, o Ocidente não o foi menos. É o caso do século XVII, e concretamente do cartesianismo, que vem de facto assegurar o triunfo de um novo iconoclasmo, baseado no triunfo do "signo" sobre o símbolo operando a uma «redução do ser à teia de relações objectivas que dele resultou, liquidando no significante tudo o que era sentido figurado», como referiu Durand. «Um iconoclasmo tão radical não se desenvolveu sem graves repercussões na imagem artística pintada ou esculpida. O papel cultural da imagem pintada foi extremamente minimizado num universo em que é diário o triunfo do poder pragmático do signo. Até mesmo Pascal afirma o seu desprezo pela pintura, prefaciando assim o abandono social a que será votado 'o artista' pelo consenso ocidental, inclusive durante a revolta artística do romantismo. O artista, como o ícone, já não tem lugar numa sociedade que pouco a pouco eliminou a função essencial da imagem simbólica». Assim, e ainda segundo Durand «a virtude essencial do símbolo é a de assegurar no seio do mistério pessoal a própria presença da transcendência e não esclerosar-se em dogma e em sintaxe» 39 .
De certo modo era isso que Étienne Gilson queria dizer quando definia a pintura de Giotto até Cézanne como a representação de coisas. A partir de Cézanne poder-se-á dizer que Durand e Lévi-Strauss estão em sintonia: a arte continua a não encontrar saída para a "possessividade", isto é, continua a ter um carácter sobretudo representativo, distanciando-se por isso de um excesso de significação, ainda que tenham havido ameaças de ruptura com o impressionismo, o cubismo, a arte abstracta, sem contudo conseguirem aquilo a que Lévi-Strauss chamava o excès d'objet da arte primitiva, e entrando numa era apictural ou na era do "academismo do significante" por oposição à fase pré-impressionista do "academismo do significado" 40 .
É ainda o iconoclasmo que está presente na derradeira etapa da extinção progressiva do poder humano de se relacionar com a transcendência, do poder de mediação natural do símbolo. A mimesis continuará a reinar, provavelmente toda-poderosa, no campo representativo. Parafraseando Alberto Pimenta: «A história da cultura é a história da superioridade do sósia sobre o original, do símbolo sobre a coisa representada» 41 . Derrida diria, que toda a história da filosofia ocidental era uma fotologia.
Foucault é também sensível a toda esta questão: «O início do século XVII é o tempo privilegiado do 'trompe-l'oeil', da ilusão cómica, do teatro que se desdobra e representa no seu interior outro teatro, do quiproquó, das fantasias e visões; é o tempo dos sentidos enganadores; é o tempo em que as metáforas, as comparações e as alegorias definem o espaço poético da linguagem. E exactamente por isso deixa o saber do século XVI a lembrança deformada de um conhecimento misto e sem regras em que todas as coisas do mundo podiam aproximar-se ao acaso das experiências, das tradições ou das (in)credulidades. Doravante, as belas figuras rigorosas e constringentes da similitude vão ser esquecidas 42 ». Como refere Foucault 43 : « (...) Até ao século XVI o signo significa na medida em que revela semelhança com aquilo que indica (...). A partir do século XVII perguntar-se-á como é que um signo pode estar ligado àquilo que significa. A tal pergunta a idade clássica responderá pela análise da representação; e por sua vez o pensamento moderno pela análise do sentido e da significação».
Digamos que é, no fundo, o prolongamento do mito grego de Narciso que subjaz a todas estas práticas do olhar e, enfim, do olhar-se.

Notas:

1 J. Huizinga, O declíneo da Idade Média, Lisboa, Ulisseia, s/d.
2 Marshall McLuhan, A galáxia de Gutenberg, São Paulo, CEN, 1977, p.88.
3 McLuhan, idem, pp. 72 e 99.
4 Michel Butor, «Éloge de la machine à écrire», L'Arc, número especial sobre Gutenberg, Paris, 1972.
5 Giovanni Beccati, A escultura grega, Lisboa, Arcádia,1965, p.22.
6 Erwin Panofsky, La perspective comme forme symbolique, Paris, Éditions de Minuit, 1976, p.79.
7 Georges Charbonnier, Entretiens avec Lévi-Strauss, Paris, UGE, 1961, p.69.
8 Charbonnier, op. cit., p.73
9 Idem, p.75.
10 Gilbert Durand, A imaginação simbólica, Lisboa, Arcádia, 1979, pp.40-41.
11 Durand, op. cit., pp. 33-35.
12 André Bazin, «Ontologie de l'image photographique», Qu'est-ce que le cinéma, Paris, Éditions du Cerf.
13 Jean Franklin, Le discours du pouvoir, UGE, Paris, 1975, p. 66.
14 Durand, op. cit., p. 35
15 Marisa D. Émiliani, «La question de la perspective», La perspective comme forme symbolique, Paris, Éditions de Minuit, 1976.
16 Erwin Panofsky, op. cit., p. 91.
17 Michel Foucault, «Usages des plaisirs et techniques de soi», Débat, Novembre 1983, p. 63.
18 Vasco Ronchi, Histoire de la lumière, Paris, Armand Colin, 1956.
19 M. D. Émiliani, op. cit., p. 17.
20 Pierre Francastel, Peinture et société, Paris, Galimmard, 1951.
21 Erwin Panofsky, op. cit., p. 159.
22 Citado por Jean-Louis Baudry, «Effets idéologiques produits par l'appareil de base», Cinétique, nº 7/8, 1970
23 Jean Duvignaud, Lieux et non-lieux, Paris, Galilée, 1977.
24 Duvignaud, idem, p. 145.
25 Michel de Certeau, La fable mystique, Paris, Gallimard, 1982.
26 José Gil, Metamorfoses do corpo, Lisboa, A Regra do Jogo, 1980, p. 103.
27 Tese de doutoramento, sob orientação de Serge Moscovici, dactilografada, Paris, 1980
28 Bruno Zevi, Saber ver a arquitectura, Lisboa, Arcádia, 1966.
29 Duvignaud, op. cit., pp. 13-14.
30 Norbert Elias, La civilisation des moeurs, Paris, Calmann-Lévy, 1973.
31 Erasmo, A civlidade pueril, Lisboa, Estampa, 1978, p. 78.
32 Philippe Ariès, prefácio a A civilidade pueril de Erasmo, op. cit.
33 Michel de Certeau, L'écriture de l'histoire, Paris, Gallimard, 1975, p.242.
34 Marc Lescarbot, L'histoire de la nouvelle France, Paris, 1609, citado por Certeau, op. cit., p. 245.
35 Michel Foucault, L'histoire de la folie a l'age classique, Paris, Gallimard, 1982, pp 74-75.
36 Foucault, op. cit., p.64.
37 Antonin Artaud, Vie et mort de Satan le feu, citado por Foucault, Histoire de la Folie, p. 41.
38 Michel de Certeau, L'écriture de l'histoire, pp. 9-10.
39 Gilbert Durand, A imaginação simbólica, p. 37.
40 Georges Charbonnier, op. cit., p. 91
41 Alberto Pimenta, «Cinco teses para uma determinação do simbólico», A (más)cara diante da cara, Lisboa, Arcádia, 1982.
42 Michel Foucault, As palavras e as coisas, Lisboa, Portugália, s/d, p. 77.
43 Foucault, op. cit., pp. 49 e 67.

14.7.04

A origem da tipografia e da esfera pública burguesa

D. Quixote lê o mundo para demonstrar os livros (...). É o
jogador desregrado do Mesmo e do Outro. Toma as coisas por aquilo
que elas não são, e as pessoas umas pelas outras (...). É a primeira
das obras modernas pois nela se vê a razão cruel das identidades
e das diferenças zombar incessantemente dos signos
e similitudes (...).
Michel Foucault




Origem, e não tanto génese, ou genealogia, exactamente no sentido em que Walter Benjamim definia o "vir-a-ser" do objecto histórico, esse salto em direcção ao novo objecto, em direcção ao que emerge do próprio inacabamento da história fragmentária, objecto em devir, no qual residem as figuras do descontínuo na história.
Digamos que será desse modo que melhor se poderá definir, na abordagem do universo pós-tipográfico, questões sobretudo relacionadas com a teoria do espaço público onde, vimos já, um dos aspectos fundamentais a destacar neste período de transição da Renascença para a Idade Clássica é exactamente o da instauração de uma ordem disciplinar do olhar, constitutiva do dispositivo histórico-cultural que caracteriza o universo tipográfico.
Nesta passagem reside algo de fundamental para a caracterização da episteme clássica, no que concerne concretamente à emergência da tipografia e, enfim, da esfera pública burguesa. Vejamos então, ainda que, de início, numa abordagem genealógica, como se processou a transição do universo pré-tipográfico para a chamada galáxia Gutenberg.
Com a total desarticulação do Império Romano e o progressivo alargamento do poder bárbaro a todas as regiões que anteriormente estavam sob domínio romano verifica-se em toda a Europa meridional uma situação de profunda recessão global, conhecendo-se hoje, da fase pré-gutenberguiana, essencialmente obras copiadas pelos monges beneditinos a partir de textos fundamentais do cristianismo, alguns mesmo da cultura antiga e, muito em partícula, a Bíblia. A Igreja torna-se, aliás, a verdadeira continuadora do Império, conseguindo a unidade religiosa possível para a Europa.
Durante este período de desagregação social, política e cultural, a única força que permaneceu viva, como defendeu Regine Pernoud, foi precisamente o núcleo familiar, o que se viria a traduzir efectivamente numa preponderância muito marcada, na época medieval, da vida privada sobre a vida pública, aspecto a ter obviamente em conta na caracterização da genealogia da esfera pública burguesa. De facto, poder-se-á dizer que as duas grandes instituições que legitimam de igual modo uma hipotética identidade europeia latente perante o caos bárbaro são, portanto, por um lado a família e, por outro, a Igreja. Acima delas, a transcendência.
Poder-se-ia dizer em relação a este período, que o universo pré-tipográfico é fundamentalmente marcado, por um lado, pela constante transcendental, teocêntrica, e, por outro lado, pelo progressivo desenvolvimento - e aproximação - de dois tráfegos distintos: o tráfego da mercadoria e o tráfego da notícia. E a verdade é que com a civilização do livro tudo iria mudar ...
É pois no contexto da sociedade pré-capitalista emergente nos finais da Idade Média que surge esse tráfico paralelo onde mercadoria e notícia se complementam, para empregar uma expressão de Habermas1 «(...) Los cálculos del comerciante orientado en el mercado necesitaban, como consecuencia de la extensión del comercio, de información más frequente y más exacta sobre hechos y antecedentes especialmente lejanos. Por eso, desde el siglo XIV el viejo tráfico epistolar del comerciante da lugar a una especie de sistema profesional de correspondência. Los primeros trajectos de los emisarios, de los llamados correos ordinários - que partían en determinadas fechas -, fueron organizados por los comerciantes de acuerdo con sus proprios fines. Las grandes ciudades comerciales son al mismo tiempo centros de tráfico de noticias, cuya permanencia se hizo urgente en la medida en que el tráfico de mercancias y de papeles-valor se hizo también permanente. Casi al mismo tiempo que surgen las bolsas, institucionalizaron el correo y la prensa los contactos y la comunicación duraderos.»
Por seu lado, McLuhan ao tentar definir a própria estrutura historico-cultural da emergência da tipografia fá-lo, reconhecendo, nomeadamente, o primado da visualidade sobre o audiotáctil característico das sociedades orais e inclusive do período medieval, mas apontando também que é nesse contexto que se verifica, em simultâneo, o despontar das economias nacionais e dos governos centralizados dos Estados europeus emergentes, que se reviam, por assim dizer, na proposta do carismático condottiero, do Príncipe, de Maquiavel, o qual havia sido, no fundo, o resultado de uma concepção política de Estado unitário um pouco à imagem - e pela evocação - do passado grandioso da Roma imperial.
A este processo não é estranha, ainda, a questão da emergência das línguas vernáculas. A conquista romana havia divulgado por toda a Europa meridional o latim. De facto, se as estradas romanas haviam sido as estradas do papel, elas haviam sido também as estradas do latim, língua que era, mais do que um traço-de-união, um latim de casta, instrumento efectivamente mais de dominação do que de comunicação 2.
Essa homogeneidade quebrar-se-á inevitavelmente com as sucessivas invasões de que a Europa meridional é alvo. A pouco e pouco a especificidade dos dialectos locais tende a retomar o lugar outrora ocupado pelos latinismos. Não é de admirar que as primeiras regiões a afirmarem o seu próprio vernáculo fossem as dos dialectos germânicos, pouco atingidos pela romanização. «On peut estimer que les clivages qui se manifestèrent en cette occasion eurent des conséquences très durables sur l'attitude des populations européennes, en pénalisant celles qui restèrent le plus longtemps liées à une culture latine qui ne leur était désormais plus accessible que par l'intermédiaire des clercs. Peut-être même peut-on voir là l'une des raisons profondes du partage historique de l'Europe entre un Nord plus tôt alphabétisé et conquis par la Réforme, et un Sud plus latinisé, qui restera fidèle au catholicisme» 3 .
O processo de radicação das línguas vernáculas é aliás extremamente lento. Poder-se-á dizer que só no século XVII estabilizam definitivamente. Nas igrejas, porém, o latim continua distante desse processo de laicização, e só as abandonará já em pleno século XX, após o Concílio Vaticano II - não por ele, mas antes pela entrada do microfone nas igrejas, como bem notou McLuhan 4... Aliás, e para retomar agora a questão do dispositivo de dominação pós-medieval, McLuhan refere que a tipografia, ao estimular e promover os nacionalismos o faz precisamente na medida em que transforma as línguas vernáculas em meios de comunicação de massa 5 : «Se a palavra impressa transformou as línguas vernáculas em meios de comunicação de massa, elas, por sua vez, constituíram-se em instrumentos de autoridade governamental centralizada, infinitamente mais poderosos do que todos aqueles que os romanos haviam conhecido, como o papiro, o alfabeto e as estradas pavimentadas».
É pois dentro desta ordem político-cultural, em plena fase mercantil do capitalismo, que se desenvolverá o segundo elemento constitutivo desse tráfico prematuramente capitalista, isto é, a imprensa.
Ora, como bem viu Michel Foucault, no mercantilismo as relações entre riqueza e moeda estabelecem-se na circulação e na troca, e não já na preciosidade do metal. Mas assim como se procede a uma desqualificação do metal, procede-se a uma sobrevalorização da notícia: «El tráfico de noticias mismas se han convertido en mercancías. La información periodística profesional obedece, por tanto, a las mismas leyes del mercado, a cuyo surgimiento debe ella su propia existencial» 6 .
Não se pode pois desligar a emergência da tipografia da própria emergência da sociedade burguesa nos seus eixos económico e cultural - fundamentalmente esses.
Quer, de facto, como vimos, a transição do feudalismo para um pré-capitalismo mercantilista na sua vertente económica - criação das feiras, de novos mercados, de bancos, actividade seguradora, etc. (com tudo o que essa transição implicava ao nível da interacção entre um tráfico das mercadorias e um, por assim dizer, essencial tráfego da informação), quer, por outro lado, a própria emergência das Universidades, que exigiam uma produção de textos seriada, à qual as peaciae já não podiam responder, ambas as vertentes - económica e cultural, foram assim decisivas para a própria emergência dos caracteres móveis metálicos da prensa de um ex-ourives de seu nome Joahnnes Gutenberg.
Michel de Certeau já havia referido que a distância entre a Idade Média e o Renascimento poderia mesmo ser nomeada por aquilo que separa o copista antigo do tradutor moderno: na verdade, com a tipografia, o trabalho de reposição de toda uma cultura antiga cede progressivamente ao trabalho de tradução de todo um saber clássico. As universidades estão obviamente no cerne dessa ruptura.
Olhemos um pouco para trás, vejamos o que se passava com os manuscritos. Digamos que os séculos de ouro do manuscrito são concretamente os séculos XIII, XIV e XV. Até ao século XII temos essencialmente uma dominante monástica, de restabelecimento de todo um acervo da Antiguidade; a partir do século XII, com a emergência das universidades e o desenvolvimento da instrução laica, enfim, com o despontar da nova classe burguesa (legistas, conselheiros, altos funcionários, mercadores) assiste-se fundamentalmente à configuração de um período laico, tendo por centro intelectual a própria universidade, a partir da qual, através do novo sistema de produção artesanal em cadernos, se atingiu, digamos, um activo comércio de livros manuscritos, muitas vezes manuscritos por vários copistas - cada um com o seu peaciae.
Em paralelo com este novo regime de produção é fundamental referir a introdução da indústria do papel na Europa: o pergaminho é progressivamente substituído, embora o papel não trouxesse grandes vantagens a não ser ao nível da produção - que poderia ser praticamente ilimitada; mas era mais frágil, mais poroso à tinta, pior para a iluminura, por exemplo.
Nasce, portanto, como vimos, um novo público de leitores, exterior à vida religiosa, e, em simultâneo, em cada centro universitário, uma autêntica corporação de profissionais do livro, desde o copista laico ao organizador de bibliotecas.
A produção de cópias é então feita da seguinte maneira: existe o manuscrito de base - o exemplar - que a universidade empresta, contra o pagamento de uma taxa, já devidamente corrigido e revisto após cada nova utilização; no entanto, não se trata do empréstimo da obra na sua totalidade mas sim por cadernos separados - o que permitia obviamente uma circulação maior do que um só exemplar. Eram estes cadernos que recebiam a designação de peaciae.
Ainda que, por exemplo, em Paris, este sistema vigorasse no final da Idade Média, o certo é que as primeiras prensas parisienses, e de um modo geral todo o período que antecede a imprensa periódica - nomeadamente o período dos incunábulos -, tinham por principal objectivo a reprodução dos clássicos antigos e não os grandes textos universitários modernos. Esta era aliás a tendência que já se notava no período laico dos manuscritos: mais de dois mil exemplares copiados nos séculos XIII e XIV de obras de Aristóteles chegaram até nós... Mas, de facto, se essa produção acontecia ao nível do manuscrito medieval, ela vai voltar a verificar-se no período dos incunábulos. À medida que nos aproximamos de 1440, o copista é cada vez mais um produtor de série.
Não fazia sentido, entretanto, aproximarmo-nos da invenção da tipografia sem que o papel não viesse em seu auxílio, transformando-se por excelência no seu suporte. A Europa tinha-o descoberto no século XII, através dos árabes, que o tinham trazido da China, onde a xilografia era já prática corrente... Nos finais do século XIV o papel era já utilizado de uma forma geral em toda a Europa, tendo começado inicialmente por Itália, depois sul de França, Suíça, etc.
Chega pois o ano de 1440. Segundo as crónicas de Colónia de 1499 "a admirável arte da imprensa" tinha nascido em Mogúncia-sobre-o-Reno, na Alemanha, através das "formas férreas" - os caracteres móveis metálicos -, que Gutenberg havia criado. Jean Fust, que havia ajudado Gutenberg na sua investigação, leva-o em 1455 a tribunal pedindo-lhe o capital emprestado, e dele, Gutenberg, pouco mais se sabe a partir de então... Sabe-se no entanto que o primeiro livro impresso - a Bíblia de 42 linhas - é de sua lavra. É conhecida exactamente como a "Bíblia de Gutenberg".
Fecha-se assim o círculo: tal como Jean Fust, rico burguês que está por detrás dos trabalhos de Gutenberg, também os primeiros editores foram comerciantes: «Le bailleur de fonds - le capitaliste - intervient pour jouer un rôle essentiel. C'est lui qui supporte les risques des enterprises; c'est lui qui se charge d'écouler la production, et c'est bien souvent lui qui choisit les textes à editer. Parfois aussi, il est amené à fonder un grand atelier dans lequel on travaille selon les méthodes de la grande industrie - et non plus seulement sous simple artisanat» 7 .
A partir de então os textos passam a estar devidamente normalizados, assinados, apoiados em índices, colofons, notas, etc. Há uma clara oposição neste aspecto entre a cultura tipográfica e a manuscrita. Assim, para E. Eisenstein, o aparecimento do livro separa duas "renascenças" profundamente diferentes: "Un mouvement littéraire et artistique régional, italien, encore pris dans les contraintes et les limites de la culture manuscrite, et qui (contre Burckhardt et surtout contre Panofsky) n'est pas fondamentalement différent des éphémères renaissances carollingiennes ou du XIIè siècle. Puis, après l'invention de l'imprimerie, un mouvement européen qui affecte tous les domaines de la connaissance; le livre ne lui sert pas seulement de multiplicateur, mais bouleverse les conditions d'une évolution culturelle qu'il réoriente en profondeur. Alors commence vraiment la modernité» 8.
Como propõe Elísabeth Eisenstein, a tipografia não marca apenas uma evolução, mas sobretudo uma ruptura cultural profunda da qual resultam consequências comulativas. Não há dúvida pois que em causa está o repensar de toda a modernidade, desde a Renascença e Reforma à Revolução Científica dos séculos XVI-XVII, e enfim, até à Idade Clássica: "C'est l'imprimé qui est au coeur du processus de modernisation culturelle que connait l'Europe à partir de la fin du XVè siècle» 9 .
Ora, se os manuscritos e os pergaminhos estavam efectivamente ligados à distribuição feudal dos bens, a tipografia verá emergir o Estado moderno e um novo público leitor, laico, o qual viria a estar na origem das grandes mutações pós-Gutenberg.
Tal como refere Habermas, na medida em que a imprensa servia à burguesia dominante para dar a conhecer ordens e disposições, pela primeira vez os seus destinatários se converteram em "público".
É aliás exactamente a constituição de uma esfera em que as pessoas privadas se reúnem na qualidade de público, o que, segundo Habermas, melhor define a emergência da esfera pública burguesa, situando-se assim fundamentalmente nos séculos XV-XVI a génese da "publicidade burguesa", a emergência das suas redes de sociabilidade e dos seus jogos de teatralidade. Poder-se-ia dizer inclusive que a este nível, Sennett 10 e Habermas não distariam muito se, por esfera pública, se entendesse o «lugar onde se produzem violações toleradas da moral»... Mas a questão é bem mais complexa. Veremos que num segundo tempo a própria definição de esfera pública se torna mais problemática.
Retomando a questão do "novo público" veremos que Elisabeth Eisenstein introduz um novo elemento concedendo ao atelier do tipógrafo o estatuto de centro difusor de ideias, congregador de gente letrada, lugar de encontro público, esfera de sociabilidade: «Dans l'Europe déchirée du XVIè siècle se constitue ainsi à partir de l'atelier, autour du livre, une communauté intellectuelle qui va bien au-delà de l'idéalisation collective ou de la simple proclamation d'intention. Cette première République de lettres partage une même conception du savoir et du travail; elle a en commun des enjeux. En amont comme en aval du livre, nouveau vecteur culturel, sont ainsi réunis les conditions d'une circulation originale de l'intelligence et du savoir» 11. Os próprios ateliers dos tipógrafos eram uma espécie de velhos cenáculos de gente cultivada onde homens de ciências e letras mantinham reuniões frequentes. Rabelais chegou a ser o membro mais ilustre dos cenáculos de Lyon, por onde passaram parte das personalidades de primeiro plano da vida intelectual do tempo.
Mas foram os círculos parisienses que desde meados do século XVI, a partir da criação do primeiro círculo literário, mais se destacaram. É o caso do círculo dos Morel na residência de Jean de Morel, mordomo de Henrique II e aposentador-mor de Catarina de Médicis; é o caso também do salão do Palácio de Metz, grande centro de reuniões mundanas e literárias. Tratava-se portanto aqui da circulação de um saber diverso do dos antigos oradores das praças públicas. É nas ''plateias" de leitores, nos auditórios atomizados, nas bibliotecas, nos salões, e mais tarde nos cafés, que mergulham as raízes da Razão moderna, e da esfera pública literária emergente nos finais do século XVII.
A ideia de público, aliás, era já muito clara em pleno século XIV. Veja-se por exemplo Boccaccio, contemporâneo de Chaucer e de Fernão Lopes: convicto de que só seria lido se tomasse a iniciativa de difundir ele próprio a sua obra, escreve várias cartas ao seu amigo Maghinardo dei Cavalcanti enviando-lhe um exemplar de luxo, recopiado, de uma das suas obras mais recentes. A razão do envio da obra, segundo o próprio Boccaccio, residiria no facto do seu amigo desfrutar de excelentes relações e assim o poder melhor divulgar pelo público (emittat in publicum). De uma outra vez, ao dedicar o seu De Claris mulieribus a Andreina Acciagnoli, levanta a mesma questão: «Si vous jugez bon de donner à mon livre le courage de se produire en public (procedendi in publicum), une fois répandu (emissus) sous vos auspices, il échappera, je crois, aux insultes des malveillants» 12.
É portanto este novo público laico, culto, que está na origem do quadro conceptual do espaço público habermasiano, definido como o lugar onde se met-en-scène uma sociedade fundada sobre a comunicação racional em que o actor é, por assim dizer, um público esclarecido, fundador da própria esfera pública literária, anunciadora do iluminismo, e não propriamente como queria Sennett, o - apenas - "homem público" das condutas vulgares, jogador da teatralidade no espaço social.
Enquanto que para Habermas a esfera pública literária emerge a partir do século XVII, em paralelo à corte e contra ela, estando por isso na base da própria desintegração do Antigo Regime (veja-se, por exemplo, a importância da imprensa de opinião em todo esse processo), para Sennett o "homem público" emerge exclusivamente nas sociedades que continham já em si os germes do declínio do regime absolutista. Para além do desfazamento óbvio, na temporalidade, que se verifica entre os dois autores, uma outra dissimetria se poderá notar, em termos de conteúdo. Para Sennett o homem público é aquele que aceita o anonimato ou a impessoalidade da troca social, sendo o "espaço público" exactamente o lugar da teatralidade do jogo social, da mediação simbólica do relacionamento social, onde se comunica de forma anónima, sem declinar a identidade pessoal. Esta concepção não deixa, pois, de ser polémica. Para Louis Quéré, por exemplo, o interconhecimento, contrário ao anonimato, «não interdita a impessoalidade da mesma forma que a sociabilidade não exige o anonimato da grande urbe» 13. Mas a crítica mais importante que Quéré dirige a Sennett é de que se verifica em The Fall of Public Man um desconhecimento latente de que a interacção social se realiza por interposição do pólo fundador dos modelos culturais do campo comunicacional.
O espaço público de Habermas, ao contrário do de Sennett, não é o da interacção quotidiana e das condutas vulgares mas é o da «instituição». Corresponde à emergência de quadros institucionais de interacção social. O que o caracteriza não é pois tanto o homem público - agente da troca simbólica, mas quem incarna o interesse da razão e da emancipação. De qualquer modo, reconhecendo que ao espaço da instituição correspondem as estruturas normativas e cognitivas da esfera da interacção comunicativa, não evidencia, por outro lado, a dimensão conflitual que o modelo comporta. É exactamente nesse "desconhecimento" que toma forma a crítica de Louis Quéré: ele aponta a Habermas a subalternização da dimensão simbólica da instituição, facto que deriva concretamente do seu modelo jacobinista de criação de um consenso livre de toda a dominação, imbricado na sua definição de espaço público, a saber, o lugar onde emerge um sujeito abstracto, um "actor", que é o público esclarecido a que nos referimos, e não «os actores históricos que incarnam o pólo do poder e o pólo da discussão crítica» 14 .
Se o dispositivo de representação do real, na Idade Média, era o regime analógico, a similitude, onde uma lógica da revelação, da transparência, do transcendental, estava na dependência directa de uma ressonância mágica que instituía a unidade das coisas e do mundo, dos discursos e dos objectos, o dispositivo de representação da Idade Clássica acompanha necessariamente o processo de laicização do sujeito histórico, operando-se, por assim dizer, à própria laicização do signo. A linguagem torna-se pensamento, opera-se à dissolução do vinculo pré-clássico entre a palavra e o mundo. A linguagem passa então a desenvolver-se no interior da representação, através das convenções, de um regime de equivalência. Tudo se passa, aliás, como nas relações entre riqueza e moeda. Também na linguagem as palavras se confundem, isto é, entram num processo de degradação em relação à sua transparência essencial: «As palavras valem então mais como signos do que como marcas (de uma anterioridade)»15. Ou, como diria Foucault, se inicialmente a linguagem era um sinal das coisas absolutamente certo e transparente, já que se lhes assemelhava, com a Idade Clássica a palavra perde a sua natureza divina, inquestionável, e o seu 'acto de fundação' deixa de coincidir com o momento da instauração da verdade.
Em todo este processo o caracter tipográfico não deixou de desempenhar o seu papel, como bem notou Paul Heyer 16 : «Un autre élément relatif à l'imprimerie qui eut une influence directe sur la transformation linguistique qui, chez Foucault, caractérise l'épistémè classique, est la notion que la tipographie, par son emploi de caractères neutres distinctifs qui pouvaient être enfilés en des séquences significatives, se trouvait à révéler la nature arbitraire de l'alphabet. Les mots pouvaient perdre plus facilement leur pouvoir intrinsèque et être perçus comme de simples outils de représentation. La technologie - en l'occurrence l'imprimerie en donnait aux mots une permanence jusqu'alors inconnue (...). C'est là, peut-être, ce que laissait entendre Leibniz quand il suggérait qu'on substituat aux modes établis d'analyse un alphabet d'idées.»
Aliás, como vimos, McLuhan defendia que somente com a experiência da "produção em massa" de tipo exactamente uniforme e repetível é que a fissão dos sentidos poderia ter confinado e a visualidade se evidenciado no domínio da própria percepção. E Deleuze localizava na subordinação da expressão gráfica à fonética, na instauração do significante despótico, a emergência do primeiro fluxo desterritorializado de escrita. «Na Idade Clássica servir-se de sinais não é, como nos séculos precedentes, tentar encontrar, subjacente a eles, o texto primitivo de um discurso enunciado e fixado para todo o sempre, mas tentar descobrir a linguagem arbitrária que autorizará o desenrolar da natureza no seu espaço, os termos últimos da sua análise e as leis da sua composição. O saber já não tem de ir arrancar a Palavra aos lugares desconhecidos onde ela porventura esteja oculta; cumpre-lhe fabricar uma língua e fazer com que ela seja perfeita - isto é, que sendo analítica e combinatória, seja realmente a língua dos cálculos» 17.
Classificar é, pois, a palavra. Os séculos XVII e XVIII introduzem, como vimos, as ordens, as identidades e as diferenças. Por aqui se poderia referir as insuficiências do modelo mcluhaniano, expressas na nossa abordagem da emergência da ordem disciplinar do olhar. Mas por agora importará sobretudo ir ao encontro das consequências da própria revolução científica dos séculos XVI e XVII (que Elisabeth Eisenstein havia apontado terem sido já uma consequência da tipografia) e, nomeadamente, daquilo que se viria a delinear como uma "ciência geral da ordem". Aliás, Jack Goody já havia notado que a introdução da escrita nas civilizações que precederam a Renascença, entre outros efeitos, fez despontar um certo tipo de classificação sistemática tal como os signos do Zodíaco, por exemplo, ou as tábuas de interpretação dos signos mágicos do Médio Oriente, uma vez que a própria escrita fornecia à partida os quadros simplificados dos sistemas mais subtis de classificação, próprios das culturas orais.
Veja-se ainda no século XVI o exemplo da Tabula Generalis, de Peter Ramus, que surge na sequência da tentativa de reformar o sistema educativo tradicional e de substituir os velhos métodos de memorização pela "memória artificial" das tábuas e da taxinomia. Não há dúvida pois que a hipótese segundo a qual esta maneira esquemática de tratar as categorias do saber foi favorecido pelo modo escrito de comunicar, ganha uma indesmentível confirmação com o desenvolvimento da taxinomia no universo pós-tipográfico, constituindo-se a partir de então, como notou Foucault, um espaço de empiricidade que não existira até ao fim da Renascença e que é marcado nomeadamente pelos quadros ordenados e, de novo, pelas identidades e pelas diferenças. «O centro do saber, nos séculos XVII e XVIII é o quadro» 18.
Vejamos ainda como Foucault se refere à questão quando aborda a história natural: «Na Renascença a singularidade do animal era um espectáculo; ele figurava nas festas, nos torneios, nos combates fictícios ou reais, em reconstituições lendárias, onde quer que o bestiário desenrolasse as suas fábulas intemporais. O gabinete de história natural e o jardim, mais como se apresentam na época clássica, substituem o desfilar circular do "mostruário" pela exposição das coisas em "quadro". O que se nos depara ao passar daqueles teatros para este catálogo não é o desejo de saber mas uma nova maneira de vincular as coisas simultaneamente ao olhar e ao discurso. Uma nova maneira de fazer história. E sabe-se a importância metodológica que assumiram nos fins do século XVIII esses espaços e essas distribuições "naturais" para a classificação das palavras, das línguas, das raízes, dos documentos, dos arquivos, em suma, para a constituição de todo um meio histórico (...). A conservação cada vez mais completa do escrito, a instauração de arquivos, a sua classificação, a reorganização das bibliotecas, a introdução de catálogos, de repertórios, de inventários, representam, no fim da Idade Clássica, mais do que uma sensibilidade nova ao tempo, ao seu passado, à espessura da história, uma maneira de introduzir, na linguagem já fixada e nos traços que ela deixou, uma ordem que é do mesmo tipo que a que se estabeleceu entre os vivos. E é nesse tempo classificado, nesse devir quadriculado e especializado que os historiadores do século XIX tentarão escrever uma história enfim "verdadeira" - isto é, liberta da racionalidade clássica, da sua ordenação e da sua teodiceia, uma história restituída à violência irruptiva do tempo» 19 .
É, finalmente, do jogador desregrado do Mesmo e do Outro que aqui se fala, como observámos na epígrafe a este texto: «O herói de Cervantes, lendo as relações do mundo e da linguagem como o faziam no século XVI, descobrindo unicamente pelo jogo da semelhança castelos nas estalagens e damas nas camponesas, ficava prisioneiro sem o saber no mundo da pura representação; mas como essa representação só tinha por lei a similitude, não podia deixar de aparecer sob a forma derisória de delírio (...). D. Quixote, mau grado seu, é o objecto da representação que ele próprio é no seu ser profundo" 20 .
O Quixote marca pois o novo tempo dos sentidos enganadores, e como texto romanesco (inclusive, segundo alguns autores, como o primeiro dos romances modernos), marca a transição da prosa épica e do passado absoluto lendário para o discurso romanesco. Mas mesmo considerando que a língua literária medieval era no seu conjunto uma mise en forme do idioma vernacular 21, e que, portanto, a nova prosa medieval era em si um movimento de emancipação relativamente ao latim e à palavra sagrada, o certo é que essa transição de uma "mística" para uma "erótica", ou de uma presença para uma ausência, atestada exactamente pela literatura através de uma lenta transformação da cena religiosa em cena amorosa, realiza-se fundamentalmente pela nostalgia e pelo apagamento progressivo de Deus como único objecto de amor 22. Daí a emergência do romance 23 se prender com a rejeição da palavra sagrada e ser portanto o único género a poder traduzir as tendências evolutivas do mundo novo em devir: «C'est dans le roman seulement que le discours peut révéler toutes ses possibilités originales et atteindre à des profondeurs réelles.» 24
O romance é assim uma estrutura narrativa que depende do ideologema do signo, está intrinsecamente relacionada com a lógica do signo em oposição à lógica simbólica cosmogónica, simultaneamente plurívoca e restritiva, em oposição, finalmente, à poética transcendente: «o ideologema do signo significa uma infinitização do discurso que, relativamente liberto da sua dependência do "universal" (o conceito, a ideia em si), passa a ser uma possibilidade de mutação, uma constante transformação que, embora submetida a um significado, é capaz de múltiplas gerações e, portanto, de projecção para o que não é mas será, ou melhor, poderá ser. E o signo assume esse futuro já não como ocasionado por uma causa extrínseca, mas como uma transformação possível da combinatória da sua própria estrutura»25.
Finalmente, esta redefinição da transição do símbolo para o signo, em plena galáxia de Gutenberg, é sem dúvida um elemento entre muitos outros que nos levam a concluir pela configuração de um dispositivo único. Na verdade, o dispositivo histórico-cultural que marca claramente o universo pós-tipográfico não parece ser assim um novo dispositivo, relativamente ao que tínhamos visto para o caso da escrita, mas antes uma recontextualização e uma redefinição do dispositivo global que informa o universo comunicacional, nomeadamente os universos pós-alfabéticos, a partir de quando se começaram a estabelecer claramente os contornos culturais e políticos intrínsecos às novas mediações simbólicas e tecnológicas. São as nuances que se poderão verificar na transição de uma episteme para outra, e, portanto, no próprio dispositivo de dominação, o que nos parece ser esclarecedor quanto à própria redefinição histórico-cultural, económica, política, do modo de articulação destes diferentes factores no interior das macro-estruturas.
Veja-se por exemplo que o universo tipográfico vê constituir-se no seu seio o próprio Estado moderno, um Estado burocrático e taxinómico por excelência, não se podendo dizer portanto que se tenha operado uma ruptura clara relativamente ao dispositivo da galáxia do logos e à Antiguidade greco-romana, uma vez que é com ela que o próprio Estado emerge e com ele, como vimos, o próprio aparelho burocrático de dominação.
Inclusive, a ordem disciplinar do olhar não é de todo radicalmente nova. Ela é já explícita também no universo da escrita - e é exactamente por isso que Jean Franklin 26 se permite invocar a então emergente "aptidão de ver" para justificar de algum modo a aptidão de conhecer que desponta, e com ela, a faculdade da razão antiga. Esta, por sua vez, constituir-se-á no universo tipográfico em razão moderna, denunciando assim um outro reajustamento do dispositivo global.
A dominação intrínseca ao dispositivo histórico-cultural tipográfico não se inscreve apenas através da lei que a instituição Estado moderno consagra, ou da configuração de todo um relacionamento entre o público e o privado ou dos novos regimes de sociabilidade que passam exactamente pela emergência da esfera pública burguesa e da ordem disciplinar do olhar nela instituída, mas também, e ainda, pela utilização que o Poder passa a fazer daquilo a que já se chama os aparelhos ideológicos do Estado (absolutista) - no caso, a imprensa periódica emergente e, em particular, as gazetas.
Se o universo da escrita era com efeito um império do logos, cujos mecanismos de inscrição e veridicção eram assegurados por uma aristocracia da palavra, poder-se-ia dizer que, com a tipografia, ao poder da palavra, do logos, sucede-se a palavra do poder, veiculada agora não pela oralidade do discurso, pelos retóricos, mas sim pela sua mediatização através da nova tecnologia tipográfica e, por conseguinte, pela sua rápida reprodutibilidade pública. Assegurava assim o Estado também, mais rapidamente, a instituição da própria Lei, da normatividade do social e dos novos regimes do saber. Tal como Habermas referia, a imprensa servia à burguesia para dar a conhecer ordens e disposições assim se convertendo os seus destinatários em público, muito embora a noção de público não seja também aqui, aliás como vimos, nova. Repare-se na referência já feita a Boccaccio, ou ainda em Platão, que na República considerava a cidade ideal aquela que não deveria ter uma população maior do que a que seria possível reunir em torno de um orador por forma a que este se fizesse ouvir por todos. A verdade é que as monarquias absolutistas não se compadeciam com utopias: o "público" da sua palavra estendia-se agora por vastos territórios nacionais e a imprensa periódica tinha-se transformado claramente em instrumento de poder, em veículo da palavra do déspota, passadas que foram as curiosidades das primeiras folhas impressas. Veja-se por exemplo o caso da Gazette de France de Théophraste Renaudot que chegou a ter em Luis XIII e Richelieu os seus mais directos colaboradores. Veja-se o caso das Gazetas da Restauração de que se dizia, nalguns casos, infirmados segundo José Tengarrinha 27, que tinham sido redigidos por D. João IV... Veja-se ainda o caso da Gaceta de Madrid, fundada pela própria Casa Real.
Parece-nos portanto estar claramente configurada a recontextualização do dispositivo de dominação no universo tipográfico. Dos postulados expressos se infere não haver a registar uma ruptura epistémica que conduzisse à emergência de um novo dispositivo histórico-cultural de dominação, mas antes uma redefinição das principais vertentes que o compõem, surgindo-nos assim como dispositivo global pós-alfabético na diacronia histórica da comunicação e dos media.

Notas:

1 Jurgen Habermas, Historia y critica de la opinión publica, Barcelona, Gustavo Gili, 1981, pp. 53.
2 Jacques Legoff, La civilisation de l'Occident médiévale, Paris, 1965, p.341.
3 Henri-Jean Martin, «Pour une histoire de la lecture», Débat, Novembre de 1982, p. 166.
4 Cf. Marshall McLuhan e P. Babin, Era electrónica, um novo homem, um cristão diferente, Lisboa, Multinova, 1978.
5 Marshall McLuhan, A galáxia de Gutenberg, São Paulo, CEN, 1977.
6 Habermas, op. cit., pp. 53.
7 Lucien Febvre e Henri-Jean Martin, L'apparition du livre, Paris, Albin Michel, 1971, p. 175.
8 Elisabeth Eisenstein, «La culture de l'imprimé», Débat, Novembre de 1982. Trata-se de um texto apresentado por Jacques Revel a partir da obra de E. Eisenstein The printing press as an agent of change, Cambridge University Press, 1979.
9 Op. cit., pp. 178-192.
10 Richard Sennett, Les tyrannies de l'intimité, Paris, Éditions du Seuil, 1979.
11 Elisabeth Eisenstein, op. cit., p. 119.
12 Citado por L. Febvre/H-J Martin, op. cit., p. 30.
13 Louis Quéré, Des miroirs équivoques - aux origines de la communication moderne, Paris, Aubier-Montaigne, 1982, p.54.
14 Quéré, op. cit., p.79.
15 Fernando Guerreiro, «Da mimesis à metáfora e da metáfora à verdade», in Ensaio sobre a origem das línguas de Jean-Jacques Rousseau, Lisboa, Estampa, 1981, p. 11.
16 Paul Heyer, «Pour une histoire des communications», Communication/Information, Vol. V, nº 2/3, 1983.
17 Michel Foucault, As palavras e as coisas, Lisboa, Portugália, s/d., pp. 91-92.
18 Foucault, op. cit., p. 107.
19 Idem, p. 177.
20 Ibidem, p. 278.
21 Cf. Bernard Cerquiglini, La parole médiévale, Paris, Éditions de Minuit, 1981.
22 Michel de Certeau, La fable mystique, Paris, Gallimard, 1982.
23 Cf. Julia Kristeva, O texto do romance,Lisboa, Livros Horizonte, 1984.
24 Mikhail Bahktine, Esthétique et théorie du roman, Paris, Gallimard, 1978, p. 409.
25 Kristeva, op. cit., p. 36.
26 Franklin, Le discours du pouvoir, Paris, UGE, 1975, p. 16.
27 José Tengarrinha, História da imprensa periódica portuguesa, Lisboa, Portugália editora, pp. 31-32.
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