30.6.04

Genealogia da publicidade e das estratégias consumistas

(do livro: Estratégias e Discursos da Publicidade, Lisboa, Vega, 1997.

No século XVII, portanto, a noção de publicidade já existia, mas com uma significação de âmbito jurídico. Em 1694, de facto, a Academia Francesa integra a palavra publicité no seu dicionário com o seguinte significado: «(...) ne se dit que d'un crime commis au vus de tous...».
É curioso notar que em 1873 Littré refere, por assim dizer, ainda o sentido antigo do termo: «notoriedade pública da 'publicidade' de um crime - qualidade daquilo que se torna público, característica daquilo que pertence ao público».
Publicidade significava no castelhano de há cem anos atrás «vida social pública». Na Alemanha, o sentido da palavra, como vida pública, ou esfera pública, mantém-se ainda hoje. De uma forma geral, nos idiomas latinos, o sentido do termo «publicidade» como esfera pública foi-se perdendo até ganhar uma conotação completamente diferente, hoje é conhecida sobretudo como técnica de persuasão de massa «destinada a suscitar ou aumentar o desejo de adquirir este ou aquele produto, ou de recorrer a este ou àquele serviço».
1
Poder-se-ia recuar, por exemplo, a Émile de Girardin, e ao século XIX francês, para vermos onde e quando pela primeira vez é utilizada a palavra publicidade com o sentido que tem hoje. Referia-se Émile de Girardin ao dinheiro que o Journal des Connaissances Utiles havia gasto em anúncios para conseguir os 120 mil assinantes a que se tinha proposto. Escrevia ele então, um tanto paradoxalmente, uma vez que ele seria historicamente um dos grandes estrategos da emergência do fenómeno publicitário, que «o uso desta publicidade é um dos motivos de censura do JCU».
Digamos que o moderno sentido da palavra publicidade emerge de facto com a sociedade industrial e principalmente com as agências de publicidade que apareceram, quer na Europa, quer nos Estados Unidos, ainda na primeira metade do século XIX. A fase em que «o anúncio era para os negócios o que o vapor era para as máquinas» estava definitivamente ultrapassada - isto muito embora se fizesse já publicidade sem o intermédio de agências, antes delas serem criadas.
É sobretudo o espírito filantrópico que preside à emergência do Bureau d'Adresses de Théophrast Renaudot, que é de facto no século XVII o núcleo de origem da Gazette e do regime do «pequeno anúncio». É por volta de 1630 que Renaudot, em França, estabelece como que um ponto de ruptura relativamente às antigas folhas - manuscritas e impressas - que surgiram na Europa no século XIV, acompanhando o próprio tráfego da mercadoria. Precisamente em 1631 Renaudot lança a sua Gazette de France, para servir a política de Richelieu. A novidade consistia no facto de esta ser a primeira publicação periódica a inserir pequenos anúncios, o primeiro dos quais elogiava as virtudes das águas de Forges e apareceu com a data de 4 de Julho de 1631. Para chegarmos a Émile de Girardin faltavam ainda quase dois séculos...
Em 1657 aparece entretanto em Inglaterra o Public Advertiser que tinha praticamente como principal objectivo a publicidade. O Daily Courant (1702), primeiro diário da história da imprensa, insere já, em boa percentagem, páginas de anúncios. 1730 vê nascer o Daily Advertiser que é de início um simples jornal de anúncios mas que se torna rapidamente no maior jornal de Londres. França, Alemanha e Estados Unidos seguem de perto esta tendência, respectivamente com o Petites Affiches, o Intelligenz Blätter e o Boston Newsletter. De qualquer modo, a relutância em inserir anúncios continuava uma constante. Não se esqueça que os iluministas franceses, um pouco a par dos filósofos da Antiguidade, foram os maiores opositores das «folhas», das gazetas e de um modo geral dos «récits de bagatelles», como dizia Voltaire.
Os séculos XVII e XVIII decorreram portanto sem que se assistisse a uma evolução rápida de formas de publicidade - do pequeno anúncio para a comercialização de espaço em maior escala. É um período de jornalismo de escritores, de uma imprensa opinativa, pouco ou nada comercial e, de facto só no século XIX é que se define em termos quase universais, nomeadamente em França, Inglaterra e EUA, de modo quase simultâneo, a emergência de uma nova era para o sistema industrial e, claro, para a publicidade, que vem a ser estrategicamente decisiva para a consolidação da fase avançada da revolução industrial.
Na primeira metade do século XIX a noção de publicidade estava ainda associada, em França, a designações como «aviso», «tabuleta», prospecto», «anúncio», etc. Apenas nos meados do século XIX é que o actual sentido da palavra surgiu, no reinado de Luís Filipe, confirmado pelo dicionário de Littré. E se em França durante o primeiro quartel do século XIX muito poucos são os anúncios aceites pelos jornais em geral, já em Inglaterra acontece algo bastante diferente. Com efeito, desde os finais do século XVIII que se assiste a um autêntico «boom» da publicidade nas páginas dos jornais - e isto principalmente devido às medidas fiscais aplicadas à imprensa, tal como acontecerá, aliás, em França. La Presse, de Girardin, aparece a 1 de Julho de 1836 com um preço de assinatura que era cerca de metade do dos outros. Era de facto a publicidade que cobria o déficit existente. Émile de Girardin rapidamente arranjou publicidade suficiente para cobrir esse mesmo déficit: venda de imóveis, negócios financeiros, novos livros, produtos farmacêuticos e outros, constituíam a maior parte dos anúncios publicados. E, não menos importante, nascem as primeiras agências...
Em França, 1845 é o ano em que Charles Duveyrier abre em Paris 218 locais de recolha de anúncios fechando contrato simultaneamente com três grandes diários - Les Débats, Le Constitutionnel e La Presse -, ganhando assim o exclusivo dos contratos com os três jornais. No segundo quartel do século, Duveyrier lamenta-se, referindo que o Times publicava diariamente quase 1500 anúncios, contra 40 a 50 do jornal mais lido de Paris. Só em 1838, no La Presse de 25 de Agosto surge uma página cheia de anúncios num quotidiano. Em Portugal foi na Gazeta de Lisboa que apareceu, em termos de periódicos, o primeiro anúncio, chamado «aviso» naquela altura. Rezava assim: «Faz-se aviso às pessoas curiosas de língua francesa haver chegado a esta corte há pouco tempo um estrangeiro apelidado De Ville Neuve, francês de nascimento, natural da cidade de Paris, o qual fala língua latina, alemã, italiana, castelhana e portuguesa; e tem um método muito fácil para ensinar em pouco tempo a toda a sorte de pessoas; ainda às de cinco para seis anos, as que quiserem servir-se do seu préstimo podem encaminhar a casa de Manuel Dinis, livreiro da rua da Cordoaria Velha»
2 . No Porto, em 1827 aparece O Periodico dos Anúncios e em Lisboa, em 1835, O Jornal dos Anuncios e ainda no Porto, nesse mesmo ano, a Folha de Anúncios. Um ano depois surge O Grátis com tiragem de 2000 exemplares, jornal de anúncios distribuído gratuitamente pelos espaços públicos como cafés, botequins, etc. É só depois de 1864, com o Diário de Notícias, que insere logo no primeiro número quatro anúncios, que a publicidade inicia a sua fase de «industrialização» embrionária. Ao fim de um ano o Diário de Notícias havia publicado 14402 anúncios. Tengarrinha refere que pouco tempo depois do DN aparecer surge também a primeira agência portuguesa de anúncios - a Agência Primitiva de Anúncios - também conhecida por O Peixoto dos Anúncios - que tinha com o DN um contrato especial para a captação de publicidade.
Se, porém, pensarmos em algo diferente como é o caso do discurso publicitário, então teremos obviamente que ir mais atrás em busca da sua origem, que é simultaneamente muito velha e muito nova como sugeriram Jean-Charles Chebat e Michel Grenon
3 : «Com efeito, se considerarmos a dimensão 'informação' do discurso publicitário, encontramos vestígios desde a mais alta Antiguidade».
Segundo estes autores, uma primeira grande mutação do discurso publicitário produz-se com o desenvolvimento do capitalismo comercial. Isto porque, neste período aparecem por um lado as técnicas de informação de massa saídas da génese da era tipográfica, e por outro lado a massa de produtos oferecidos aumenta de forma notável.
Daqui se infere que a própria estratégia do discurso publicitário passa a assentar em pressupostos diferentes. Na verdade, se antes da revolução industrial o fenómeno concorrencial não se fazia sentir nos mercados, ao nível por exemplo da disputa das mercadorias de artesãos (típica da economia medieval), com a estandardização dos produtos e o surgimento dos grandes monopólios, tudo se modifica. O discurso e as práticas publicitárias passam a estar determinadas pela lei da concorrência.
O discurso deixa então de ser meramente funcional - um tal produto encontra-se num certo sítio a um determinado preço - e passa a ser simbólico por excelência. Stuart Ewen cita o jornal publicitário Printer's Ink, publicado entre 1888 e 1938, exactamente quando este discorria em torno da genealogia do próprio anúncio: «Num primeiro tempo o anúncio disse o nome do produto; depois pôs o acento sobre as suas características específicas e de seguida sobre o seu modo de emprego. A cada nova etapa afasta-se um pouco mais da linguagem da produção para melhor se insinuar no espírito do consumidor»
4 .
É aí exactamente que surge a agência de publicidade como agente autónomo relativamente a todo o campo institucional e empresarial. Paradigma deste modelo emergente e seu principal divulgador é Volney Palmer, fundador da primeira agência de publicidade norte-americana. Por essa altura a sua tarefa só podia ser uma: persuadir empresas e instituições de que o objectivo final de inculcar o desejo no público por um determinado produto só poderia ser conseguido através de uma técnica e de uma retórica próprias, sincronizadas e integradas no - e pelo - sistema dos media.
Enfim, mais do que permitir o crescimento pontual das vendas, as agências de publicidade tornaram-se elas próprias instituições de economia autónoma, permitindo ainda, no domínio da própria estratégia do capitalismo industrial, a criação de estruturas de concorrência adequadas, de forma a que toda uma estratégia de mercado fosse delineada, comportando-se em simultâneo como factor indispensável à manutenção de um capitalismo desenvolvido na sua expressão-limite de monopólio multinacional.
Por outro lado, no contexto político, a própria democraticidade da sociedade americana era como que a consequência lógica da pluralidade de valores, de produtos, e da sua manipulação - simbólica, social, etc. Consumo identificava-se, no fundo, com liberdade. Edward Filene, com a sua especial habilidade para tornar simples as complexas teorias dizia muito simplesmente que ao consumir os americanos estão a votar na Ford, na General Motors, na General Electric...
Uma das principais vertentes em que se funda o Estado-ficcional moderno, em plena crise da era mass-mediática - nos seus limites de final de século -, é precisamente o que se tem chamado a «cultura do consumo» que originariamente, no princípio do século, se definia em justaposição, por assim dizer, associando-se uma «teoria geral dos instintos» a uma teoria económica do consumo, e estas à «organização científica do trabalho» então proposta fundamental de Taylor, o que constituía no fundo a essência do «taylorismo».
Tentaremos, assim, ver até que ponto a partir das raízes do consumismo e dos seus desenvolvimentos posteriores, não estará o próprio dispositivo da modernidade em fase de reactualização, ou de crise radical e absoluta.
Sensivelmente a partir de 1920 constrói-se então o palco de novas dinâmicas sociais e em pano de fundo estão fundamentalmente esses artífices das paisagens consumistas modernas - os anunciantes, e claro, os publicitários. Repare-se que de 1918 para 1929 o volume de negócios bruto das revistas «grande público» sobe de 58,5 milhões de dólares para 196,3 milhões. Houve de facto uma resposta da indústria publicitária ao novo regime de trabalho em cadeia e aos novos ritmos de produção introduzidos na década de 10 por Henry Ford nos Estados Unidos da América.
Um facto fundamental é que a produção não obedecia propriamente às necessidades consumistas, à procura do gosto do público, mas sim à procura um tanto ou quanto selvagem do lucro, pura e simplesmente.
As estratégias modernas do aparelho de dominação da sociedade mass-mediática, passam assim, em primeiro lugar, em plena fase de maturidade do capitalismo industrial e da organização industrial da imprensa, pela teoria económica do consumo e pelas estratégias publicitárias, por um lado, e, por outro lado, por aquilo a que, de facto, Frederick Taylor chamava a organização científica do trabalho e, enfim, por tudo o que essa «teoria» anunciava: a emergência de um «novo» saber, profundamente positivista e maquínico.
«Harmonizar» o trabalho com o capital, tarefa facilmente levada a cabo, aliás, pelos profetas do consumismo no princípio do século, «prometer o céu» através das técnicas de persuasão da massa, e instituir uma nova legitimação revitalizadora da economia e dos novos processos de produção, esses eram, enfim, os principais objectivos das estratégias institucionais e de mercado na sua «terapêutica» dos idos anos 10 e 20.
É exactamente essa terapêutica de auto-realização que o discurso publicitário consagrará já em plena fase de industrialização das próprias agências de publicidade, nascidas, quer na Europa, quer nos Estados Unidos, se bem que com um outro estatuto, na primeira metade do século XIX. A verdade é que a resposta dada pela «ordem simbólica», pela publicidade, à ordem produtiva e à hiper-racionalização das cadências, e até dos movimentos do corpo, era extremamente reduzida na «época de ouro» do taylorismo, por assim dizer.
Se o trabalho e a fábrica estavam já, pelo menos aparentemente, organizados de forma «científica», impunha-se com toda a certeza que as próprias estratégias de persuasão também o estivessem. É assim que subitamente uma «teoria geral dos instintos» vem dar resposta às novas cadências impostas por Henry Ford e por Taylor, isto é, ao que já se chamava a «tirania da máquina».
Curiosamente, ou não, é a psicologia social norte-americana, através de homens como Muensterberg e Watson, que vem dar um novo alento aos publicitários. A terapêutica consumista havia caído numa certa passividade, não surgiam «novos objectivos» capazes de motivar potenciais novos consumidores, enfim, os stocks que saíam em cada vez maior número das cadeias de montagem não escoavam no mercado. Urgia pois encontrar uma solução, e é da associação entre «behaviouristas» e técnicos da publicidade que nascem os processos de sedução e de solicitação do consumidor.
Em última instância, como veremos, são os próprios hábitos de consumo que mudam, diferentes que passam a ser os padrões de sociabilidade e a artificialidade dos novos valores de uso instituídos através dos media.
Só, portanto, cerca de cem anos após terem aparecido as primeiras agências - apenas reservadoras de espaço publicitário de início - é que as técnicas de persuasão se encontram estruturadas de acordo com as necessidades da oferta e do ritmo das novas cadências, isto é, com o tornar verdadeiras algumas falsas necessidades, com a criação de novos desejos, novos hábitos, remetendo constantemente o público para novos imaginários consumistas. Vender era então «civilizar», comprar era «educar-se». A publicidade moderna foi assim a resposta óbvia às necessidades desenvolvimentistas do capitalismo industrial.
Na era dos complexos sociais de poder - como Habermas definia os grandes consórcios que homens como Hearst e Pullitzer, nos EUA, ou Northcliff, em Inglaterra, tinham criado nos finais do século XIX, designadamente no domínio da imprensa, na era da expansão do capitalismo norte-americano, a publicidade ganhou, pois, um novo rosto: «Da mesma maneira que a expansão do imperialismo americano, para além das nossas fronteiras, assenta numa retórica da democracia, por um lado, e sobre um individualismo agressivo, pelo outro, assim a conquista dos espíritos (...) tomou caminhos de guerra, de movimento de conquista ofensiva de territórios sociais que os homens de negócios julgavam rapidamente civilizar»
5 .
A nova máquina publicitária, através da criação dos novos valores como o «prestígio», a «beleza» e o «ter», sempre em nome da democracia, e por detrás de uma ideologia fortemente consumista, minava, por assim dizer, a própria autonomia do consumidor. Tornava-se assim estrategicamente decisivo veicular a ideia de que o consumidor devia satisfazer as suas necessidades primárias, eufemismo que caracterizava no fundo as exigências reais e históricas da máquina capitalista emergente. Como referem Wightman Fox e Jackson Lears
6 para o caso dos Estados Unidos: os publicitários, «promising richer, fuller living through high-level consumption, invoking the talismans of 'efficiency' and 'personality' legitimized the transformation of male ideals from self-made manhood to salaried employment and of female ideals from guardianship of virtude to family management.»
Por detrás da nova máquina publicitária e das novas estratégias da acquisitive cognition, que diziam, no fundo, que a cultura do consumo não se limitava apenas à aquisição mas, também, ao conhecimento, por detrás desse grande dispositivo consumista estavam pois os sociólogos, publicitários, psicólogos sociais e inclusive escritores como Henry James, por exemplo. De facto, a mentalidade consumista nascente foi, em primeiro lugar, captada na sua plena dimensão nas últimas novelas de James e também nalguns outros trabalhos de membros da leisure class...
São os sociólogos funcionalistas, então a despontar como «classe» interventiva, são os economistas e os psicólogos, fundamentalmente, que se podem considerar os progenitores da nova mentalidade emergente e da organização «científica» das novas estratégias de mercado. Veja-se o caso de John B. Watson, profeta da negação da família e um dos fundadores da psicologia behaviourista nos EUA, psicólogo e publicitário, cuja tese fundamental tinha a ver com uma espécie de terapêutica social da publicidade: para ele, todas as satisfações, à excepção daquelas oferecidas pela economia de mercado eram simultaneamente «psicologicamente perversas e socialmente nocivas». Segundo a sua perspectiva a «instituição»-família deveria ser inclusive orientada em função das directivas ditadas pelas estratégias de mercado e não por quaisquer outras...
Outro caso é o do já referido Edward Filene, um dos principais ideólogos da mobilização consumista, grande capitalista e - paradoxalmente - fundador do movimento de defesa do consumidor. Entendia ele que, acima de tudo, na «era da Máquina», eram os homens de negócios quem, de uma forma «positiva», podiam fazer com que os revolucionários de outrora esquecessem as suas posições de classe e encontrassem na sociedade consumista a forma de sublimar pulsões que seriam perigosas caso fossem expressas de outra forma...
Outros, mais radicais, consideravam inclusive que o fenómeno publicitário, constituía, nessa medida, uma resposta ao bolchevismo! É o caso de Paul Nystrom, um dos fundadores da «teoria económica do consumo» dos anos 20. Nystrom considerava nessa altura, que caso o fenómeno concorrencial-consumista não vingasse, então não haveria outra alternativa a não ser a «socialização dos bens de produção».
Para fugir à «socialização» era assim necessário, para estes novos profetas, instituir a tirania consumista, controlar os desejos e as pulsões e submetê-los à nova ordem ditada pela produção em série.
«Consumo» era identificado, assim, com democracia e com liberdade, com «aquisição» e «conhecimento». Assim, uma das características fundamentais destas primeiras duas décadas do século, período em que decorre a radicação da nova mentalidade consumista é, com efeito, a emergência de um ideal democrático fortemente imbricado na acquisitive cognition e na homogeneização dos gostos e desejos consumistas, ideal que conduziria em última instância à própria ideia de homogeneidade nacional e à legitimação das instituições da sociedade da opulência.
O objectivo da máquina consumista e publicitária tinha sido assim atingido. Todo um conjunto de factores contribuía agora para que a antiga vida social pública e a velha ostentação novecentista, toda uma teatralidade das classes «ociosas» de então mudasse radicalmente, uma vez mudados com efeito os hábitos de consumo.
Se, por um lado, a cadeia de montagem se tornou, como defendeu Siegfried Giedion
7 , o símbolo do período entre as duas guerras, por outro lado, é óbvio que a máquina publicitária consumista não deixou de caminhar em paralelo com a própria máquina de guerra e de propaganda. Daí, até, a relação de captura comum aos dois campos e aos seus objectos. O próprio Taylor havia defendido, aliás, no princípio do século, na sua organização científica do trabalho, um sistema racional e uma organização de tipo militar.
Por outro lado, o próprio corpo humano era objecto de estudo no sentido de se ver até que ponto seria possível transformá-lo em «máquina» - ou, pelo menos, levá-lo ao limite das suas possibilidades, fazendo com que todos os movimentos supérfluos desaparecessem, não só por uma questão de eficácia, como era dito na altura, mas também para facilitar o trabalho...
Taylor chegou a propor o princípio do «scientific menagement», ou seja, a necessidade da organização científica do trabalho ser aplicada a todas as esferas do social: «na organização das nossas casas, das nossas quintas, das empresas dos comerciantes, das igrejas e dos ministérios» com vista ao aumento da «produtividade mecânica»
8. Daí terem havido experiências concretas neste domínio, quer em ligação com a psicologia experimental, quer em relação aos estudos do movimento. Com Muensterberg foram feitas experiências e testes relacionando a psicologia, a organização científica do trabalho e o desenvolvimento industrial, com a publicidade e o marketing. A anterior proposta de Taylor de «extinção dos movimentos supérfluos» teve como dignos continuadores o casal Frank e Lilian Gilbreth através dos seus motion studies, onde se propunham substituir os movimentos desnecessários por movimentos mais curtos e menos fatigantes fundamentados em unidades de movimento - threabligs - e nos «ciclogramas», que eram representações gráficas do desenvolvimento do movimento espacial dos membros anteriores em laboração. Para Gilbreth, o operário a quem assim se dava a possibilidade de ver os seus próprios gestos numa representação espacio-temporal deveria tornar-se um motion minded, isto é, um obcecado pelo movimento, até atingir o «movimento perfeito».
Estavam pois reunidas as condições para transformar a sociedade de consumo numa perfeita máquina de guerra adaptada ao combate para dominar o espaço social de consumo. A ordem consumista é pois reforçada nas suas vertentes discursiva e organizativa. Reforçado era também o domínio sobre o espaço público em começo de desagregação, devido, fundamentalmente, à emergência da televisão e à constante agressão do social com renovadas propostas gratificantes de um mundo de sedução e fascínio, onde consumir era (é), de algum modo, obter uma certa felicidade individual. Em termos da estratégia de mercado, a publicidade continuava assim a ser a melhor resposta à «saturação» dos ciclos de necessidades elementares bem como à superprodução e à obsolescência.
Desde princípios do século, portanto, que os captains of counsciousness, os logocratas da publicidade, tinham traçado as grandes linhas da paisagem social americana. A partir da década de 50 o regime de consumo ostentatório dos anos 20 «democratiza-se», por assim dizer, com a emergência da televisão, agora verdadeiro «agente do espírito consumista», permitida que tinha sido a publicidade nas emissões. As receitas de publicidade, naturalmente, vão acompanhar a progressão louca do parque de receptores. Nos Estados Unidos, entre 1948 e 1960, o total de receptores subiu cerca de 2,6 milhões para 55,6 milhões de aparelhos, tendo as receitas publicitárias, no mesmo período, subido de 9,8 milhões de dólares para 1,5 biliões. No princípio da década de 70, ainda nos EUA, há em média um televisor por cada habitação.
É portanto na década de 50 que a televisão passa a ser o principal veículo do dispositivo publicitário e, de facto, o garante da imposição das normas de conduta colectivas. Não esqueçamos que, como alguém disse, «a televisão existe não para produzir programas mas sim para produzir públicos». E o público americano vai ter então pela primeira vez na sua frente, através dessa «janela sobre o mundo», e duma forma «homogénea» e «nacional» a verdadeira miragem da sociedade da abundância, da perversamente chamada sociedade da opulência.
É aliás no final dos anos 50 que os americanos lançam a sua grande ofensiva europeia. Georges Beaumont, vice-presidente da Benton & Bowles chega a Paris com o objectivo de lançar na Europa o seu grande cliente - a Procter & Gamble. «Na época era quase impossível encontrar em França uma agência suficientemente profissional e sofisticada para a B&B. Tinha proposto a Dorland (depois Gray) mas esta agência não tinha sequer director criativo. Por outro lado, cada dirigente era o seu próprio patrão e não era de ânimo leve que receberiam a notícia de serem comprados ou submetidos a alguém...», dizia Beaumont.
Uma nova (velha) concepção que emerge concretamente nos EUA, ligada também à fase mais avançada da indústria publicitária, tem a haver com a ideia de «homogeneidade nacional» que neste caso se poderá traduzir pela criação de uma identidade sobretudo no consumo e de uma uniformização do gosto. Tratava-se aliás de um conceito já existente, mas que só vem a ter aplicação efectiva já em meados dos anos 80. Na sua The History and Development of Advertising, Frank Presbrey anunciava já: «É à extensão das campanhas publicitárias a todo o país que se atribuiu recentemente o progresso da identidade nacional. Elas trazem uma similitude de pontos de vista que apesar da mistura étnica, é mais pronunciada nos EUA que nos países europeus em que a população pertence geralmente a uma mesma raça, parecendo mais fácil de homogeneizar»
9 . Essa ideia tem aliás vindo a consubstanciar-se no plano das estratégias institucionais das networks norte-americanas, que já viabilizam «tempos de antena» televisivos durante as campanhas eleitorais, como acontece nos serviços públicos de televisão na Europa. Mas, de facto, na década de 80 ainda não era assim. Recorde-se o que aconteceu com a campanha de Ronald Reagan, na sua recandidatura de 1984: um filme de nada mais nada menos que 5 minutos passava nas três grandes cadeias de televisão na mesma noite de domingo, com um orçamento para compra de espaço, na altura, da ordem dos 70 mil contos.
Em síntese, todo o sistema filosófico consumista e seus ideólogos reduzia-se à expressão arquétipo de Edward Filene que fazia corresponder o ideal democrático à sociedade americana e identificava consumo com liberdade e «educação». A partir de agora, com a televisão, o regime de consumo democratizava-se efectivamente e em termos transnacionais. Mais do que democratizar-se, homogeneizava-se, o que permite, finalmente, interrogarmo-nos sobre as obscuras encruzilhas existentes entre o conceito da sociedade representativa-liberal, surgida dessa esfera avançada do capitalismo industrial, e a modelização consumista-cultural do «império» norte-americano.
Hoje, a publicidade, através do novo discurso publicitário vindo dos «técnicos do saber prático» de que falava Sartre, assimilou modelos da contra-cultura, do feminismo e inclusive da defesa do consumidor. Pode falar-se inclusive, neste final de século, de um autêntico regime espectacular no discurso publicitário. Veja-se o exemplo das eleições legislativas francesas de Março de 1986 através de um artigo publicado na imprensa portuguesa: «Quando em meados de Janeiro, Gunilla recebeu um telefonema da agência de manequins que a emprega, anunciando-lhe - «'Temos um emprego para ti, vais estrear-te numa enorme campanha publicitária em toda a França,' ela saltou de alegria. A jovem sueca, desembarcado em Paris quatro meses atrás, para tentar a sorte como modelo, via chegada a sua hora de glória. (...) Como de costume, ninguém se deu ao incómodo de a informar para quem trabalhava, apesar da curiosidade suscitada pelas duas espigas de trigo que lhe mandaram encostar ao rosto, seria para uma marca de pão ou para um cosmético? Ao sair do metro, uns dias mais tarde, deu com a resposta - uma enorme fotografia sua, ao lado da legenda.- 'Quero recolher o que semeei à esquerda' fazia-a passar por uma simpatizante do Partido Socialista Francês, consciente e determinada'»
10 ...
Em paralelo com o crescimento económico do pós-guerra emerge um Estado-providencial e ficcional, um Estado-espectáculo, em última instância, centralizador de serviços, organizador social, simultaneamente anunciante e consumidor. Sob a aparente pulverização das centrais de massificação escondem-se agora verdadeiros impérios do imaginário consumista moderno, sejam eles a Madison Avenue ou o Estado-publicitário. Veja-se nomeadamente o caso francês, idêntico a muitos outros caso na Europa, onde o próprio Estado foi o primeiro anunciante - através da administração, dos serviços públicos e das empresas nacionalizadas, por intermédio do grupo Eurocom - e o primeiro administrador de espaço, por intermédio da Havas.
A agência Havas, cuja maioria de capital pertenceu ao Estado francês, foi com efeito a que mais espaço publicitário vendeu em França ao longo da década de 80. Aliás, já em 1934, cem anos após a sua criação, Léon Blum dizia que esse grande monopólio que era a Havas tinha deixado de servir os ministérios para os submeter a si - de prestadora de serviços ao Estado passou a «exigir» serviços dele... Giscard d'Estaing chegou a colocar à sua frente um dos seus principais colaboradores - Yves Cannac - num lugar que se poderia equiparar quase ao de um ministro da comunicação. Mitterrand, aliás, seguir-lhe-ia o exemplo. De facto chegou a ter em França um quase monopólio da informação. «L'état Providence est devenu l'État carnivore», diria Philippe Calleux (PDG da GRP, ao tempo)...
Hoje, somos obrigados a reconhecer, com Jean Baudrillard, que se a publicidade desaparecesse a nossa frustração não seria sobre o modo de informar mas sobre o modo de seduzir: «A publicidade evita-nos a pesada responsabilidade de fantasmar e de representar o mundo (...) ela tem qualquer coisa de vertiginoso e de fascinante (...) é a utopia do imaginário materializado, pondo assim fim ao próprio imaginário»
11. Sem a publicidade seríamos certamente seduzidos por imaginários míticos, religiosos, folclóricos, um imaginário-outro, mas certamente oposto ao imaginário consumista. Sem a publicidade e as suas propostas gratificantes de um mundo de sedução e fascínio, de um mundo que diz satisfazer as necessidades individuais e colectivas, faltaria também, sem dúvida, esse «elemento pitoresco», distractivo, do quotidiano. Como alguém disse, uma cidade sem cartazes, sem inscrições de parede, sem publicidade nas ruas, assemelha-se de facto a um bunker totalitário.
Michel Tournier, mais consensual, diria: «Nous vivons, hélas, dans une société sans odeur, sans saveur, sans contact physique, tout est pur regard! La publicité c'est le contraire c'est un véritable éloge de Ia vie, du corps, de la beauté. C'est la seule fissure par laquelle passe un tout petit peu d'érotisme, chose absolument proscrite à la télévision, dont Ia morale est - faites la mort, ne faites pas l'amour. »
12 .
E, na verdade, o certo é que após a emergência da televisão e dos novos media, e consequente redimensionamento do dispositivo comunicacional moderno, agora em plena sociedade info-comunicacional, nomeadamente nos países mais desenvolvidos, temos vindo a assistir, em termos de espaço público, a uma radicalização do processo de desintegração da esfera pública (e natural refortalecimento da esfera intimista), e, no plano simbólico, a uma radicalização do processo de «desertificação» do real com aquilo a que Baudrillard chamou a «precessão dos simulacros».
As imagens de síntese, a era do digital, os novos duplos que aguardam as suas hipertelias, um tanto paradoxalmente podem encontrar na própria publicidade não o lugar da sua reificação «maligna» mas o espaço de todas as insolvências e de todos os perdões.


Notas:
1 Victoroff, David, A Psicossociologia da Publicidade, Moraes, Lisboa, p. 13
2 Tengarrinha, J.M., Hstória da Imprensa Periódica em Portugal, Caminho, Lisboa, p. 201.
3 «Note sur le pouvoir publicitaire, Revue Française de Sociologie, Vol. XX, nº 4, Oct-Déc. 1979, pp. 733-745.
4 Ewen, Stuart , Des Consciences sous Influence, Aubier-Montaigne, Paris, p. 87.
5 Ewen, op. cit, p. 89.
6 Wightman Fox e Jackson Lears, The Culture of Consumption - Critical Essays in
American History, 1880-1980, New York, Pantheon Books,1983, p.XIV.
7 Giedion, Siegfried, La Mécanisation au Pouvoir, Centre Georges Pompidou, Paris, 1980.
8 Giedion, op. cit., p. 100-114
9 Citado por Ewen, op. cit., p. 53.
10 «Imagens do mercado eleitoral», Ana Navarro Pedro, Expresso, 1 de Março de 1986.
11 Jean Baudrillard, entrevista à Autrement, nº 53, Paris, 1983.
12 Michel Tournier em entrevista a Guitta Pasternak, Le Monde, 12-13 de Agosto de 1984.

26.6.04

Salazar, o regime e a televisão

Como sempre defendeu Salazar, «(...) a Nação que faz livremente a vida que quer, a Nação ‘viva e real’, essa, comparando passado e presente (referia-se o ditador à I República) olha com certa desconfiança o zelo dos apóstolos da liberdade»[1].
A par das estratégias repressivas e persecutórias, quer do salazarismo quer do caetanismo, a censura foi sem dúvida uma das armas decisivas para a sua continuidade - foi, claramente, um dos sustentáculos determinantes do regime: «a arma mais temível de Salazar - a sua arma absoluta - foi sempre a censura prévia», como dizia Mário Soares (1974: 151-152), no que estava de acordo com Oliveira Marques (1977:299): «(...) de todos os mecanismos repressivos a censura foi sem dúvida o mais eficiente, aquele que conseguiu manter o regime sem alterações estruturais durante quatro décadas».
Esse era obviamente o desejo de Salazar, desejo, aliás, bem explicitado a António Ferro: o que importava, de início, ainda nos anos 30, era sobretudo a «acalmação dos espíritos, o esquecimento de ódios e paixões», e, ainda nas palavras de Salazar, «modificar pouco a pouco, pacientemente, as paixões dos homens, atrofiando-as, calando-as, forçando-nos temporariamente a um ritmo vagaroso, mas seguro, que nos faça descer a temperatura, que nos cure da febre...» [2]. Mas a verdade é que a sua opinião não mudaria com o tempo. Ao longo de todo o seu consulado, e apesar de em 1959 ter surgido um projecto de Estatuto de Imprensa[3], Salazar jamais promulgaria legislação nesse âmbito... «Uma lei de imprensa pode reprimir certos abusos, mas não os evita», dizia a António Ferro (Ferro, 1978:96)... Mesmo quando se falava na eventualidade da criação de um dispositivo legal, como aconteceu exactamente com o chamado projecto Carlos Moreira, o certo é que o debate incidia quase exclusivamente sobre o problema da Imprensa (e também do livro), omitindo-se constantemente o âmbito da Rádio e da Televisão, aparentemente “intocáveis” (Balsemão 1971: 193). E a verdade é que mesmo no final desse ano de 1959, a 15 de Dezembro, o Presidente da Assembleia Nacional de então informava os deputados estar o Governo a preparar uma proposta de lei a submeter à apreciação da Câmara... Passar-se-iam dez anos, até que isso de facto acontecesse.
Mal começaram as emissões regulares de televisão (7/3/1957) e não propriamente Salazar, portanto, mas Marcello Caetano - qual “delfim” determinado a recuperar o tempo perdido, grande adepto da "personalização do poder", seguramente já consciente dos efeitos políticos do novo media, e sobretudo crente no predomínio dos factores irracionais na formação da opinião pública - achava-a «fortemente corruptível e presa fácil de aventureiros e charlatães» (1971:125) -, logo se apresentou a falar ao país, como recordou: «Fui o primeiro membro do Governo a utilizar a TV para expôr ao País, em Junho de 1957, problemas de interesse geral. Não oculto que segui os primeiros passos da Radiotelevisão Portuguesa com profundo interesse e entusiasmo até. Não imaginava que, anos depois, como Chefe do Governo, ela me seria de tanta utilidade para o estabelecimento de uma corrente de comunicação entre mim e o povo português. Mas sabia, desde o início, que era o instrumento ideal para um Governo se tornar popular... se o merecesse” (Caetano, 1977: 472).
O claro afastamento de Salazar do meio televisão não se explica só pelas suas múltiplas fobias de tecnologia, inovação, público, publicidade, etc., mas, aparentemente, pelo seu óbvio desconhecimento das “virtualidades instrumentais” do novo media - para além do mais não era propriamente um orador, o que já vinha, aliás, dos tempos da Coimbra [4]. Repare-se que no ano de 1958, já com emissões regulares em Portugal, em entrevista ao Figaro (de 2 e 3 de Setembro de 58), Salazar, numa visão passadista, repetindo definições que remontavam aos anos 30, às primeiras circulares da Direcção dos Serviços de Censura [5], privilegia, ainda no final dos anos 50, a imprensa face aos outros media «(...) a imprensa, principal meio, a rádio e a televisão, de formação da opinião pública (...)». Ou ainda: «(...) a imprensa, com as suas irmãs mais novas - a rádio e a televisão (...)»[6].É, aliás, opinião frequente não ter tido a própria imprensa um papel determinante na política oficial salazarista[7]. Ao contrário de Marcello, Salazar não parecia dar grande importância aos media como instrumento para a boa consecução de uma política. O seu modo de governar no retiro de S. Bento, algo misantropo, ascético mesmo, era sem dúvida refractário ao desempenho mediático. O próprio Marcello Caetano o reconhecia: «(...) naquele homem a Política tinha-se constituído em missão. Entrara na política como podia ter ingressado numa Ordem Religiosa austera” (1974: 580). Quase o mesmo havia dito, afinal, ainda nos anos 30, António Ferro (1978: 65), na introdução ao seu livro sobre Salazar: «Os que não se resignam aos pensamentos claros e desinteressados em vão procuravam na vida resumida e restrita do Dr. Salazar, as razões ocultas e subterrâneas das suas medidas, dos seus possíveis favoritismos. Mas nada, absolutamente nada. Difícil conceber maior isolamento, maior indiferença pelas coisas terrenas, pelos prazeres do mundo. O Dr. Oliveira Salazar era um exemplo de um ascetismo raro, talvez único, na clareira dos homens públicos da nossa época e da nossa terra».
Daí, de facto, não ter havido um aproveitamento de carácter declaradamente propagandístico, de uma ideologia - do regime e do seu ditador -, através do culto da imagem ou, num âmbito mais geral, mesmo do culto da personalidade, por exemplo, como aconteceu noutros regimes totalitários. Ou apenas e tão só de uma presença assídua, pré-determinada, nos meios de comunicação, e, nomeadamente, claro, na televisão. Ele próprio - Salazar - inclusive, deixava-o antever já em 1933 aquando da inauguração do Secretariado da Propaganda Nacional: «O Secretariado não é um instrumento do Governo, mas um instrumento de governo no mais alto significado que a expressão pode ter. Não se vai certamente evitar, com tal entendido pudor, toda a referência pessoal elogiosa, toda a homenagem prestada aos que se afirmam pelo trabalho, pela dedicação, pelo desinteresse com que servem a causa pública. Mas não é esse o objectivo que prossegue o Secretariado da Propaganda Nacional. A que se destina então? Vamos abstrair de serviços idênticos noutros países, dos exaltados nacionalismos que os dominam, dos teatrais efeitos a tirar no tablado internacional. Tratemos do nosso caso comezinho.(...)». E em 1939 voltaria a dizer, significativamente: «(...) Uma publicidade desaforada, estúpida umas vezes, outras inteligentíssima e internacional, esquadrinha as atitudes, dá sentido às coisas indiferentes, perverte as intenções mais puras, desvirtua o pensamento mais lúcido, açula paixões, espalha o ódio, lança o terror, suscita problemas e lança soluções que são outros tantos problemas»[8].
Teria sido em vão, portanto, a tentativa de Marcelo “alertar” Salazar aquando da assinatura do Tratado de Roma, em 1957: «Sr. Professor - vem aí a sociedade de consumo...», ter-lhe-ia dito[9], ao que ele, aparentemente, não ligou grande importância. Era sem dúvida, como disse Mário Soares (1990:11), «um político representativo do país rural, imóvel, atrasado, provinciano que Portugal foi, em grande parte durante o seu consulado e devido à sua acção». Mesmo profissionais como Vasco Teves, que privaram com Salazar aquando da realização de gravações para a RTP, confirmam que o ditador confessava a sua franca ignorância sobre aquelas máquinas de “tirar o retrato”... Daí, também, o lançamento da ‘operação TV’ ter assumido «foros de acto conspirativo»[10]. Mas a tranquilidade não deixaria de reinar no país. O “exílio universitário” de Caetano, que no período de 1955-58 era tido nos meios oficiais por “liberal”, senão mesmo como “homem de esquerda” (...), tal como ele próprio o disse (1974:522) - «Em 1957 eu era porém, para as classes possidentes e para a direita monárquica, pura e simplesmente o chefe da esquerda do regime, acusando-se o Presidente Craveiro Lopes de comungar nas mesmas ideias e de cobrir a minha acção» - teria sossegado os ultras - e, mais tarde, em 1960, a destituição de Camilo de Mendonça[11] da RTP, substituído por Luís Athayde[12] - que já vinha exercendo as funções de administrador por parte do Estado desde o ano anterior -, serão marcos de uma nova fase na então breve história da televisão em Portugal, como veremos. Marcello era tido no país, segundo outros, «como o único representante da modernidade no regime” (Valente, 1990:163). Nos dez anos que se seguiriam «o regime apodreceu lentamente e o país entrou em crise larvar que explodiria sob Marcelo» (op. cit.: 164).
Não seria pois de estranhar o aparentemente súbito ‘enamoramento’ de Marcello Caetano pela televisão. Não esqueçamos que ele tinha efectivamente teorizado sobre a opinião pública no Estado moderno. Para Caetano (1971: 119), os governantes não poderiam jamais deixar de dar contas do que “pensam, projectam ou fazem”: «A cena parlamentar, inventada no tempo em que o convívio social decorria em conversas de salão, foi suplantada nesta época de eliminação das distâncias e de facilidade de comunicações”... Marcello Caetano explicitava assim, claramente, ou mesmo visionariamente, para o sistema político português, a sua concepção utilitarista da televisão. Esta regra, finalmente, não era apenas sua: ela era, por assim dizer, uma regra da história política e dos media, e nessa altura, através da televisão, particularmente, emergia como universal, e contaminava com algum despudor o campo da comunicação. A sua razão utilitária da televisão era tanto mais óbvia quanto ele dizia afastar-se de outros meios como por exemplo o cinema: «(...) o cinema não me faz muita falta ...», diria a António Alçada Baptista (1973:76). Muito possivelmente “resignava-se” ao “cinema do pobre” - como Domingos de Mascarenhas então considerava a televisão -, ou ao “espectáculo dos pobres”, como mais tarde Ramiro Valadão lhe chamaria.
Chegam pois as emissões regulares de televisão. 7 de Março de 1957, é aliás, uma data de todos já conhecida... Todos os anos a RTP o relembra... Dois dos nomes fundamentais na estrutura da RTP eram Manuel Figueira (ex-presidente da Câmara Municipal do Barreiro, filiado na União Nacional) que assumirá a direcção da informação televisiva, e Miguel de Araújo, tido como homem da confiança da Igreja e do regime. Os primeiros funcionários são, pois, recrutados, em boa parte, nas próprias estruturas do regime, nomeadamente na União Nacional e Mocidade Portuguesa (através da Rádio Universidade), e também na Rádio oficial, se bem que no que concerne aos quadros não directivos muitos tenham sido os casos de ingresso por concurso, como é o caso de alguns dos primeiros locutores como Manuel Caetano, Gomes Ferreira e Luís Arnaud Pombeiro[13]. Mas às 21:30 de 7/3/57 iniciam-se então as emissões regulares. Apresentaram o “Noticiário”[14] em directo, Gomes Ferreira e Luís A. Pombeiro. De início, os outros locutores da informação eram Manuel Caetano, Fialho Gouveia e Arménio Duarte Silva.
Mal a televisão começa, já Marcello Caetano estava nos écrans, concretamente a 5 de Junho de 1957, não tinham ainda passados dois meses após a primeira das emissões regulares[15]. O tema que levou Marcello a falar pela primeira vez, expressamente, ao país, através da Rádio e da Televisão, era, sem dúvida, um tema lateral aos desígnios do regime. Tratava-se do 10.º aniversário do auxílio americano à Europa - concretamente, do Plano Marshall, «um dos acontecimentos marcantes da era contemporânea», segundo o próprio Marcello Caetano. O ministro da Presidência aproveitaria então a situação para apresentar o país, com toda a naturalidade, aliás, perfeitamente integrado no contexto do mundo ocidental, e com uma situação de tal modo favorável, que nem sequer tinha necessitado de especial auxílio norte-americano: «Em Portugal, subtraídos como estivemos aos efeitos directos do cataclismo, mal nos apercebemos da grandeza do desastre. Mesmo assim muitas pessoas haverá que recordam as circunstâncias difíceis desse começo de ano de 1947 em que foi necessário recorrer à importação de géneros alimentícios para suprimir as faltas resultantes do péssimo ano agrícola. Mas em Portugal havia reservas de ouro com que pagar essas compras ao estrangeiro. No resto da Europa, não.»
Um mês antes, porém, a 4 de Maio de 1957, no Jornal de Actualidades (JA) [16] da RTP, agradecia, aquando da sua deslocação a Braga, «os testemunhos de fé dados pelos nacionalistas de Braga ao Governo da Nação»: «A ninguém se pede o sacrifício dos princípios em que formou a sua consciência cívica e que constituem os seus ideais. Mas na hora em que por esse mundo soam as ameaças que põem em causa o que de mais sagrado todos nós veneramos - Deus, a Pátria, a Família - não devemos ter outro fito que não seja a defesa do que constitui a essência mesma da civilização latina e cristã em que desejamos continuar a viver». E a 20 desse mês, no mesmo noticiário televisivo, a propósito do Congresso Internacional dos Chefes de Redacção, realizado na Câmara Corporativa, confessava, um tanto surpreendentemente: «Não conheço hoje em dia questões mais complexas e que envolvam tamanha variedade e tão grande extensão como as que são postas pelos problemas da informação», mostrando, afinal de contas, que atribuía aos media em geral uma importância ainda maior do que aquela que se supunha.
Dir-se-ia pois que nesta primeira fase das emissões regulares - que correspondiam de facto à permanência de Caetano no governo de Salazar, era o Ministro da Presidência quem representava o regime no écran televisivo. De Salazar pouco se sabia: salvo numa ou noutra ‘aparição’ em recepções oficiais, como foi o caso da recepção à Rainha Isabel II, em Fevereiro desse ano, ou a despedida, no Aeroporto, de Craveiro Lopes aquando da sua viagem ao Brasil, em Junho do mesmo ano, ou ainda nas eleições para a VII Legislatura, respectiva sessão inaugural, cerimónias aliás comuns a todos os membros do Governo. E, para além, obviamente, do encontro com Franco em Ciudad Rodrigo, o Presidente do Conselho, ao contrário do ministro da Presidência, poucas oportunidades mais teria, em 1957, para utilizar a televisão como “instrumento” do seu desempenho político.
Aliás, o trabalho de reportagem apresentado em “última hora” no Jornal de Actualidades de 10 de Julho, seria mais uma peça de antologia a juntar às demais, mais parecendo uma narrativa bucólica de um qualquer encontro idílico do que propriamente uma reunião de estadistas. Para além disso, percebe-se nela a aparente surpresa de Salazar quando viu em Ciudad Rodrigo que a imprensa e a televisão portuguesa estavam a par deste encontro e tinham enviado repórteres (seria que desta vez não tinha sido o seu gabinete a dar a notícia à comunicação social? Note-se que Marcello Caetano refere a eficiência do gabinete de Salazar em dar informação de todas as reuniões com os seus ministros - 1977:256). De notar ainda que este trabalho de operador-repórter, mantém o absoluto segredo sobre o encontro - no texto nada é dito de essencial sobre os assuntos abordados na “cimeira”. Cito as passagens dominantes nessa reportagem: «A salamantina Ciudad Rodrigo com suas muralhas e seus termos de férteis cereais (...) verdejantes trepadeiras tornavam o ambiente calmo, sereno (...). No ambiente luxuriante (...) os dois estadistas conversavam amenamente (...). O generalíssimo Franco aproveitou o ensejo para fazer o elogio do desporto, principalmente o da pesca, pelo qual tem predilecção especial. Ao fundo, as límpidas águas do Agueda, corriam com serenidade. Uma leve brisa mal conseguia agitar a folhagem verde das belas árvores do ridente jardim (...). Salazar e Franco (...) concertavam políticas (...) elaboraram um comunicado final, onde espelham os propósitos mais sérios, onde se fazem afirmações pacíficas, onde se verifica a existência de uma política sem rancores (...) Franco e Salazar, ambos com o seu sorriso límpido, a sua alma tranquila, elaboraram um documento que honra duas Pátrias e dignifica dois estadistas. Mais uma vez na Península Ibérica se ergueu bem alto a chama duma civilização (...) Das velhas pedras de um castelo rouqueiro (sic) saíram novas palavras de cruzada (...)».
É importante observar que Salazar, e as principais figuras do Estado, eram praticamente todos os dias objecto de referência nos Noticiários das 22 horas, e nas Últimas Notícias, às 23h, como se de uma agenda oficial se tratasse. Na esmagadora maioria dos casos tratava-se de textos muito curtos, quase títulos de notícias, telegramas lidos ao vivo, que descreviam a actividade dos presidentes da República e/ou do Conselho, respeitando sempre, obviamente, na ordem das notícias, as hierarquias do Estado... Por exemplo, repare-se em dois telegramas de abertura sobre a actividade de Salazar: «Sob a presidência do Senhor Presidente Dr. Oliveira Salazar reuniu-se no Palácio de S. Bento o Conselho de Ministros que se ocupou de assuntos correntes de administração pública». (Últimas Notícias de 21/5/57); ou: «Com o Senhor Presidente do Conselho trabalharam hoje os Ministros da Defesa e dos Negócios Estrangeiros» (Noticiário de 21/5/57). Esta agenda protocolar predominava nas aberturas da informação televisiva de então e nunca abandonaria o dispositivo de enunciação dos telejornais do salazarismo e do caetanismo.
Marcello Caetano, nesse ano, desdobrava-se em múltiplos discursos, presenças, visitas, etc., duas delas feitas, significativamente, à própria RTP/Porto (JA de 2/11), e Emissor da Lousã (JA de 31/10). Ganhava assim, sem dúvida, pelo seu novo desempenho mediático, o estatuto de relações públicas do regime, o que naturalmente não deixaria de ter efeito naqueles que mantinham posições adversas contra si, no interior do próprio sistema político monopartidário.
A informação televisiva era assim, em geral, já nesta altura, uma autêntica agenda interministerial, um acumular de telegramas governamentais, com um discurso assumidamente oficioso e protocolar, onde o desporto e o fait-divers tinham ainda uma quota parte significativa. E pouco mais. Os próprios telexes e material das agências, provenientes do estrangeiro, eram rigorosamente analisados e sempre que necessário censurados. Assuntos fundamentais na informação televisiva, nesse ano, que constituíram sem dúvida as mais extensas reportagens dos noticiários, foram a visita da Rainha, com trabalhos que ultrapassavam os vinte minutos diários (JA de 19 de Fevereiro); as partidas e chegadas de contingentes militares para a Índia e os comunicados do M.N.E. (Abril, Agosto e Setembro); a chegada do Governador Geral da África do Sul (10’ 18”, em 7 de Agosto); e a realização das “eleições de deputados à Assembleia Nacional” com a respectiva sessão inaugural da VII Legislatura (JA de 3 e 29 de Novembro de 1957, respectivamente). Mas importa não esquecer que as eleições, neste ano, apesar dos curtos apontamentos filmados, protocolares, exibidos no próprio dia, com as figuras do regime a votar «nas eleições de deputados da actual situação política» (JA 3/11/57), apesar disso, as eleições passaram praticamente despercebidas na televisão.
Com a oposição desmobilizada, a inexistência de propaganda e as perseguições do Governo, os candidatos oposicionistas acabariam por desistir do pleito eleitoral, defendendo a abstenção - mas nada disso, obviamente, foi referido na altura. E pouco mais do que isso seria referido, afinal, aquando da campanha do General Humberto Delgado, no ano seguinte.
Dir-se-ia portanto que esse ano de 1957, de início das emissões regulares, ficou marcado essencialmente por uma quase ausência física do ditador do écran e por um ostensivo alheamento do media como instrumento específico da sua acção política enquanto figura pública, delegando a imagem do poder em terceiros, nomeadamente confiando ao aparelho de controle e de produção da informação televisiva, a tarefa burocrática de divulgar prioritária e hierarquicamente, e manter incólume, a acção governativa. Como se o registo protocolar e oficioso da informação fosse já o seu “segundo corpo”, o seu corpo simbólico, o único capaz de ser traduzível por imagens, ainda que por imagens delegadas, mas sempre ausente, corpo impoluto, incorruptível pela mundaneidade que, de alguma forma, o mito da continuidade do poder simbólico exigia.
Ao contrário do que acontecia no final da Idade Média, aquando da emergência do Estado moderno, com essa construção religioso-jurídica e simbólica a que Ernst Kantorowicz chamava “os dois corpos do rei”, em Salazar, o corpo natural, que sofre e morre, e o corpo imortal, transmissível “sobrenaturalmente” ao sucessor (prática que funda, por assim dizer, a perpetuidade do soberano e a do Estado moderno), estão como que unidos num só, pretendendo-se assim, aparentemente, “salvar” o corpo simbólico da representação política e exorcizá-lo de todos os desgastes públicos, e da “publicidade desaforada”, como se deste modo, com alguma perversidade, se auto-perpetuassem ambos, o regime e o ditador.
A alfebetização audiovisual e bem assim a emergência televisiva de Salazar processa-se fundamentalmente a partir de 1958, muito provavelmente provocada pela intenção de superar o quase vazio de desempenho mediático, no pequeno écran, do presidente do Conselho no ano anterior. O ano de 1958, após um período de aparente estabilidade do regime, assenta no endurecimento da repressão, no envelhecimento do ditador e na sua progressiva perda de contacto com «os níveis inferiores da administração e o público em geral» (Oliveira Marques, 1977:352).
Veja-se, deste ponto de vista, esse breve documentário - Em casa de Salazar - no dia do seu aniversário (transmitido pela RTP dias depois da cerimónia do SNI, a 4/5/1958). Trata-se de um trabalho que, no seu tom beatífico, dir-se-ia, acaba por tanto mais negar a figura de Salazar quanto maior é o enlevo que dela faz. Sem ouvir uma única palavra ao ditador, diz dele afinal o fundamental: «(...) Este homem que pouco se vê, que raras vezes fala (apenas e exclusivamente as necessárias), permanece - ele e o mundo onde se move - como um mistério aliciante que empolga, comove e excita a imaginação daqueles que lhe querem com admiração, com apreço incontido, com veneração quase (...).» As imagens mostram-nos então aspectos do interior da sua casa - “o mundo reservado de Salazar” - os corredores, a mesa de trabalho, os jornais, um exemplar da Constituição, um calendário e um relógio (28/4/58, 15:27h), fotografias, flores, a famosa manta com que tapava as pernas, uma criada que entretanto passa - e só no final aparecerá “o homem que raras vezes fala” (em off): «(...) Eis Salazar na sua sala de trabalho, no dia do seu aniversário, recebendo os cumprimentos e felicitações de uma visita (...)». E, de facto, não só talvez para não comprometer o autor deste documento - autêntica “natureza morta” televisiva -, verdadeiramente naïf, Salazar nada disse.
Outro exemplo poderia ser referido para explicitar o facto de estarmos perante um ditador ‘sui generis’, avesso à representação mediática. Na posse da Comissão Executiva da União Nacional (JA de 6/12/1958) Salazar diria pouco mais que isto: «Não é meu intento fazer declarações de importância sobre a vida política e os problemas de governo - esses ficarão para outra oportunidade».
Voltando a 1957, na RTP, mais precisamente a 18 de Abril, a Ordem de serviço nº 3, que regulamentava a fiscalização de programas, era aprovada pelo Conselho de Administração da empresa. Esta norma interna surgia na sequência do Decreto-Lei nº 41051, de 1 de Abril de 1957, o qual, no seu artigo 11º, considerava competir à Comissão de Exame e Classificação dos Espectáculos «classificar filmes, peças teatrais, músicas, bailados e números congéneres destinados aos espectáculos de teatro e televisão (...)», etc., e no artigo 20º permitia que «em caso de urgência a classificação dos espectáculos de televisão será feita por um censor apenas, para esse efeito destacado junto da entidade emissora». O artigo 36º, regulamentava ainda o exame e a classificação dos diversos elementos do espectáculo, concretamente dos programas de televisão, no qual se previa que as peças teatrais classificadas para maiores de doze anos podiam passar a qualquer hora «excepto se a sua apresentação visual contiver cenas que não devam classificar-se para todos»; as peças ou filmes classificados para maiores de 12 anos deveriam passar a partir das 22 horas e 30 minutos. Quanto à classificação em si ela era a mesma para a radiotelevisão e para o cinema e teatro. Estes decretos vêm a ser revogados mais tarde pelo Decreto-Lei 263/71, de 18 de Junho. Se inicialmente, por exemplo, quanto aos critérios de classificação, as categorias se subdividiam em “para todos”, “para crianças”, “para maiores de 12 anos” e para adultos”, depois de 1971 ficam ordenadas nos grupos A (maiores de 6 anos); B (maiores de 10 anos); C (maiores de 14 anos) e D (maiores de 18 anos). Uma ligeira alteração é introduzida também nos horários de programação: até às 22 horas eram permitidos os programas classificados no grupo A e a partir da 22 horas só poderiam ser transmitidos programas do “grupo C” desde que “precedidos de aviso adequado” (art. 112º). E no artigo 26º ficava perfeitamente delimitado o dispositivo de aplicação da censura nos media em geral, e que se iria notar, muito particularmente, na informação televisiva (embora esta não fosse citada): «A Comissão de Exame e Classificação dos Espectáculos não poderá autorizar o licenciamento de filmes, peças de teatro ou quaisquer outros elementos de espectáculos ofensivos dos órgãos de soberania nacional, das instituições vigentes, dos chefes de Estado ou dos representantes diplomáticos de países estrangeiros, das crenças religiosas e da moral cristã tradicional, dos bons costumes e das pessoas particulares, ou que incitem ao crime ou sejam, por qualquer outra forma, perniciosos à educação do povo».
Muito embora a ordem de serviço nº 3, a que nos referimos, não constituísse propriamente uma directiva censória, o certo é que o regulamento em si continha já no seu articulado praticamente todas as orientações que viriam mais tarde a ser adoptadas, então de forma claramente censória, pelo Gabinete de Exame e Classificação de Programas, no interior da própria RTP. Competia portanto à “Fiscalização de programas” seguir diariamente a totalidade da emissão, e registar “pormenorizadamente” as “falhas e deficiências” ocorridas ao longo da emissão, desde as meramente técnicas, às que eram do domínio dos conteúdos, nomeadamente no que dizia respeito ao «equilíbrio qualitativo e quantitativo da distribuição de programas na emissão» e à verificação dos textos emitidos, no sentido de se saber se estavam “rigorosamente” de acordo com os textos previstos. Como se pode observar nos primeiros “Relatórios de Emissão”, ainda manuscritos, esta fiscalização era muito incipiente do ponto de vista censório, ou melhor, não tinha directamente esse objectivo. A censura, de facto, exercia-se a outros níveis. A regulamentação da fiscalização da emissão não seria portanto suficiente para um mais rigoroso controlo da televisão por parte do poder político. Daí a criação do Gabinete de Exame e Classificação de Programas em 1964, e daí também a presença de figuras da total confiança do regime na direcção da informação. Mas, também os convidados deveriam inspirar confiança ao regime[17].
No plano da informação televisiva as diferentes modalidades censórias eram aplicadas, internamente, quer pelos próprios jornalistas, quer, sobretudo, pelos “chefes de serviço” de departamento. Mais tarde, após a fundação do GECP, haverá um vogal destacado para esse efeito, embora a responsabilidade pelos principais serviços noticiosos raramente fugisse, primeiro a Manuel Figueira, depois a Manuel Maria Múrias, e, finalmente, ao próprio Ramiro Valadão, já com Marcello Caetano como primeiro-ministro.
A estratégia do poder político relativamente à televisão era no entanto ainda mais ambiciosa - sem, no entanto, ter sido levada até às últimas consequências. Repare-se que logo em 1959, ainda a cobertura televisiva do país não tinha atingido 50 por cento do território (mas apenas 43 por cento), e, com apenas 32 mil receptores registados, não por acaso, antes mesmo da Madeira e dos Açores, já tinham sido lançados estudos para «encontrar uma fórmula viável para a instalação da televisão em Angola e Moçambique (...). Mais do que nunca a ideia de estender a nossa actividade às Províncias Ultramarinas parece impor-se como uma necessidade da maior importância e, pela nossa parte, temos o problema estudado. As comparticipações necessárias encontram-se, na sua maioria, asseguradas e a fórmula encontrada é muito pouco dispendiosa em relação às vantagens que proporciona»[18]... Os anos decorrerão, no entanto, sem que nada se resolva quanto à televisão em África: nas vésperas do 25 de Abril vamos encontrar a administração envolvida num debate algo absurdo, sobre este mesmo assunto e recuando, aparentemente, face à determinação com que o regime havia avançado em 1959. A própria RTP havia sido ultrapassada nessa matéria pelo ministério do Ultramar - sinal, provavelmente, de que o regime não estava assim tão seguro do seu projecto “integracionista” de extensão da televisão para as “províncias ultramarinas”.
Mas no que concerne em particular às formas de representação do aparelho político dominante no final da década, e embora houvesse já alguma experiência, por parte do poder então vigente, do que era a televisão, e para mais com maior conhecimento do seu impacto social, 1959 decorreria ainda sob o mesmo signo de 1958, isto é, com uma informação rigidamente protocolar, e algumas cerimónias e manifestações de apoio ao regime - algumas em ‘reprise’, caso dos vários ‘aniversários’ do salazarismo, como aliás sucederia sempre até ao 25 de Abril - dadas com algum relevo pela RTP. Salazar aparece agora um pouco mais em visitas de circunstância (JA 6/1; JRTP 5/6) e confraternizações nacionalistas, será alvo de uma manifestação das ‘mulheres por Salazar’ (JA 27/4), de referências ao seu 70.º aniversário (JA 25, 28 e 29/4) terá também um "directo" televisivo da sede da União Nacional (na noite de 23 de Maio), cerimónia onde recebeu cumprimentos dos presidentes das distritais e altos dirigentes da U.N., e onde voltará a insistir no seu reduzido talento para a propaganda inflamada: «Da política, ou melhor, da pequena política doméstica, falarei pouco, além do mais porque dos meses que temos passado, de agitação, exacerbação das paixões e incitamento à sublevação e à desordem social, devem ter sido suficientes para convencer o maior número da sua esterilidade ou do seu risco (...)».
Ainda antes do final da década vários foram os sinais que prenunciaram, na informação televisiva, a crise que o regime iria atravessar ao longo dos anos 60 (casos como as evasões de Henrique Galvão e, depois, de Álvaro Cunhal da cadeia, ou o exílio do Porto, ou mesmo as grandes manifestações do 1º de Maio, não teriam enquanto tal qualquer eco televisivo); citemos os principais sinais: obviamente, em primeiro lugar, as eleições presidenciais de 58, com alguns desenvolvimentos em 1959 a propósito do exílio de Delgado,[19] em segundo lugar a questão colonial e o recurso do Estado português ao Tribunal Internacional de Haia sobre o contencioso com os enclaves de Dadrá e Nagar Aveli, e em terceiro lugar a questão argelina. A questão colonial está de facto desde logo presente. Salazar, denunciando a sua inoperância e a sua incapacidade para resolver o problema colonial, dirá em “mensagem à população de Angola” (TJ - Telejornal de 20/10/1959): «(...) Da confusão que se está a promover por muitas fontes não deve resultar nem paz, nem ordem, nem liberdade válida. Mas da ordem que se mantém, são de extrair, em todos os domínios, possibilidades de que mal podemos suspeitar. Só um perigo seria grave - quebrar-se a nossa coesão, diluir-se o sentimento que fez de nós o que ainda somos»... Este “o que ainda somos” queria dizer, no fundo, talvez mesmo por um qualquer descuido subconsciente, que o não seríamos sempre... Era natural que nesta altura, tendo presente o conflito com a União Indiana e o problema da Argélia - e sobretudo o facto de as hostilidades nas ex-colónias não terem sido ainda iniciadas - que o regime estivesse desatento até na informação televisiva. Repare-se nomeadamente no destaque que a certa altura, já com De Gaulle, é dado à questão argelina (discurso aos franceses - cf. Telejornal de 16 e 19/10/59), onde o general fala das diferentes soluções para o problemas: «(...) Secessão, na qual certas pessoas julgam que podem encontrar a independência; Integração completa, dando aos argelinos todos os privilégios concedidos na França metropolitana; ou, finalmente, um governo de argelinos apoiado pelo auxílio da França, em estreita união com a França... O futuro da Argélia pertence aos argelinos e não é uma carga que se lhes imponha à metralhadora e à baioneta» (na sequência deste discurso, a 23/9 os americanos apelam aos países da ONU para que não levantem obstáculos aos planos de De Gaulle sobre a Argélia). Tal como um outro, proferido um mês antes (o Diário de Notícias, de 16/9/59 considerava-o então de “sensacional declaração”) em que de Gaulle havia dito que «ponderados todos os dados do problema, argelinos, nacionais e internacionais, considero necessário proclamar a legitimidade do recurso à autodeterminação», ambos os discursos, em vez de inspirarem Salazar, tê-lo-iam feito tremer.
As coisas complicavam-se para Portugal. O país, membro da ONU desde Dezembro de 1955, encontrava aí também, necessariamente, dificuldades acrescidas em relação ao problema colonial. Era provável que o tribunal de Haia desse razão aos argumentos portugueses em relação à Índia, mas como dizia Dutra Faria na sua primeira “palestra” de Haia (Telejornal de 26/10/59) «(...) Não fosse o recurso a este Tribunal - e provavelmente os enclaves de Dadrá e Nagar Aveli teriam sido já anexados pela União Indiana». Sem dúvida que o regime, pela boca deste seu colunista, tinha já interiorizado que o recurso ao Tribunal não era mais do que um expediente para salvar a face, e assim a “moral da nação portuguesa”, tal como Salazar o havia defendido, o mesmo se passando com a invocação por parte do ditador das alianças com os ingleses e com a NATO, neste litígio.
Mas o certo é que no período imediatamente anterior ao início da guerra colonial, quando decorre o processo no Tribunal de Haia, e a crer no próprio Marcello Caetano (1977: 514-518), tanto ele, então ministro da Presidência, como Salazar, estavam seguros de que o problema do Ultramar caminharia para a independência (...). A divergência entre ambos estava no “como”, no processo de “autonomia das províncias” que para Marcello, adepto do federalismo (Oliveira Marques, 1977:527), deveria ser “progressivo”: «Quantas vezes conversámos sobre os problemas do Ultramar português! Nenhum de nós tinha dúvidas acerca do destino das grandes províncias africanas de Angola e Moçambique que um dia se tornariam independentes. Ambos pensávamos que Portugal tinha o dever de não deixar que a independência acontecesse sem que estivessem reunidas as condições necessárias para que fosse uma realidade dentro da comunidade lusíada (...). Mas a certa altura seduziu-o a chamada política de integração (...). Só nos últimos anos se convenceu de que o Mundo, representado nas Nações Unidas, não aceitava as suas teses (...). Nos meses da sua semilucidez agónica, depois de salvo do acidente que o pôs às portas da morte, Salazar repetia frases reveladoras das suas preocupações subconscientes. E nelas não havia já o apego à fórmula integracionista. Mas era tarde.»
Neste primeiro período da história da informação televisiva - desde início até finais dos anos 60 - período que antecede, mais concretamente, o lançamento do formato do Telejornal (em 19 de Outubro de 1959), nos moldes globais em que perdurou até 24 de Abril de 1974, as práticas específicas que então estruturaram o modelo de informação assumiam já, desde essa altura, a base fundamentalmente protocolar que jamais haviam de perder.
Por comissariado e atavismos próprios desta fase embrionária - delegação político-partidária dos responsáveis, mecanismos censórios e auto-censórios, desconhecimento prático das virtualidades “instrumentais” do novo media, carência de recursos técnicos e humanos - pode dizer-se que a informação televisiva era, para além do mais, extremamente subserviente, mas do modo mais incipiente e amador que se possa imaginar. Uma preocupação era tida como linha de orientação fundamental: não provocar quaisquer susceptibilidades no âmbito do próprio sistema político monopartidário - e só no seu interior. Só depois surge uma outra preocupação, designadamente após as eleições Presidenciais de Novembro de 1958: existia uma “oposição” ao regime - e esse era claramente um novo problema para o Chefe de Serviço Manuel Figueira. A omissão, e salvo num ou noutro caso, a difusão de um comunicado governamental sobre “desacatos” a propósito da campanha, era a opção tomada.
Assim se institucionalizava progressivamente um modelo burocrático de informação feito de militâncias e de dificuldades na apropriação de um novo discurso de propaganda, o qual vinha completar não só o modelo censório instituído, como ainda os canais de informação privilegiados pelo regime e pela sua estratégia totalitária - a sua imprensa oficial e oficiosa e as rádios estatal e oficiosa.
A agenda protocolar, quer dos responsáveis máximos da nação, quer dos seus ministros e dos principais actores da administração pública, era integrada nos alinhamentos dos jornais televisivos como se se tratasse de uma “secretaria de redacção” adstrita directamente ao próprio poder. Esse protocolo, noticiado em termos que já referimos como telegramáticos, isto é, com curtíssimas referências (sempre na abertura dos telejornais) ao “quem”, “onde”, “quando” e “o quê” só poderia ser entendido como notícia e não como pseudo-acontecimento se os seus protagonistas não fossem efectivamente, por sistema, ora o Presidente do Conselho, ora o Presidente da República.
E de facto a burocratização da informação e as aberturas dos alinhamentos através da agenda e do protocolo constituíram o traço marcante deste primeiro conjunto de séries de telejornais, produzidos no entanto com uma estratégia clara, com uma orientação política e propagandística patentes desde os primeiros noticiários da RTP.
O conjunto significante que se configura na analítica do conjunto de séries mostra, por isso, mais do que a incapacidade de Salazar - “actor” político que beneficiaria potencialmente dos favores televisivos - para o desempenho mediático da convicção política, mostra, queríamos dizer, sobretudo, a figura que se constitui e estrutura a partir das regularidades de agenciamento formal identificadas na nossa análise descritiva: cumprimento rigoroso do modelo protocolar da informação, respeito absoluto pela hierarquia política na selecção dos protagonistas e “actores” e seu posicionamento nos alinhamentos, obliteração do acontecimento e da matéria noticiosa em favor do pseudo-acontecimento.
Paralelamente, o dispositivo burocrático da informação pautava-se, no plano estritamente narrativo, por privilegiar, na complexa cadeia de interdependências entre o sistema político, a máquina censurante e a televisão, a emergência da palavra do poder através, por um lado, é certo, da escassa presença de Salazar (a autocracia e o Estado Novo permitiam, no fundo, tornar o ditador na excepção: a “publicidade”, aqui, não era, de facto, o “princípio da política”) mas, sobretudo, pelas presenças de Caetano (então como ministro da Presidência), e mais tarde, da omnipresença de Tomás; dos comunicados do executivo, das cerimónias e efemérides unionistas; do convite aos cronistas do regime; e, enfim, do restante do dispositivo burocrático e protocolar, a que a omissão genérica das eleições legislativas de 1957 e presidenciais de 1958 não foi obviamente estranha.
Deste modo havia uma clara apropriação da ordem instrumental televisiva pelo aparelho político, sem que, no entanto, nesta primeira fase, a estratégia editorialista se afirmasse no interior do telejornal através de texto de opinião próprio. Não havia, por assim dizer, uma autonomia editorialista da informação televisiva. No entanto, o aparecimento em finais de 1959 da “opinião” através de nomes perfeitamente identificados com o establishment será um primeiro passo para que o próprio Manuel Figueira enquanto responsável pela informação televisiva se abalance também ele no “editorial”. Mas antes que isso aconteça Figueira dará ainda às “revistas de imprensa” maior legitimidade televisiva que ao seu próprio discurso... Também é importante assinalar que este é ainda um momento em que o problema colonial se não põe com a mesma expressão que adquirirá a partir de 1960, com as sucessivas independências de países africanos. E isso é também evidente no próprio tratamento jornalístico de temas como o início da “questão argelina”, por exemplo, com a já referida citação de De Gaulle sobre a possível autodeterminação dos argelinos. Mas o facto é que a partir daí nada será como dantes. Nos anos 60 será reforçada a estratégia protocolar e instrumental do dispositivo televisivo. Primeiro com Manuel Maria Múrias e depois com Ramiro Valadão e Marcello Caetano. Como se se tratasse de uma resposta intolerante à exigência da liberdade.

[1] Discurso da inauguração da campanha para a reeleição do Presidente da República (7/1/1949).
[2] A. Ferro, Salazar, Lisboa, ENP, 1933, p. 150, citado por Manuel Braga da Cruz (1988:79).
[3] Aquando da revisão constitucional o deputado monárquico Carlos Madeira apresenta um “projecto de autêntico estatuto de Imprensa que embora aprovado seria torneado pelo Governo e adiado indefinidamente” (Braga da Cruz, 1988:80).
[4] Veja-se a resposta de Rolão Preto e João Medina (Salazar e os Fascistas, Bertrand, 1978, p. 160), quando este lhe pergunta “E o Salazar estudante, como era?”: - “(...) Tinha fama de monárquico (...) mas depressa passou a ser apenas católico (...) Cunha Leal era um dos grandes inimigos dele; tinha uma enorme facilidade de falar, uma ‘verve’... Coisa que Salazar não tinha - e isto foi uma coisa que talvez prejudicasse Salazar no seu destino: é que ele não era orador. De modo que não podia fazer um Parlamento em que tivesse que intervir pessoalmente. A primeira coisa que fez, uma vez chefe indiscutível, foi um Parlamento perante o qual os ministros não são responsáveis. Lia os discursos dele, discursos escritos... E nisso era completo: não faltava uma vírgula”. E um dos biógrafos oficiais de Salazar, Luís Teixeira, in “Perfil de Salazar” (Secretariado de Propaganda Nacional, Lisboa, 1939), citado por António de Figueiredo (1976:35), dizia dele: “(...) cresceu na sombra e estudou no isolamento”. O próprio António Ferro, no início dos anos 30, aquando da realização das entrevistas publicadas no “Diário de Notícias”, e antes de entrar para o automóvel (o “gabinete ambulante”) de Salazar, quando este estava ainda no Ministério da Finanças, perguntava-se: “Como irá receber-me, no meu estranho gabinete ambulante, esse homem que não recebe ninguém, que foge ao contacto dos outros homens, que parece medir todas as suas palavras, gestos e atitudes, que vejo debruçado constantemente, sobre a carta de Portugal, sobre a planta da Pátria, com uma régua, um esquadro e um compasso?” (Ferro, 1978:73). Jornais estrangeiros descobriram-lhe também facetas desconhecidas, como o “New Daily”, de Londres, citado pelo telejornal de 29/4/1960: “O homem que nunca consentiu que fosse emitido um selo com a sua efígie”, dizia, elogiando-o, a propósito da passagem de mais um aniversário...
[5] Cf. nomeadamente a circular à imprensa da Direcção dos Serviços de Censura, de 28/8/1931, citada por F.P. Balsemão (1971:81-184).
[6] Cf. discurso pronunciado na sede da União Nacional em 1 de Julho de 11958. Discursos e Notas Políticas, Vol. V, pp. 485 e segs. Neste mesmo discurso Salazar ironiza com “o valor informativo da imprensa” contando uma história sobre uma notícia que o tinha dado como ausente de Coimbra, não tendo ele saído da cidade...
[7] Cf. Arons de Carvalho, A Censura e as Leis de Imprensa, p. 103. Arons de Carvalho cita Alfredo Barroso, que no “República” de 7 de Fevereiro de 1972, escrevia: “Salazar não considerava a Imprensa um instrumento essencial, nem mesmo importante de execução da sua política”.
[8] Cf. discurso na Assembleia Nacional em 22/5/39, Discurso e Notas Políticas, Vol III, pp. 140-141.
[9] Ver designadamente Vicente Jorge Silva, “24 anos de RTP: a história de uma servidão”, “Expresso”, 7 de Março de 1981.
[10] Cf. op. cit.
[11] Camilo Mendonça, falecido em 1984, foi o primeiro presidente da RTP, exactamente de 13 de Dezembro de 1955 a 30 de Setembro de 1960. Exerceu no regime anterior, entre outras, as funções de secretário de Estado da Agricultura, vogal do Conselho Corporativo, Deputado à Assembleia Nacional durante várias legislaturas, pertenceu à Comissão Executiva da União Nacional, tendo tido papel activo na transformação da União Nacional em Acção Nacional Popular.
[12] Luís Athayde, segundo presidente da RTP, de 23 de Setembro de 1960 a 30 de Junho de 1966, tinha exercido funções na Administração-Geral dos Correios, tendo sido Chefe da Repartição da direcção dos Serviços Financeiros. Quando saíu da Televisão tomaria lugar como administrador-adjunto dos CTT.
[13] Por exemplo Manoel Caetano, irmão de Marcello Caetano, então Ministro da Presidência, fez questão de notar que tinha entrado para a RTP “por prestação de provas públicas” (Cf. “Manoel Caetano, a televisão e o 25 de Abril” trabalho de Rosário Domingos e Sérgio Fontão para a cadeira de História dos Media - DCS-FCSH, Maio de 1987, dactil., 30 págs.).
[14] O “Noticiário” era integrado, em regra, por um “Jornal de Actualidades”, com noticiário do país e do estrangeiro. Habitualmente, também, havia duas edições diárias: uma, às 22 horas, e outra (as “Últimas notícias”), às 23 horas. Logo no início de 1958, o “Noticiário” do país e do estrangeiro recua para as 21 horas, mantendo-se as “Últimas notícias” às 23 horas. Outros redactores vão entretanto aparecendo: é o caso de Paulo Cardoso e de Horácio Caio, Oliveira Pinto e Neves da Costa, Carlos de Melo, Ribeiro Soares, Vasco Teves, Navarro de Andrade, Alberto Lopes, etc.
[15] A revista “Rádio & Televisão”, de 8 de Junho de 1956, chegava mesmo a “teorizar” em torno da performance do ministro da Presidência, expondo todo um “receituário” de representação: “Na televisão como na rádio não deve ter-se a preocupação que se está a falar solenemente ao mundo inteiro, deve ter-se em vista que se está a conversar com cinco pessoas reunidas numa sala, em ambiente de família. Donde o despropósito do tom solene, da voz enfática, da pronúncia pretensiosa e do ar doutoral. Donde, a necessidade de uma grande dose de simplicidade, que mantenha o orador e ouvintes ligados por um fluido de simpatia e de familiaridade gerador de um clima de receptividade psicológica do auditório. Por exemplo: como o fez o Professor Doutor Marcelo Caetano.
“Quando um locutor de televisão quiser saber de que maneira há-de desempenhar-se modelarmente da sua função (...) Quando um entrevistador de televisão tiver dúvidas acerca do modo como ser vivo sem deixar de ser equilibrado e discreto (...) Quando um comentador de assuntos culturais ou desportivos sentir os modos e a voz impregnados de um tom doutoral, mais próprio para definir dogmas do que para enunciar futilidades comezinhas, fará bem em se lembrar do modo como se comportam perante o microfone e as câmaras, homens, aliás profundamente doutorais, como por exemplo o Professor Doutor Marcelo Caetano”.
[16] Trata-se de reportagens em filme que eram passadas nos noticiários logo desde início, ou a seguir à leitura no estúdio (em directo) das principais notícias do dia. Os alinhamentos em arquivo na RTP, nos anos 1956-1959, não nos dão uma relação clara da sequência das notícias em directo, nem tão pouco o seu texto, tendo-se certamente extraviado essa documentação fundamental.
[17] Na sequência de uma entrevista em directo do cantor Francisco José, na qual este reivindicava um aumento dos “cachets” para os artistas portugueses, uma nota interna do Gabinete de Exame e Classificação de Programas da RTP proibia, a partir de 14/10/1964, todas as entrevistas em directo, por forma a prevenir qualquer “intervenção abusiva”.
[18] Cf. Relatório e Contas da RTP de 1959, pp. 5-6.
[19] Por diversas vezes o Telejornal se havia referido a Delgado (nomeadamente a 26 e 28 de Novembro e 2 de Dezembro de 1959). A propósito das suas palavras proferidas em Londres, o Telejornal de 28 (2ª edição) comentava assim os factos: “(...) respondendo a uma pergunta que lhe foi formulada acerca dos seus planos em relação aos territórios ultramarinos de Portugal, o general Humberto Delgado respondeu, dizendo que a sua função como Presidente da República, se tivesse sido eleito, seria ‘transitória’ e só a desempenharia até conseguir estes dois objectivos: ‘descentralizar o Governo’ e ‘implantar uma forma de vida democrática em Portugal e nas Colónias’.
“O General Delgado designou sempre os territórios ultramarinos como ‘colónias’.
“O número de pessoas que assistiram a esta reunião - e merece a pena atentarmos no número - foi de 35! Aliás, não pode também passar sem reparo o facto do General Humberto Delgado ter ido a Londres pela mão de um goês traidor, ao serviço da União Indiana, no momento em que Portugal mantém um litígio com aquele país”.

(do livro Salazar, Caetano e a Televisão Portuguesa, Presença, Lisboa, 1996)

19.6.04

Convergência soft, realidade hard

Sábias palavras as de Wilbur Shcramm (1) quando, no final dos anos 60, perante esses "reflectores de sinais" que eram os satélites de primeira geração, dizia que essa maravilha da técnica não era, apesar de tudo, comparável ao aparecimento da linguagem escrita.
Passados trinta anos, alguma coisa mudou, naturalmente. O dispositivo histórico-cultural pós-alfabético, que se tem eternizado nesta espécie de longa Idade Média, tem agora os seus dias contados. É cada vez mais nítida, apesar de alguns impasses (2), essa linha de separação das águas entre uma sociedade de fluxos de comunicação unívocos e as comunidades virtuais e interactivas.
E aqui, desde logo, uma interrogação nos assalta: a bidireccionalidade, se fica apenas no seu registo "técnico", poderá não ser mais do que a metáfora da sociedade da abundância tecnológica – e, mais grave ainda, da própria democracia (3), tornando-se a miragem da sociedade das proezas tecno-sociais. Será assim, inevitavelmente, um campo de marginalização de amplos sectores da população, irrelevantes para o novo sistema, o que exige de facto um imperativo equilíbrio entre o nosso sobredesenvolvimento tecnológico e o subdesenvolvimento social (4).
Entramos assim na era do transpolítico. Numa modernidade que se recompõe por adições complexas: o movimento mais a incerteza. Ou por oposições definitivas: o mundo da vida mais o sistema da eficácia. De onde resultam as crises do paradigma do progresso, as passagens da finalidade à hipertelia; dos equilíbios orgânicos aos seus clones; dos (des)equilíbrios pelo terror; da legitimação pela representação ou pelo êxtase do real. Enfim, da substituição da ordem do homem pela ordem dos signos e dos pixels.
É, portanto, grande – e crítica – a expectativa desta mudança de milénio que nos conduzirá a uma sociedade potencialmente diferente daquela que conhecemos ao longo destes últimos dois séculos.
Ao paradigma da produção sucede agora uma nova reciclagem do paradigma da comunicação na sua versão self/cyber. E nesta violenta mutação joga-se uma ruptura dramática no dispositivo comunicacional – e no homem.
Essa diferença passará por aquilo a que se tem vindo a chamar a Sociedade da Informação – ou, segundo outros, a Sociedade do Conhecimento. Metáfora ou não – de modelos sociais e tecnológicos mais abertos –, certo é que os novos fluxos de informação e as redes interactivas são uma realidade irreversível. São fundamentalmente esses suportes de grandes capacidades e elevados débitos que convocam neste final de século a nossa qualidade criativa e apelam às melhores competências de forma a sermos capazes da possibilidade de recusa de nos revermos biónicos, ou tão-só de criar uma singularidade no universo complexo da globalização de conteúdos e tecnológica. Nesse aspecto, o controlo do virtual é decisivo para que a nova Telépolis (5) não fique exposta aos olhares da insondável totalização e às suas maquinações.
A verdade é que se a escrita e a tipografia estão na origem do Cidade-Estado e do Estado-nação, a convergência dos media e a Internet poderão ser a base de uma comunidade transnacional, mais identificada com a Cibernação (6) do que com as particularidades locais. Nesse aspecto, seremos todos virtuais, muito embora simples terrestres, na linha das primeiras propostas da Electronic Frontier Foundation.
Os novos media preparam, no fundo, uma outra convergência – a dos neurónios com os "chips", dessacralizando em definitivo as fobias biotecnológicas. Por exemplo, um sensor incrustado debaixo da pele poderá ser (é) um emissor de informação, mais ou menos pessoal, consoante seja ou não necessário para a mediação do homem com o mundo.
Na era do mundo de possíveis que a tecnologia disponibiliza, o inumano pode ser a modelização, a clonagem. O facto é que onde está o perigo, está aquilo que liberta. O corpo e seus acessórios, os "têxteis condutores", por exemplo, integrarão e armazenarão os seus próprios emissores. Gerará a necessária carga energética, receberá o seu próprio correio electrónico, sem fios, armazenará informação e projectá-la-á em 3D em ecrãs adaptados, por exemplo, aos óculos. Através de sistemas EBS (Eyeglass-based systems), ou dos chamados ecrãs de retina virtual (VRD), os olhos recebem imagens que se formam na própria retina, provenientes de sistemas miniaturizados instalados nos óculos.
Próteses do corpo, extensões da mente, identidades transgenéticas, realidades virtuais (7), enfim, a comunicação deslocalizou-se, tornou-se nómada e ubíqua e é nesse não-lugar que se geram os novos fluxos de informação do ciberespaço. Aí emerge um novo corpo/homem biónico, núcleo politópico de redes neuronais e de nanotecnologias que nos bifurcam para outro(s) eu(s) de nós próprios, emergentes já na própria Net (8).
Serão as extensões biónicas e a capacidade de interface do corpo com o computador e/ou suas extensões no plano do reconhecimento da voz, língua e gestos, que através de um HPC – handheld PC – com ligação internet constituirão a primeira plataforma de comunicação do novo século (9). No fundo, a única solução para combater o "computador sapiens" é (será?) preparar o homem biónico.
Os desafios da pós-biologia são assim de elevada complexidade. Computação biomolecular, próteses bioelectrónicas, computadores biológicos, à base de proteínas e de bactérias, são algumas das expressões que começam a fazer parte do glossário de todos os medos futuros.
Descendo um pouco mais à realidade, Joël de Rosnay teve um sonho: o futuro da televisão, provavelmente ainda antes do 3D, passará pelos home channels de redes matriciais de network media, o que transformará a televisão hertziana clássica numa espécie de "nicho" apenas visto por uma minoria de especialistas em generalidades e de analfabetos do ciberespaço. E, de qualquer modo, conectados à Rede. O impacte da Net, aliás, através das possibilidades infinitas da comunicação electrónica bidireccional, transformará radicalmente as nossas vidas: "absorverá o poder dos governos centrais, dos meios de comunicação e das grandes empresas" (10).
Topo
Esse novo espaço-tempo onde real e virtual interagem entre si, reclassificando a questão do político, e expondo novas microfísicas, novos processos de enunciação, disseminados pelas tecnologias "transpessoais", pelos cybermedia e pelas redes globais, emergirá impiedoso sobre um conhecimento milenar que desconhecia a convergência das novas revoluções – quântica, biomolecular e informática. Daí se entender bem Roy Ascott quando refere que a "cibercepção" não implica só um novo corpo e uma nova consciência mas uma redefinição do agir e do ser nesse "entrespaço" do real para o virtual (11). Novas fobias emergirão quando se colocar a questão em termos da convergência entre o orgânico e o tecnológico, a IA e os computadores, quando chegarmos à era da informática omnipresente e minúsculos microprocessadores possam sentir a nossa presença, antecipar os nossos desejos e até interpretar as nossas emoções (12):
"Interagiremos com os nossos computadores invisíveis por meio dos nossos gestos, voz, calor corporal e campo eléctrico, e movimentos do corpo".
O objectivo mais próximo – e modesto – é, no entanto, levar a Net aos 600 milhões de contactos. Estaremos então, segundo algumas previsões, no ano 2005 e a penetração da Net será idêntica à do telefone a nível planetário.
Por outro lado, uma resolução da FCC norte-americana decretou até 2006 o fim do sinal analógico de televisão, implicando por lá, ou a mudança de televisor por parte do consumidor, ou a aquisição de um conversor. Nessa altura, a Net estará seguramente em todos os lares norte-americanos. E nos laboratórios estarão já os interfaces que nos permitirão falar para computadores de parede que ao nosso pedido de leitura do jornal electrónico do dia nos darão os "nossos" recortes, e nos consolarão se a nossa aura electromagnética não estiver nos seus dias...

O estado da arte
Como diz Andy Grove, daqui a pouco tempo será preciso fazer qualquer coisa de muito estranho para conseguir um sinal de TV analógico. Nesta era digital, são os Estados Unidos que dão o primeiro alerta: os diferentes dispositivos integrados de tecnologia, conteúdos e serviços digitais têm fracassado no maior mercado mundial: "Every single Interactive experiment has failed", lamentava-se em meados da década de 90 Ted Turner.
O que significa que não é fácil concretizar o conceito: audiovisual, telecomunicações e informática, de facto, têm ainda as suas estanquicidades. Problemas como a imaturidade do mercado, a largura de banda, o custo dos novos fluxos, poderão explicar alguma coisa. Mas, certamente, o facto de o mercado tradicional do audiovisual não dar sinais de esgotamento, reproduzindo conteúdos, nos diferentes formatos, como metástases, adicionado ao facto de os novos conteúdos interactivos necessitarem de um know-how no plano das competências de escrita, de design, de interfaces, no plano narrativo e no plano dos conteúdos de forma mais genérica, podem também explicar este compromisso envergonhado das indústrias de conteúdos norte-americanas no âmbito dos novos media e da convergência de sectores.
A questão é que, de facto, todos estes serviços, por muito que o legislador o não queira, dificilmente se compatibilizarão com a estratégias políticas de desenvolvimento de serviços universais a preços justos, ou com a ideia de integrar escolas e centros de saúde de tecnologias avançadas de telecomunicações, como prescreve o Telecommunications Act de 1996. E isto, nesse maravilhoso mundo novo... Razão tem Umberto Eco quando diz que a imaterialização dos conteúdos está a tornar a indústria, paradoxalmente, cada vez mais pesada...

Convergências do nosso grau
Mais comedidos, vejamos como estão as coisas por cá. A potencialidade do cabo fez implodir a Lei de Televisão 58/90, havendo no final de século uma nova oferta real – e legal – no plano dos canais temáticos, da pay TV, e no plano da informação regional e dos canais cívicos. Esta nova paisagem audiovisual teve como consequências imediatas o reordenamento jurídico e empresarial da TV pública e uma reorientação estratégica do operador comercial mais forte no mercado, quer através da criação de estruturas de holding e participadas, no primeiro caso, quer através da diversificação de negócios, no segundo caso.
Nesta dualidade assentará algo do que já está a mudar a televisão e a paisagem mediática em geral. Públicos mais exigentes têm tendência a fragmentar o seu tempo de visionamento médio da televisão em benefício de novos media e/ou canais. Esta tendência irreversível para um número cada vez maior de indivíduos, está já a fazer mudar algumas das estratégias dos grupos de comunicação (veja-se o multimedia on-line, mas veja-se também o cabo activo, a NetTV, etc.). A questão da qualidade e do suporte passa seguramente por aqui – e se há tendências de fim de século que sejam importantes para pensar o fenómeno da oferta de conteúdos, da "audimetria" e da disponibilidade dos públicos para os novos serviços e programas, essas são-no decisivamente.
Os novos canais e o novo público emergente, tal como, em consequência, o reordenamento do mercado da publicidade, conferem designadamente à nova televisão por cabo e às plataformas digitais por satélite capacidades que a curto/médio prazo poderão ser convertidas em investimento em conteúdos e produção de stock, o que garantirá aquilo que é hoje essencial numa estratégia comercial de televisão em pleno processo de convergência, isto sendo certo que sairá vencedor no século XXI quem apostar sobretudo na ciência, na tecnologia e na criatividade. O mito do paradigma do progresso, assente na lógica de criação de riqueza com base em bens matérias, acabou-se também.

Publicidade e agentes
Como alguém disse, "um dia ninguém nos conhecerá melhor do que o nosso software". Isto é – e acreditando que os famosos agentes inteligentes de Patti Maes e seus sucedâneos serão benignos –, poderemos delegar à vontade neles, por exemplo, o trabalho árduo de pesquisa na Net, embora conscientes de que o retorno é o reconhecimento aprofundado do utilizador por parte do agente, facto que publicitários e comerciantes electrónicos da rede justamente agradecerão. Os nossos hábitos, comportamentos como consumidores, "hobbies" de navegação, tiques culturais, tudo ficará registado pelos agentes que connosco se cruzam. Tudo se poderá voltar contra nós, salvo se... estiver de início previsto o contrário.
Onde parte destes modelos começam justamente a ter aplicação prática é no mundo da publicidade. Na Net, a publicidade será mais direccional, será mais "conspiração" – aqui no mau sentido –, do que propaganda, satisfazendo o conceito de Esther Dyson, de que a Net é uma ferramenta pouco útil para a propaganda mas perfeita para a conspiração.
Muita coisa está pois a mudar designadamente em áreas de fusão de motores de pesquisa, tecnologias push com empresas de software no plano dos agentes inteligentes. Esta fusão permitirá de facto aos sites web personalizar o tipo de oferta e as suas facilidades e funcionalidades, adaptando-as aos utilizadores. Através das tecnologias de personalização, ou de filtragem cooperativa – e da disponibilidade para os utilizadores retraçarem os seus perfis pessoais, deixando de alguma forma o seu retrato demográfico e psicográfico. Depois, através de uma espécie de socialização dos diversos agentes em presença, constitui-se uma teia de "informadores" e de interfaces 'agentizados', que potenciam essa mesma filtragem cooperativa.
A disfunção menos complexa sucederá quando agentes direccionados para compras específicas desconheçam, por exemplo, o que é adquirido no "mundo real", fazendo emergir uma espécie de sociedade - monopoly e tudo o mais que se possa imaginar.
Para que o sistema não degenere, foi criado o OPS – Open Profiling Standard, uma proposta de norma que salvaguarda a possibilidade de o utilizador permitir ou não a partilha dos seus dados pessoais por outros utilizadores, empresas ou serviços. A questão da privacidade é aqui decisiva e o OPS constitui-se de alguma maneira como norma de regulação no intercâmbio de informação na Net.
Mais avançadas do que as filtragens, as redes neuronais podem inclusivamente perceber o tipo de conteúdos que estão em jogo no processo de 'personalização' e isto através de agentes que se podem instalar ou não nos servidores onde é necessário pesquisar determinada informação. Incontrolável software e incontroláveis hiper-humanos.



Notas

1 Wilbur Schramm, "Conséquences sociales prévisibles de la généralisation des Communications spatiales", L’information à l’ère spatiale, Unesco, 1968.

2 Emili Prado e Rosa Franquet, "Convergencia digital en el paraíso tecnológico: claroscuros de una revolución", Zer- Revista de Estudios de Comunicación, FCSC, Bilbao, Maio de 1998, pp. 15-40.

3 Serge Proulx e Michel Sénécal, "Interactividade técnica – simulacro de interacção e de democracia?", Tendências XXI, n.º 2, APDC, Lisboa, Setembro de 1997.

4 Manuel Castells, La Era de la Informacíon - Economia, Sociedad, Cultura, Vol. III, "Fin de Milenio", Madrid, Alianza Editorial, 1998, p. 394.

5 Javier Echeverría, "Constituir Internet", El Paseante, La Revolución Digital y Sus Dilemas, n.° 27-28. s/d, Madrid, Ediciones Siruela, pp. 6-7. Veja-se também o texto de J. A. Bragança de Miranda "O Controlo do Virtual". Tendências XXI, n° 1, Lisboa, APDC, Março de 1996.

6 Neil Barrett, The State of the Cibernation - Cultural, Polítical and Economic Implications of the Internet, Kogan Page, London, 1997.

7 Mark Dery, Velocidad de Escape – Le cibercultura en el final del siglo, Madrid, Ediciones Siruela, 1998.

8 Sherry Turkle, "Repensar la identidad de la comunidad virtual", El Paseante, La Revolución Digital y Sus Dilemas, n.27-28, s/d, Madrid, Ediciones Siruela.

9 Francisco Rui Cádima, "Metahomorfosis", Inter-face, Dezembro de 1998.

10 Esther Dyson, Release 2.0, Ediciones B, Barcelona, 1997, p. 15.

11 Ver, por exemplo, o texto de Roy Ascott, "A Arquitectura da Cibercepção", Ars Telemática -Telecomunicação, Internet e Ciberespaço (ed.: Cláudia Giannetti). Lisboa, Relógio d'Água, 1998.

12 Michio Kaku, Visões, Lisboa, Bizâncio, 1998, p. 58.
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