Salazar, o regime e a televisão
A par das estratégias repressivas e persecutórias, quer do salazarismo quer do caetanismo, a censura foi sem dúvida uma das armas decisivas para a sua continuidade - foi, claramente, um dos sustentáculos determinantes do regime: «a arma mais temível de Salazar - a sua arma absoluta - foi sempre a censura prévia», como dizia Mário Soares (1974: 151-152), no que estava de acordo com Oliveira Marques (1977:299): «(...) de todos os mecanismos repressivos a censura foi sem dúvida o mais eficiente, aquele que conseguiu manter o regime sem alterações estruturais durante quatro décadas».
Esse era obviamente o desejo de Salazar, desejo, aliás, bem explicitado a António Ferro: o que importava, de início, ainda nos anos 30, era sobretudo a «acalmação dos espíritos, o esquecimento de ódios e paixões», e, ainda nas palavras de Salazar, «modificar pouco a pouco, pacientemente, as paixões dos homens, atrofiando-as, calando-as, forçando-nos temporariamente a um ritmo vagaroso, mas seguro, que nos faça descer a temperatura, que nos cure da febre...» [2]. Mas a verdade é que a sua opinião não mudaria com o tempo. Ao longo de todo o seu consulado, e apesar de em 1959 ter surgido um projecto de Estatuto de Imprensa[3], Salazar jamais promulgaria legislação nesse âmbito... «Uma lei de imprensa pode reprimir certos abusos, mas não os evita», dizia a António Ferro (Ferro, 1978:96)... Mesmo quando se falava na eventualidade da criação de um dispositivo legal, como aconteceu exactamente com o chamado projecto Carlos Moreira, o certo é que o debate incidia quase exclusivamente sobre o problema da Imprensa (e também do livro), omitindo-se constantemente o âmbito da Rádio e da Televisão, aparentemente “intocáveis” (Balsemão 1971: 193). E a verdade é que mesmo no final desse ano de 1959, a 15 de Dezembro, o Presidente da Assembleia Nacional de então informava os deputados estar o Governo a preparar uma proposta de lei a submeter à apreciação da Câmara... Passar-se-iam dez anos, até que isso de facto acontecesse.
Mal começaram as emissões regulares de televisão (7/3/1957) e não propriamente Salazar, portanto, mas Marcello Caetano - qual “delfim” determinado a recuperar o tempo perdido, grande adepto da "personalização do poder", seguramente já consciente dos efeitos políticos do novo media, e sobretudo crente no predomínio dos factores irracionais na formação da opinião pública - achava-a «fortemente corruptível e presa fácil de aventureiros e charlatães» (1971:125) -, logo se apresentou a falar ao país, como recordou: «Fui o primeiro membro do Governo a utilizar a TV para expôr ao País, em Junho de 1957, problemas de interesse geral. Não oculto que segui os primeiros passos da Radiotelevisão Portuguesa com profundo interesse e entusiasmo até. Não imaginava que, anos depois, como Chefe do Governo, ela me seria de tanta utilidade para o estabelecimento de uma corrente de comunicação entre mim e o povo português. Mas sabia, desde o início, que era o instrumento ideal para um Governo se tornar popular... se o merecesse” (Caetano, 1977: 472).
O claro afastamento de Salazar do meio televisão não se explica só pelas suas múltiplas fobias de tecnologia, inovação, público, publicidade, etc., mas, aparentemente, pelo seu óbvio desconhecimento das “virtualidades instrumentais” do novo media - para além do mais não era propriamente um orador, o que já vinha, aliás, dos tempos da Coimbra [4]. Repare-se que no ano de 1958, já com emissões regulares em Portugal, em entrevista ao Figaro (de 2 e 3 de Setembro de 58), Salazar, numa visão passadista, repetindo definições que remontavam aos anos 30, às primeiras circulares da Direcção dos Serviços de Censura [5], privilegia, ainda no final dos anos 50, a imprensa face aos outros media «(...) a imprensa, principal meio, a rádio e a televisão, de formação da opinião pública (...)». Ou ainda: «(...) a imprensa, com as suas irmãs mais novas - a rádio e a televisão (...)»[6].É, aliás, opinião frequente não ter tido a própria imprensa um papel determinante na política oficial salazarista[7]. Ao contrário de Marcello, Salazar não parecia dar grande importância aos media como instrumento para a boa consecução de uma política. O seu modo de governar no retiro de S. Bento, algo misantropo, ascético mesmo, era sem dúvida refractário ao desempenho mediático. O próprio Marcello Caetano o reconhecia: «(...) naquele homem a Política tinha-se constituído em missão. Entrara na política como podia ter ingressado numa Ordem Religiosa austera” (1974: 580). Quase o mesmo havia dito, afinal, ainda nos anos 30, António Ferro (1978: 65), na introdução ao seu livro sobre Salazar: «Os que não se resignam aos pensamentos claros e desinteressados em vão procuravam na vida resumida e restrita do Dr. Salazar, as razões ocultas e subterrâneas das suas medidas, dos seus possíveis favoritismos. Mas nada, absolutamente nada. Difícil conceber maior isolamento, maior indiferença pelas coisas terrenas, pelos prazeres do mundo. O Dr. Oliveira Salazar era um exemplo de um ascetismo raro, talvez único, na clareira dos homens públicos da nossa época e da nossa terra».
Daí, de facto, não ter havido um aproveitamento de carácter declaradamente propagandístico, de uma ideologia - do regime e do seu ditador -, através do culto da imagem ou, num âmbito mais geral, mesmo do culto da personalidade, por exemplo, como aconteceu noutros regimes totalitários. Ou apenas e tão só de uma presença assídua, pré-determinada, nos meios de comunicação, e, nomeadamente, claro, na televisão. Ele próprio - Salazar - inclusive, deixava-o antever já em 1933 aquando da inauguração do Secretariado da Propaganda Nacional: «O Secretariado não é um instrumento do Governo, mas um instrumento de governo no mais alto significado que a expressão pode ter. Não se vai certamente evitar, com tal entendido pudor, toda a referência pessoal elogiosa, toda a homenagem prestada aos que se afirmam pelo trabalho, pela dedicação, pelo desinteresse com que servem a causa pública. Mas não é esse o objectivo que prossegue o Secretariado da Propaganda Nacional. A que se destina então? Vamos abstrair de serviços idênticos noutros países, dos exaltados nacionalismos que os dominam, dos teatrais efeitos a tirar no tablado internacional. Tratemos do nosso caso comezinho.(...)». E em 1939 voltaria a dizer, significativamente: «(...) Uma publicidade desaforada, estúpida umas vezes, outras inteligentíssima e internacional, esquadrinha as atitudes, dá sentido às coisas indiferentes, perverte as intenções mais puras, desvirtua o pensamento mais lúcido, açula paixões, espalha o ódio, lança o terror, suscita problemas e lança soluções que são outros tantos problemas»[8].
Teria sido em vão, portanto, a tentativa de Marcelo “alertar” Salazar aquando da assinatura do Tratado de Roma, em 1957: «Sr. Professor - vem aí a sociedade de consumo...», ter-lhe-ia dito[9], ao que ele, aparentemente, não ligou grande importância. Era sem dúvida, como disse Mário Soares (1990:11), «um político representativo do país rural, imóvel, atrasado, provinciano que Portugal foi, em grande parte durante o seu consulado e devido à sua acção». Mesmo profissionais como Vasco Teves, que privaram com Salazar aquando da realização de gravações para a RTP, confirmam que o ditador confessava a sua franca ignorância sobre aquelas máquinas de “tirar o retrato”... Daí, também, o lançamento da ‘operação TV’ ter assumido «foros de acto conspirativo»[10]. Mas a tranquilidade não deixaria de reinar no país. O “exílio universitário” de Caetano, que no período de 1955-58 era tido nos meios oficiais por “liberal”, senão mesmo como “homem de esquerda” (...), tal como ele próprio o disse (1974:522) - «Em 1957 eu era porém, para as classes possidentes e para a direita monárquica, pura e simplesmente o chefe da esquerda do regime, acusando-se o Presidente Craveiro Lopes de comungar nas mesmas ideias e de cobrir a minha acção» - teria sossegado os ultras - e, mais tarde, em 1960, a destituição de Camilo de Mendonça[11] da RTP, substituído por Luís Athayde[12] - que já vinha exercendo as funções de administrador por parte do Estado desde o ano anterior -, serão marcos de uma nova fase na então breve história da televisão em Portugal, como veremos. Marcello era tido no país, segundo outros, «como o único representante da modernidade no regime” (Valente, 1990:163). Nos dez anos que se seguiriam «o regime apodreceu lentamente e o país entrou em crise larvar que explodiria sob Marcelo» (op. cit.: 164).
Não seria pois de estranhar o aparentemente súbito ‘enamoramento’ de Marcello Caetano pela televisão. Não esqueçamos que ele tinha efectivamente teorizado sobre a opinião pública no Estado moderno. Para Caetano (1971: 119), os governantes não poderiam jamais deixar de dar contas do que “pensam, projectam ou fazem”: «A cena parlamentar, inventada no tempo em que o convívio social decorria em conversas de salão, foi suplantada nesta época de eliminação das distâncias e de facilidade de comunicações”... Marcello Caetano explicitava assim, claramente, ou mesmo visionariamente, para o sistema político português, a sua concepção utilitarista da televisão. Esta regra, finalmente, não era apenas sua: ela era, por assim dizer, uma regra da história política e dos media, e nessa altura, através da televisão, particularmente, emergia como universal, e contaminava com algum despudor o campo da comunicação. A sua razão utilitária da televisão era tanto mais óbvia quanto ele dizia afastar-se de outros meios como por exemplo o cinema: «(...) o cinema não me faz muita falta ...», diria a António Alçada Baptista (1973:76). Muito possivelmente “resignava-se” ao “cinema do pobre” - como Domingos de Mascarenhas então considerava a televisão -, ou ao “espectáculo dos pobres”, como mais tarde Ramiro Valadão lhe chamaria.
Chegam pois as emissões regulares de televisão. 7 de Março de 1957, é aliás, uma data de todos já conhecida... Todos os anos a RTP o relembra... Dois dos nomes fundamentais na estrutura da RTP eram Manuel Figueira (ex-presidente da Câmara Municipal do Barreiro, filiado na União Nacional) que assumirá a direcção da informação televisiva, e Miguel de Araújo, tido como homem da confiança da Igreja e do regime. Os primeiros funcionários são, pois, recrutados, em boa parte, nas próprias estruturas do regime, nomeadamente na União Nacional e Mocidade Portuguesa (através da Rádio Universidade), e também na Rádio oficial, se bem que no que concerne aos quadros não directivos muitos tenham sido os casos de ingresso por concurso, como é o caso de alguns dos primeiros locutores como Manuel Caetano, Gomes Ferreira e Luís Arnaud Pombeiro[13]. Mas às 21:30 de 7/3/57 iniciam-se então as emissões regulares. Apresentaram o “Noticiário”[14] em directo, Gomes Ferreira e Luís A. Pombeiro. De início, os outros locutores da informação eram Manuel Caetano, Fialho Gouveia e Arménio Duarte Silva.
Mal a televisão começa, já Marcello Caetano estava nos écrans, concretamente a 5 de Junho de 1957, não tinham ainda passados dois meses após a primeira das emissões regulares[15]. O tema que levou Marcello a falar pela primeira vez, expressamente, ao país, através da Rádio e da Televisão, era, sem dúvida, um tema lateral aos desígnios do regime. Tratava-se do 10.º aniversário do auxílio americano à Europa - concretamente, do Plano Marshall, «um dos acontecimentos marcantes da era contemporânea», segundo o próprio Marcello Caetano. O ministro da Presidência aproveitaria então a situação para apresentar o país, com toda a naturalidade, aliás, perfeitamente integrado no contexto do mundo ocidental, e com uma situação de tal modo favorável, que nem sequer tinha necessitado de especial auxílio norte-americano: «Em Portugal, subtraídos como estivemos aos efeitos directos do cataclismo, mal nos apercebemos da grandeza do desastre. Mesmo assim muitas pessoas haverá que recordam as circunstâncias difíceis desse começo de ano de 1947 em que foi necessário recorrer à importação de géneros alimentícios para suprimir as faltas resultantes do péssimo ano agrícola. Mas em Portugal havia reservas de ouro com que pagar essas compras ao estrangeiro. No resto da Europa, não.»
Um mês antes, porém, a 4 de Maio de 1957, no Jornal de Actualidades (JA) [16] da RTP, agradecia, aquando da sua deslocação a Braga, «os testemunhos de fé dados pelos nacionalistas de Braga ao Governo da Nação»: «A ninguém se pede o sacrifício dos princípios em que formou a sua consciência cívica e que constituem os seus ideais. Mas na hora em que por esse mundo soam as ameaças que põem em causa o que de mais sagrado todos nós veneramos - Deus, a Pátria, a Família - não devemos ter outro fito que não seja a defesa do que constitui a essência mesma da civilização latina e cristã em que desejamos continuar a viver». E a 20 desse mês, no mesmo noticiário televisivo, a propósito do Congresso Internacional dos Chefes de Redacção, realizado na Câmara Corporativa, confessava, um tanto surpreendentemente: «Não conheço hoje em dia questões mais complexas e que envolvam tamanha variedade e tão grande extensão como as que são postas pelos problemas da informação», mostrando, afinal de contas, que atribuía aos media em geral uma importância ainda maior do que aquela que se supunha.
Dir-se-ia pois que nesta primeira fase das emissões regulares - que correspondiam de facto à permanência de Caetano no governo de Salazar, era o Ministro da Presidência quem representava o regime no écran televisivo. De Salazar pouco se sabia: salvo numa ou noutra ‘aparição’ em recepções oficiais, como foi o caso da recepção à Rainha Isabel II, em Fevereiro desse ano, ou a despedida, no Aeroporto, de Craveiro Lopes aquando da sua viagem ao Brasil, em Junho do mesmo ano, ou ainda nas eleições para a VII Legislatura, respectiva sessão inaugural, cerimónias aliás comuns a todos os membros do Governo. E, para além, obviamente, do encontro com Franco em Ciudad Rodrigo, o Presidente do Conselho, ao contrário do ministro da Presidência, poucas oportunidades mais teria, em 1957, para utilizar a televisão como “instrumento” do seu desempenho político.
Aliás, o trabalho de reportagem apresentado em “última hora” no Jornal de Actualidades de 10 de Julho, seria mais uma peça de antologia a juntar às demais, mais parecendo uma narrativa bucólica de um qualquer encontro idílico do que propriamente uma reunião de estadistas. Para além disso, percebe-se nela a aparente surpresa de Salazar quando viu em Ciudad Rodrigo que a imprensa e a televisão portuguesa estavam a par deste encontro e tinham enviado repórteres (seria que desta vez não tinha sido o seu gabinete a dar a notícia à comunicação social? Note-se que Marcello Caetano refere a eficiência do gabinete de Salazar em dar informação de todas as reuniões com os seus ministros - 1977:256). De notar ainda que este trabalho de operador-repórter, mantém o absoluto segredo sobre o encontro - no texto nada é dito de essencial sobre os assuntos abordados na “cimeira”. Cito as passagens dominantes nessa reportagem: «A salamantina Ciudad Rodrigo com suas muralhas e seus termos de férteis cereais (...) verdejantes trepadeiras tornavam o ambiente calmo, sereno (...). No ambiente luxuriante (...) os dois estadistas conversavam amenamente (...). O generalíssimo Franco aproveitou o ensejo para fazer o elogio do desporto, principalmente o da pesca, pelo qual tem predilecção especial. Ao fundo, as límpidas águas do Agueda, corriam com serenidade. Uma leve brisa mal conseguia agitar a folhagem verde das belas árvores do ridente jardim (...). Salazar e Franco (...) concertavam políticas (...) elaboraram um comunicado final, onde espelham os propósitos mais sérios, onde se fazem afirmações pacíficas, onde se verifica a existência de uma política sem rancores (...) Franco e Salazar, ambos com o seu sorriso límpido, a sua alma tranquila, elaboraram um documento que honra duas Pátrias e dignifica dois estadistas. Mais uma vez na Península Ibérica se ergueu bem alto a chama duma civilização (...) Das velhas pedras de um castelo rouqueiro (sic) saíram novas palavras de cruzada (...)».
É importante observar que Salazar, e as principais figuras do Estado, eram praticamente todos os dias objecto de referência nos Noticiários das 22 horas, e nas Últimas Notícias, às 23h, como se de uma agenda oficial se tratasse. Na esmagadora maioria dos casos tratava-se de textos muito curtos, quase títulos de notícias, telegramas lidos ao vivo, que descreviam a actividade dos presidentes da República e/ou do Conselho, respeitando sempre, obviamente, na ordem das notícias, as hierarquias do Estado... Por exemplo, repare-se em dois telegramas de abertura sobre a actividade de Salazar: «Sob a presidência do Senhor Presidente Dr. Oliveira Salazar reuniu-se no Palácio de S. Bento o Conselho de Ministros que se ocupou de assuntos correntes de administração pública». (Últimas Notícias de 21/5/57); ou: «Com o Senhor Presidente do Conselho trabalharam hoje os Ministros da Defesa e dos Negócios Estrangeiros» (Noticiário de 21/5/57). Esta agenda protocolar predominava nas aberturas da informação televisiva de então e nunca abandonaria o dispositivo de enunciação dos telejornais do salazarismo e do caetanismo.
Marcello Caetano, nesse ano, desdobrava-se em múltiplos discursos, presenças, visitas, etc., duas delas feitas, significativamente, à própria RTP/Porto (JA de 2/11), e Emissor da Lousã (JA de 31/10). Ganhava assim, sem dúvida, pelo seu novo desempenho mediático, o estatuto de relações públicas do regime, o que naturalmente não deixaria de ter efeito naqueles que mantinham posições adversas contra si, no interior do próprio sistema político monopartidário.
A informação televisiva era assim, em geral, já nesta altura, uma autêntica agenda interministerial, um acumular de telegramas governamentais, com um discurso assumidamente oficioso e protocolar, onde o desporto e o fait-divers tinham ainda uma quota parte significativa. E pouco mais. Os próprios telexes e material das agências, provenientes do estrangeiro, eram rigorosamente analisados e sempre que necessário censurados. Assuntos fundamentais na informação televisiva, nesse ano, que constituíram sem dúvida as mais extensas reportagens dos noticiários, foram a visita da Rainha, com trabalhos que ultrapassavam os vinte minutos diários (JA de 19 de Fevereiro); as partidas e chegadas de contingentes militares para a Índia e os comunicados do M.N.E. (Abril, Agosto e Setembro); a chegada do Governador Geral da África do Sul (10’ 18”, em 7 de Agosto); e a realização das “eleições de deputados à Assembleia Nacional” com a respectiva sessão inaugural da VII Legislatura (JA de 3 e 29 de Novembro de 1957, respectivamente). Mas importa não esquecer que as eleições, neste ano, apesar dos curtos apontamentos filmados, protocolares, exibidos no próprio dia, com as figuras do regime a votar «nas eleições de deputados da actual situação política» (JA 3/11/57), apesar disso, as eleições passaram praticamente despercebidas na televisão.
Com a oposição desmobilizada, a inexistência de propaganda e as perseguições do Governo, os candidatos oposicionistas acabariam por desistir do pleito eleitoral, defendendo a abstenção - mas nada disso, obviamente, foi referido na altura. E pouco mais do que isso seria referido, afinal, aquando da campanha do General Humberto Delgado, no ano seguinte.
Dir-se-ia portanto que esse ano de 1957, de início das emissões regulares, ficou marcado essencialmente por uma quase ausência física do ditador do écran e por um ostensivo alheamento do media como instrumento específico da sua acção política enquanto figura pública, delegando a imagem do poder em terceiros, nomeadamente confiando ao aparelho de controle e de produção da informação televisiva, a tarefa burocrática de divulgar prioritária e hierarquicamente, e manter incólume, a acção governativa. Como se o registo protocolar e oficioso da informação fosse já o seu “segundo corpo”, o seu corpo simbólico, o único capaz de ser traduzível por imagens, ainda que por imagens delegadas, mas sempre ausente, corpo impoluto, incorruptível pela mundaneidade que, de alguma forma, o mito da continuidade do poder simbólico exigia.
Ao contrário do que acontecia no final da Idade Média, aquando da emergência do Estado moderno, com essa construção religioso-jurídica e simbólica a que Ernst Kantorowicz chamava “os dois corpos do rei”, em Salazar, o corpo natural, que sofre e morre, e o corpo imortal, transmissível “sobrenaturalmente” ao sucessor (prática que funda, por assim dizer, a perpetuidade do soberano e a do Estado moderno), estão como que unidos num só, pretendendo-se assim, aparentemente, “salvar” o corpo simbólico da representação política e exorcizá-lo de todos os desgastes públicos, e da “publicidade desaforada”, como se deste modo, com alguma perversidade, se auto-perpetuassem ambos, o regime e o ditador.
A alfebetização audiovisual e bem assim a emergência televisiva de Salazar processa-se fundamentalmente a partir de 1958, muito provavelmente provocada pela intenção de superar o quase vazio de desempenho mediático, no pequeno écran, do presidente do Conselho no ano anterior. O ano de 1958, após um período de aparente estabilidade do regime, assenta no endurecimento da repressão, no envelhecimento do ditador e na sua progressiva perda de contacto com «os níveis inferiores da administração e o público em geral» (Oliveira Marques, 1977:352).
Veja-se, deste ponto de vista, esse breve documentário - Em casa de Salazar - no dia do seu aniversário (transmitido pela RTP dias depois da cerimónia do SNI, a 4/5/1958). Trata-se de um trabalho que, no seu tom beatífico, dir-se-ia, acaba por tanto mais negar a figura de Salazar quanto maior é o enlevo que dela faz. Sem ouvir uma única palavra ao ditador, diz dele afinal o fundamental: «(...) Este homem que pouco se vê, que raras vezes fala (apenas e exclusivamente as necessárias), permanece - ele e o mundo onde se move - como um mistério aliciante que empolga, comove e excita a imaginação daqueles que lhe querem com admiração, com apreço incontido, com veneração quase (...).» As imagens mostram-nos então aspectos do interior da sua casa - “o mundo reservado de Salazar” - os corredores, a mesa de trabalho, os jornais, um exemplar da Constituição, um calendário e um relógio (28/4/58, 15:27h), fotografias, flores, a famosa manta com que tapava as pernas, uma criada que entretanto passa - e só no final aparecerá “o homem que raras vezes fala” (em off): «(...) Eis Salazar na sua sala de trabalho, no dia do seu aniversário, recebendo os cumprimentos e felicitações de uma visita (...)». E, de facto, não só talvez para não comprometer o autor deste documento - autêntica “natureza morta” televisiva -, verdadeiramente naïf, Salazar nada disse.
Outro exemplo poderia ser referido para explicitar o facto de estarmos perante um ditador ‘sui generis’, avesso à representação mediática. Na posse da Comissão Executiva da União Nacional (JA de 6/12/1958) Salazar diria pouco mais que isto: «Não é meu intento fazer declarações de importância sobre a vida política e os problemas de governo - esses ficarão para outra oportunidade».
Voltando a 1957, na RTP, mais precisamente a 18 de Abril, a Ordem de serviço nº 3, que regulamentava a fiscalização de programas, era aprovada pelo Conselho de Administração da empresa. Esta norma interna surgia na sequência do Decreto-Lei nº 41051, de 1 de Abril de 1957, o qual, no seu artigo 11º, considerava competir à Comissão de Exame e Classificação dos Espectáculos «classificar filmes, peças teatrais, músicas, bailados e números congéneres destinados aos espectáculos de teatro e televisão (...)», etc., e no artigo 20º permitia que «em caso de urgência a classificação dos espectáculos de televisão será feita por um censor apenas, para esse efeito destacado junto da entidade emissora». O artigo 36º, regulamentava ainda o exame e a classificação dos diversos elementos do espectáculo, concretamente dos programas de televisão, no qual se previa que as peças teatrais classificadas para maiores de doze anos podiam passar a qualquer hora «excepto se a sua apresentação visual contiver cenas que não devam classificar-se para todos»; as peças ou filmes classificados para maiores de 12 anos deveriam passar a partir das 22 horas e 30 minutos. Quanto à classificação em si ela era a mesma para a radiotelevisão e para o cinema e teatro. Estes decretos vêm a ser revogados mais tarde pelo Decreto-Lei 263/71, de 18 de Junho. Se inicialmente, por exemplo, quanto aos critérios de classificação, as categorias se subdividiam em “para todos”, “para crianças”, “para maiores de 12 anos” e para adultos”, depois de 1971 ficam ordenadas nos grupos A (maiores de 6 anos); B (maiores de 10 anos); C (maiores de 14 anos) e D (maiores de 18 anos). Uma ligeira alteração é introduzida também nos horários de programação: até às 22 horas eram permitidos os programas classificados no grupo A e a partir da 22 horas só poderiam ser transmitidos programas do “grupo C” desde que “precedidos de aviso adequado” (art. 112º). E no artigo 26º ficava perfeitamente delimitado o dispositivo de aplicação da censura nos media em geral, e que se iria notar, muito particularmente, na informação televisiva (embora esta não fosse citada): «A Comissão de Exame e Classificação dos Espectáculos não poderá autorizar o licenciamento de filmes, peças de teatro ou quaisquer outros elementos de espectáculos ofensivos dos órgãos de soberania nacional, das instituições vigentes, dos chefes de Estado ou dos representantes diplomáticos de países estrangeiros, das crenças religiosas e da moral cristã tradicional, dos bons costumes e das pessoas particulares, ou que incitem ao crime ou sejam, por qualquer outra forma, perniciosos à educação do povo».
Muito embora a ordem de serviço nº 3, a que nos referimos, não constituísse propriamente uma directiva censória, o certo é que o regulamento em si continha já no seu articulado praticamente todas as orientações que viriam mais tarde a ser adoptadas, então de forma claramente censória, pelo Gabinete de Exame e Classificação de Programas, no interior da própria RTP. Competia portanto à “Fiscalização de programas” seguir diariamente a totalidade da emissão, e registar “pormenorizadamente” as “falhas e deficiências” ocorridas ao longo da emissão, desde as meramente técnicas, às que eram do domínio dos conteúdos, nomeadamente no que dizia respeito ao «equilíbrio qualitativo e quantitativo da distribuição de programas na emissão» e à verificação dos textos emitidos, no sentido de se saber se estavam “rigorosamente” de acordo com os textos previstos. Como se pode observar nos primeiros “Relatórios de Emissão”, ainda manuscritos, esta fiscalização era muito incipiente do ponto de vista censório, ou melhor, não tinha directamente esse objectivo. A censura, de facto, exercia-se a outros níveis. A regulamentação da fiscalização da emissão não seria portanto suficiente para um mais rigoroso controlo da televisão por parte do poder político. Daí a criação do Gabinete de Exame e Classificação de Programas em 1964, e daí também a presença de figuras da total confiança do regime na direcção da informação. Mas, também os convidados deveriam inspirar confiança ao regime[17].
No plano da informação televisiva as diferentes modalidades censórias eram aplicadas, internamente, quer pelos próprios jornalistas, quer, sobretudo, pelos “chefes de serviço” de departamento. Mais tarde, após a fundação do GECP, haverá um vogal destacado para esse efeito, embora a responsabilidade pelos principais serviços noticiosos raramente fugisse, primeiro a Manuel Figueira, depois a Manuel Maria Múrias, e, finalmente, ao próprio Ramiro Valadão, já com Marcello Caetano como primeiro-ministro.
A estratégia do poder político relativamente à televisão era no entanto ainda mais ambiciosa - sem, no entanto, ter sido levada até às últimas consequências. Repare-se que logo em 1959, ainda a cobertura televisiva do país não tinha atingido 50 por cento do território (mas apenas 43 por cento), e, com apenas 32 mil receptores registados, não por acaso, antes mesmo da Madeira e dos Açores, já tinham sido lançados estudos para «encontrar uma fórmula viável para a instalação da televisão em Angola e Moçambique (...). Mais do que nunca a ideia de estender a nossa actividade às Províncias Ultramarinas parece impor-se como uma necessidade da maior importância e, pela nossa parte, temos o problema estudado. As comparticipações necessárias encontram-se, na sua maioria, asseguradas e a fórmula encontrada é muito pouco dispendiosa em relação às vantagens que proporciona»[18]... Os anos decorrerão, no entanto, sem que nada se resolva quanto à televisão em África: nas vésperas do 25 de Abril vamos encontrar a administração envolvida num debate algo absurdo, sobre este mesmo assunto e recuando, aparentemente, face à determinação com que o regime havia avançado em 1959. A própria RTP havia sido ultrapassada nessa matéria pelo ministério do Ultramar - sinal, provavelmente, de que o regime não estava assim tão seguro do seu projecto “integracionista” de extensão da televisão para as “províncias ultramarinas”.
Mas no que concerne em particular às formas de representação do aparelho político dominante no final da década, e embora houvesse já alguma experiência, por parte do poder então vigente, do que era a televisão, e para mais com maior conhecimento do seu impacto social, 1959 decorreria ainda sob o mesmo signo de 1958, isto é, com uma informação rigidamente protocolar, e algumas cerimónias e manifestações de apoio ao regime - algumas em ‘reprise’, caso dos vários ‘aniversários’ do salazarismo, como aliás sucederia sempre até ao 25 de Abril - dadas com algum relevo pela RTP. Salazar aparece agora um pouco mais em visitas de circunstância (JA 6/1; JRTP 5/6) e confraternizações nacionalistas, será alvo de uma manifestação das ‘mulheres por Salazar’ (JA 27/4), de referências ao seu 70.º aniversário (JA 25, 28 e 29/4) terá também um "directo" televisivo da sede da União Nacional (na noite de 23 de Maio), cerimónia onde recebeu cumprimentos dos presidentes das distritais e altos dirigentes da U.N., e onde voltará a insistir no seu reduzido talento para a propaganda inflamada: «Da política, ou melhor, da pequena política doméstica, falarei pouco, além do mais porque dos meses que temos passado, de agitação, exacerbação das paixões e incitamento à sublevação e à desordem social, devem ter sido suficientes para convencer o maior número da sua esterilidade ou do seu risco (...)».
Ainda antes do final da década vários foram os sinais que prenunciaram, na informação televisiva, a crise que o regime iria atravessar ao longo dos anos 60 (casos como as evasões de Henrique Galvão e, depois, de Álvaro Cunhal da cadeia, ou o exílio do Porto, ou mesmo as grandes manifestações do 1º de Maio, não teriam enquanto tal qualquer eco televisivo); citemos os principais sinais: obviamente, em primeiro lugar, as eleições presidenciais de 58, com alguns desenvolvimentos em 1959 a propósito do exílio de Delgado,[19] em segundo lugar a questão colonial e o recurso do Estado português ao Tribunal Internacional de Haia sobre o contencioso com os enclaves de Dadrá e Nagar Aveli, e em terceiro lugar a questão argelina. A questão colonial está de facto desde logo presente. Salazar, denunciando a sua inoperância e a sua incapacidade para resolver o problema colonial, dirá em “mensagem à população de Angola” (TJ - Telejornal de 20/10/1959): «(...) Da confusão que se está a promover por muitas fontes não deve resultar nem paz, nem ordem, nem liberdade válida. Mas da ordem que se mantém, são de extrair, em todos os domínios, possibilidades de que mal podemos suspeitar. Só um perigo seria grave - quebrar-se a nossa coesão, diluir-se o sentimento que fez de nós o que ainda somos»... Este “o que ainda somos” queria dizer, no fundo, talvez mesmo por um qualquer descuido subconsciente, que o não seríamos sempre... Era natural que nesta altura, tendo presente o conflito com a União Indiana e o problema da Argélia - e sobretudo o facto de as hostilidades nas ex-colónias não terem sido ainda iniciadas - que o regime estivesse desatento até na informação televisiva. Repare-se nomeadamente no destaque que a certa altura, já com De Gaulle, é dado à questão argelina (discurso aos franceses - cf. Telejornal de 16 e 19/10/59), onde o general fala das diferentes soluções para o problemas: «(...) Secessão, na qual certas pessoas julgam que podem encontrar a independência; Integração completa, dando aos argelinos todos os privilégios concedidos na França metropolitana; ou, finalmente, um governo de argelinos apoiado pelo auxílio da França, em estreita união com a França... O futuro da Argélia pertence aos argelinos e não é uma carga que se lhes imponha à metralhadora e à baioneta» (na sequência deste discurso, a 23/9 os americanos apelam aos países da ONU para que não levantem obstáculos aos planos de De Gaulle sobre a Argélia). Tal como um outro, proferido um mês antes (o Diário de Notícias, de 16/9/59 considerava-o então de “sensacional declaração”) em que de Gaulle havia dito que «ponderados todos os dados do problema, argelinos, nacionais e internacionais, considero necessário proclamar a legitimidade do recurso à autodeterminação», ambos os discursos, em vez de inspirarem Salazar, tê-lo-iam feito tremer.
As coisas complicavam-se para Portugal. O país, membro da ONU desde Dezembro de 1955, encontrava aí também, necessariamente, dificuldades acrescidas em relação ao problema colonial. Era provável que o tribunal de Haia desse razão aos argumentos portugueses em relação à Índia, mas como dizia Dutra Faria na sua primeira “palestra” de Haia (Telejornal de 26/10/59) «(...) Não fosse o recurso a este Tribunal - e provavelmente os enclaves de Dadrá e Nagar Aveli teriam sido já anexados pela União Indiana». Sem dúvida que o regime, pela boca deste seu colunista, tinha já interiorizado que o recurso ao Tribunal não era mais do que um expediente para salvar a face, e assim a “moral da nação portuguesa”, tal como Salazar o havia defendido, o mesmo se passando com a invocação por parte do ditador das alianças com os ingleses e com a NATO, neste litígio.
Mas o certo é que no período imediatamente anterior ao início da guerra colonial, quando decorre o processo no Tribunal de Haia, e a crer no próprio Marcello Caetano (1977: 514-518), tanto ele, então ministro da Presidência, como Salazar, estavam seguros de que o problema do Ultramar caminharia para a independência (...). A divergência entre ambos estava no “como”, no processo de “autonomia das províncias” que para Marcello, adepto do federalismo (Oliveira Marques, 1977:527), deveria ser “progressivo”: «Quantas vezes conversámos sobre os problemas do Ultramar português! Nenhum de nós tinha dúvidas acerca do destino das grandes províncias africanas de Angola e Moçambique que um dia se tornariam independentes. Ambos pensávamos que Portugal tinha o dever de não deixar que a independência acontecesse sem que estivessem reunidas as condições necessárias para que fosse uma realidade dentro da comunidade lusíada (...). Mas a certa altura seduziu-o a chamada política de integração (...). Só nos últimos anos se convenceu de que o Mundo, representado nas Nações Unidas, não aceitava as suas teses (...). Nos meses da sua semilucidez agónica, depois de salvo do acidente que o pôs às portas da morte, Salazar repetia frases reveladoras das suas preocupações subconscientes. E nelas não havia já o apego à fórmula integracionista. Mas era tarde.»
Neste primeiro período da história da informação televisiva - desde início até finais dos anos 60 - período que antecede, mais concretamente, o lançamento do formato do Telejornal (em 19 de Outubro de 1959), nos moldes globais em que perdurou até 24 de Abril de 1974, as práticas específicas que então estruturaram o modelo de informação assumiam já, desde essa altura, a base fundamentalmente protocolar que jamais haviam de perder.
Por comissariado e atavismos próprios desta fase embrionária - delegação político-partidária dos responsáveis, mecanismos censórios e auto-censórios, desconhecimento prático das virtualidades “instrumentais” do novo media, carência de recursos técnicos e humanos - pode dizer-se que a informação televisiva era, para além do mais, extremamente subserviente, mas do modo mais incipiente e amador que se possa imaginar. Uma preocupação era tida como linha de orientação fundamental: não provocar quaisquer susceptibilidades no âmbito do próprio sistema político monopartidário - e só no seu interior. Só depois surge uma outra preocupação, designadamente após as eleições Presidenciais de Novembro de 1958: existia uma “oposição” ao regime - e esse era claramente um novo problema para o Chefe de Serviço Manuel Figueira. A omissão, e salvo num ou noutro caso, a difusão de um comunicado governamental sobre “desacatos” a propósito da campanha, era a opção tomada.
Assim se institucionalizava progressivamente um modelo burocrático de informação feito de militâncias e de dificuldades na apropriação de um novo discurso de propaganda, o qual vinha completar não só o modelo censório instituído, como ainda os canais de informação privilegiados pelo regime e pela sua estratégia totalitária - a sua imprensa oficial e oficiosa e as rádios estatal e oficiosa.
A agenda protocolar, quer dos responsáveis máximos da nação, quer dos seus ministros e dos principais actores da administração pública, era integrada nos alinhamentos dos jornais televisivos como se se tratasse de uma “secretaria de redacção” adstrita directamente ao próprio poder. Esse protocolo, noticiado em termos que já referimos como telegramáticos, isto é, com curtíssimas referências (sempre na abertura dos telejornais) ao “quem”, “onde”, “quando” e “o quê” só poderia ser entendido como notícia e não como pseudo-acontecimento se os seus protagonistas não fossem efectivamente, por sistema, ora o Presidente do Conselho, ora o Presidente da República.
E de facto a burocratização da informação e as aberturas dos alinhamentos através da agenda e do protocolo constituíram o traço marcante deste primeiro conjunto de séries de telejornais, produzidos no entanto com uma estratégia clara, com uma orientação política e propagandística patentes desde os primeiros noticiários da RTP.
O conjunto significante que se configura na analítica do conjunto de séries mostra, por isso, mais do que a incapacidade de Salazar - “actor” político que beneficiaria potencialmente dos favores televisivos - para o desempenho mediático da convicção política, mostra, queríamos dizer, sobretudo, a figura que se constitui e estrutura a partir das regularidades de agenciamento formal identificadas na nossa análise descritiva: cumprimento rigoroso do modelo protocolar da informação, respeito absoluto pela hierarquia política na selecção dos protagonistas e “actores” e seu posicionamento nos alinhamentos, obliteração do acontecimento e da matéria noticiosa em favor do pseudo-acontecimento.
Paralelamente, o dispositivo burocrático da informação pautava-se, no plano estritamente narrativo, por privilegiar, na complexa cadeia de interdependências entre o sistema político, a máquina censurante e a televisão, a emergência da palavra do poder através, por um lado, é certo, da escassa presença de Salazar (a autocracia e o Estado Novo permitiam, no fundo, tornar o ditador na excepção: a “publicidade”, aqui, não era, de facto, o “princípio da política”) mas, sobretudo, pelas presenças de Caetano (então como ministro da Presidência), e mais tarde, da omnipresença de Tomás; dos comunicados do executivo, das cerimónias e efemérides unionistas; do convite aos cronistas do regime; e, enfim, do restante do dispositivo burocrático e protocolar, a que a omissão genérica das eleições legislativas de 1957 e presidenciais de 1958 não foi obviamente estranha.
Deste modo havia uma clara apropriação da ordem instrumental televisiva pelo aparelho político, sem que, no entanto, nesta primeira fase, a estratégia editorialista se afirmasse no interior do telejornal através de texto de opinião próprio. Não havia, por assim dizer, uma autonomia editorialista da informação televisiva. No entanto, o aparecimento em finais de 1959 da “opinião” através de nomes perfeitamente identificados com o establishment será um primeiro passo para que o próprio Manuel Figueira enquanto responsável pela informação televisiva se abalance também ele no “editorial”. Mas antes que isso aconteça Figueira dará ainda às “revistas de imprensa” maior legitimidade televisiva que ao seu próprio discurso... Também é importante assinalar que este é ainda um momento em que o problema colonial se não põe com a mesma expressão que adquirirá a partir de 1960, com as sucessivas independências de países africanos. E isso é também evidente no próprio tratamento jornalístico de temas como o início da “questão argelina”, por exemplo, com a já referida citação de De Gaulle sobre a possível autodeterminação dos argelinos. Mas o facto é que a partir daí nada será como dantes. Nos anos 60 será reforçada a estratégia protocolar e instrumental do dispositivo televisivo. Primeiro com Manuel Maria Múrias e depois com Ramiro Valadão e Marcello Caetano. Como se se tratasse de uma resposta intolerante à exigência da liberdade.
[1] Discurso da inauguração da campanha para a reeleição do Presidente da República (7/1/1949).
[2] A. Ferro, Salazar, Lisboa, ENP, 1933, p. 150, citado por Manuel Braga da Cruz (1988:79).
[3] Aquando da revisão constitucional o deputado monárquico Carlos Madeira apresenta um “projecto de autêntico estatuto de Imprensa que embora aprovado seria torneado pelo Governo e adiado indefinidamente” (Braga da Cruz, 1988:80).
[4] Veja-se a resposta de Rolão Preto e João Medina (Salazar e os Fascistas, Bertrand, 1978, p. 160), quando este lhe pergunta “E o Salazar estudante, como era?”: - “(...) Tinha fama de monárquico (...) mas depressa passou a ser apenas católico (...) Cunha Leal era um dos grandes inimigos dele; tinha uma enorme facilidade de falar, uma ‘verve’... Coisa que Salazar não tinha - e isto foi uma coisa que talvez prejudicasse Salazar no seu destino: é que ele não era orador. De modo que não podia fazer um Parlamento em que tivesse que intervir pessoalmente. A primeira coisa que fez, uma vez chefe indiscutível, foi um Parlamento perante o qual os ministros não são responsáveis. Lia os discursos dele, discursos escritos... E nisso era completo: não faltava uma vírgula”. E um dos biógrafos oficiais de Salazar, Luís Teixeira, in “Perfil de Salazar” (Secretariado de Propaganda Nacional, Lisboa, 1939), citado por António de Figueiredo (1976:35), dizia dele: “(...) cresceu na sombra e estudou no isolamento”. O próprio António Ferro, no início dos anos 30, aquando da realização das entrevistas publicadas no “Diário de Notícias”, e antes de entrar para o automóvel (o “gabinete ambulante”) de Salazar, quando este estava ainda no Ministério da Finanças, perguntava-se: “Como irá receber-me, no meu estranho gabinete ambulante, esse homem que não recebe ninguém, que foge ao contacto dos outros homens, que parece medir todas as suas palavras, gestos e atitudes, que vejo debruçado constantemente, sobre a carta de Portugal, sobre a planta da Pátria, com uma régua, um esquadro e um compasso?” (Ferro, 1978:73). Jornais estrangeiros descobriram-lhe também facetas desconhecidas, como o “New Daily”, de Londres, citado pelo telejornal de 29/4/1960: “O homem que nunca consentiu que fosse emitido um selo com a sua efígie”, dizia, elogiando-o, a propósito da passagem de mais um aniversário...
[5] Cf. nomeadamente a circular à imprensa da Direcção dos Serviços de Censura, de 28/8/1931, citada por F.P. Balsemão (1971:81-184).
[6] Cf. discurso pronunciado na sede da União Nacional em 1 de Julho de 11958. Discursos e Notas Políticas, Vol. V, pp. 485 e segs. Neste mesmo discurso Salazar ironiza com “o valor informativo da imprensa” contando uma história sobre uma notícia que o tinha dado como ausente de Coimbra, não tendo ele saído da cidade...
[7] Cf. Arons de Carvalho, A Censura e as Leis de Imprensa, p. 103. Arons de Carvalho cita Alfredo Barroso, que no “República” de 7 de Fevereiro de 1972, escrevia: “Salazar não considerava a Imprensa um instrumento essencial, nem mesmo importante de execução da sua política”.
[8] Cf. discurso na Assembleia Nacional em 22/5/39, Discurso e Notas Políticas, Vol III, pp. 140-141.
[9] Ver designadamente Vicente Jorge Silva, “24 anos de RTP: a história de uma servidão”, “Expresso”, 7 de Março de 1981.
[10] Cf. op. cit.
[11] Camilo Mendonça, falecido em 1984, foi o primeiro presidente da RTP, exactamente de 13 de Dezembro de 1955 a 30 de Setembro de 1960. Exerceu no regime anterior, entre outras, as funções de secretário de Estado da Agricultura, vogal do Conselho Corporativo, Deputado à Assembleia Nacional durante várias legislaturas, pertenceu à Comissão Executiva da União Nacional, tendo tido papel activo na transformação da União Nacional em Acção Nacional Popular.
[12] Luís Athayde, segundo presidente da RTP, de 23 de Setembro de 1960 a 30 de Junho de 1966, tinha exercido funções na Administração-Geral dos Correios, tendo sido Chefe da Repartição da direcção dos Serviços Financeiros. Quando saíu da Televisão tomaria lugar como administrador-adjunto dos CTT.
[13] Por exemplo Manoel Caetano, irmão de Marcello Caetano, então Ministro da Presidência, fez questão de notar que tinha entrado para a RTP “por prestação de provas públicas” (Cf. “Manoel Caetano, a televisão e o 25 de Abril” trabalho de Rosário Domingos e Sérgio Fontão para a cadeira de História dos Media - DCS-FCSH, Maio de 1987, dactil., 30 págs.).
[14] O “Noticiário” era integrado, em regra, por um “Jornal de Actualidades”, com noticiário do país e do estrangeiro. Habitualmente, também, havia duas edições diárias: uma, às 22 horas, e outra (as “Últimas notícias”), às 23 horas. Logo no início de 1958, o “Noticiário” do país e do estrangeiro recua para as 21 horas, mantendo-se as “Últimas notícias” às 23 horas. Outros redactores vão entretanto aparecendo: é o caso de Paulo Cardoso e de Horácio Caio, Oliveira Pinto e Neves da Costa, Carlos de Melo, Ribeiro Soares, Vasco Teves, Navarro de Andrade, Alberto Lopes, etc.
[15] A revista “Rádio & Televisão”, de 8 de Junho de 1956, chegava mesmo a “teorizar” em torno da performance do ministro da Presidência, expondo todo um “receituário” de representação: “Na televisão como na rádio não deve ter-se a preocupação que se está a falar solenemente ao mundo inteiro, deve ter-se em vista que se está a conversar com cinco pessoas reunidas numa sala, em ambiente de família. Donde o despropósito do tom solene, da voz enfática, da pronúncia pretensiosa e do ar doutoral. Donde, a necessidade de uma grande dose de simplicidade, que mantenha o orador e ouvintes ligados por um fluido de simpatia e de familiaridade gerador de um clima de receptividade psicológica do auditório. Por exemplo: como o fez o Professor Doutor Marcelo Caetano.
“Quando um locutor de televisão quiser saber de que maneira há-de desempenhar-se modelarmente da sua função (...) Quando um entrevistador de televisão tiver dúvidas acerca do modo como ser vivo sem deixar de ser equilibrado e discreto (...) Quando um comentador de assuntos culturais ou desportivos sentir os modos e a voz impregnados de um tom doutoral, mais próprio para definir dogmas do que para enunciar futilidades comezinhas, fará bem em se lembrar do modo como se comportam perante o microfone e as câmaras, homens, aliás profundamente doutorais, como por exemplo o Professor Doutor Marcelo Caetano”.
[16] Trata-se de reportagens em filme que eram passadas nos noticiários logo desde início, ou a seguir à leitura no estúdio (em directo) das principais notícias do dia. Os alinhamentos em arquivo na RTP, nos anos 1956-1959, não nos dão uma relação clara da sequência das notícias em directo, nem tão pouco o seu texto, tendo-se certamente extraviado essa documentação fundamental.
[17] Na sequência de uma entrevista em directo do cantor Francisco José, na qual este reivindicava um aumento dos “cachets” para os artistas portugueses, uma nota interna do Gabinete de Exame e Classificação de Programas da RTP proibia, a partir de 14/10/1964, todas as entrevistas em directo, por forma a prevenir qualquer “intervenção abusiva”.
[18] Cf. Relatório e Contas da RTP de 1959, pp. 5-6.
[19] Por diversas vezes o Telejornal se havia referido a Delgado (nomeadamente a 26 e 28 de Novembro e 2 de Dezembro de 1959). A propósito das suas palavras proferidas em Londres, o Telejornal de 28 (2ª edição) comentava assim os factos: “(...) respondendo a uma pergunta que lhe foi formulada acerca dos seus planos em relação aos territórios ultramarinos de Portugal, o general Humberto Delgado respondeu, dizendo que a sua função como Presidente da República, se tivesse sido eleito, seria ‘transitória’ e só a desempenharia até conseguir estes dois objectivos: ‘descentralizar o Governo’ e ‘implantar uma forma de vida democrática em Portugal e nas Colónias’.
“O General Delgado designou sempre os territórios ultramarinos como ‘colónias’.
“O número de pessoas que assistiram a esta reunião - e merece a pena atentarmos no número - foi de 35! Aliás, não pode também passar sem reparo o facto do General Humberto Delgado ter ido a Londres pela mão de um goês traidor, ao serviço da União Indiana, no momento em que Portugal mantém um litígio com aquele país”.
(do livro Salazar, Caetano e a Televisão Portuguesa, Presença, Lisboa, 1996)
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