Convergência soft, realidade hard
Passados trinta anos, alguma coisa mudou, naturalmente. O dispositivo histórico-cultural pós-alfabético, que se tem eternizado nesta espécie de longa Idade Média, tem agora os seus dias contados. É cada vez mais nítida, apesar de alguns impasses (2), essa linha de separação das águas entre uma sociedade de fluxos de comunicação unívocos e as comunidades virtuais e interactivas.
E aqui, desde logo, uma interrogação nos assalta: a bidireccionalidade, se fica apenas no seu registo "técnico", poderá não ser mais do que a metáfora da sociedade da abundância tecnológica – e, mais grave ainda, da própria democracia (3), tornando-se a miragem da sociedade das proezas tecno-sociais. Será assim, inevitavelmente, um campo de marginalização de amplos sectores da população, irrelevantes para o novo sistema, o que exige de facto um imperativo equilíbrio entre o nosso sobredesenvolvimento tecnológico e o subdesenvolvimento social (4).
Entramos assim na era do transpolítico. Numa modernidade que se recompõe por adições complexas: o movimento mais a incerteza. Ou por oposições definitivas: o mundo da vida mais o sistema da eficácia. De onde resultam as crises do paradigma do progresso, as passagens da finalidade à hipertelia; dos equilíbios orgânicos aos seus clones; dos (des)equilíbrios pelo terror; da legitimação pela representação ou pelo êxtase do real. Enfim, da substituição da ordem do homem pela ordem dos signos e dos pixels.
É, portanto, grande – e crítica – a expectativa desta mudança de milénio que nos conduzirá a uma sociedade potencialmente diferente daquela que conhecemos ao longo destes últimos dois séculos.
Ao paradigma da produção sucede agora uma nova reciclagem do paradigma da comunicação na sua versão self/cyber. E nesta violenta mutação joga-se uma ruptura dramática no dispositivo comunicacional – e no homem.
Essa diferença passará por aquilo a que se tem vindo a chamar a Sociedade da Informação – ou, segundo outros, a Sociedade do Conhecimento. Metáfora ou não – de modelos sociais e tecnológicos mais abertos –, certo é que os novos fluxos de informação e as redes interactivas são uma realidade irreversível. São fundamentalmente esses suportes de grandes capacidades e elevados débitos que convocam neste final de século a nossa qualidade criativa e apelam às melhores competências de forma a sermos capazes da possibilidade de recusa de nos revermos biónicos, ou tão-só de criar uma singularidade no universo complexo da globalização de conteúdos e tecnológica. Nesse aspecto, o controlo do virtual é decisivo para que a nova Telépolis (5) não fique exposta aos olhares da insondável totalização e às suas maquinações.
A verdade é que se a escrita e a tipografia estão na origem do Cidade-Estado e do Estado-nação, a convergência dos media e a Internet poderão ser a base de uma comunidade transnacional, mais identificada com a Cibernação (6) do que com as particularidades locais. Nesse aspecto, seremos todos virtuais, muito embora simples terrestres, na linha das primeiras propostas da Electronic Frontier Foundation.
Os novos media preparam, no fundo, uma outra convergência – a dos neurónios com os "chips", dessacralizando em definitivo as fobias biotecnológicas. Por exemplo, um sensor incrustado debaixo da pele poderá ser (é) um emissor de informação, mais ou menos pessoal, consoante seja ou não necessário para a mediação do homem com o mundo.
Na era do mundo de possíveis que a tecnologia disponibiliza, o inumano pode ser a modelização, a clonagem. O facto é que onde está o perigo, está aquilo que liberta. O corpo e seus acessórios, os "têxteis condutores", por exemplo, integrarão e armazenarão os seus próprios emissores. Gerará a necessária carga energética, receberá o seu próprio correio electrónico, sem fios, armazenará informação e projectá-la-á em 3D em ecrãs adaptados, por exemplo, aos óculos. Através de sistemas EBS (Eyeglass-based systems), ou dos chamados ecrãs de retina virtual (VRD), os olhos recebem imagens que se formam na própria retina, provenientes de sistemas miniaturizados instalados nos óculos.
Próteses do corpo, extensões da mente, identidades transgenéticas, realidades virtuais (7), enfim, a comunicação deslocalizou-se, tornou-se nómada e ubíqua e é nesse não-lugar que se geram os novos fluxos de informação do ciberespaço. Aí emerge um novo corpo/homem biónico, núcleo politópico de redes neuronais e de nanotecnologias que nos bifurcam para outro(s) eu(s) de nós próprios, emergentes já na própria Net (8).
Serão as extensões biónicas e a capacidade de interface do corpo com o computador e/ou suas extensões no plano do reconhecimento da voz, língua e gestos, que através de um HPC – handheld PC – com ligação internet constituirão a primeira plataforma de comunicação do novo século (9). No fundo, a única solução para combater o "computador sapiens" é (será?) preparar o homem biónico.
Os desafios da pós-biologia são assim de elevada complexidade. Computação biomolecular, próteses bioelectrónicas, computadores biológicos, à base de proteínas e de bactérias, são algumas das expressões que começam a fazer parte do glossário de todos os medos futuros.
Descendo um pouco mais à realidade, Joël de Rosnay teve um sonho: o futuro da televisão, provavelmente ainda antes do 3D, passará pelos home channels de redes matriciais de network media, o que transformará a televisão hertziana clássica numa espécie de "nicho" apenas visto por uma minoria de especialistas em generalidades e de analfabetos do ciberespaço. E, de qualquer modo, conectados à Rede. O impacte da Net, aliás, através das possibilidades infinitas da comunicação electrónica bidireccional, transformará radicalmente as nossas vidas: "absorverá o poder dos governos centrais, dos meios de comunicação e das grandes empresas" (10).
Topo
Esse novo espaço-tempo onde real e virtual interagem entre si, reclassificando a questão do político, e expondo novas microfísicas, novos processos de enunciação, disseminados pelas tecnologias "transpessoais", pelos cybermedia e pelas redes globais, emergirá impiedoso sobre um conhecimento milenar que desconhecia a convergência das novas revoluções – quântica, biomolecular e informática. Daí se entender bem Roy Ascott quando refere que a "cibercepção" não implica só um novo corpo e uma nova consciência mas uma redefinição do agir e do ser nesse "entrespaço" do real para o virtual (11). Novas fobias emergirão quando se colocar a questão em termos da convergência entre o orgânico e o tecnológico, a IA e os computadores, quando chegarmos à era da informática omnipresente e minúsculos microprocessadores possam sentir a nossa presença, antecipar os nossos desejos e até interpretar as nossas emoções (12):
"Interagiremos com os nossos computadores invisíveis por meio dos nossos gestos, voz, calor corporal e campo eléctrico, e movimentos do corpo".
O objectivo mais próximo – e modesto – é, no entanto, levar a Net aos 600 milhões de contactos. Estaremos então, segundo algumas previsões, no ano 2005 e a penetração da Net será idêntica à do telefone a nível planetário.
Por outro lado, uma resolução da FCC norte-americana decretou até 2006 o fim do sinal analógico de televisão, implicando por lá, ou a mudança de televisor por parte do consumidor, ou a aquisição de um conversor. Nessa altura, a Net estará seguramente em todos os lares norte-americanos. E nos laboratórios estarão já os interfaces que nos permitirão falar para computadores de parede que ao nosso pedido de leitura do jornal electrónico do dia nos darão os "nossos" recortes, e nos consolarão se a nossa aura electromagnética não estiver nos seus dias...
O estado da arte
Como diz Andy Grove, daqui a pouco tempo será preciso fazer qualquer coisa de muito estranho para conseguir um sinal de TV analógico. Nesta era digital, são os Estados Unidos que dão o primeiro alerta: os diferentes dispositivos integrados de tecnologia, conteúdos e serviços digitais têm fracassado no maior mercado mundial: "Every single Interactive experiment has failed", lamentava-se em meados da década de 90 Ted Turner.
O que significa que não é fácil concretizar o conceito: audiovisual, telecomunicações e informática, de facto, têm ainda as suas estanquicidades. Problemas como a imaturidade do mercado, a largura de banda, o custo dos novos fluxos, poderão explicar alguma coisa. Mas, certamente, o facto de o mercado tradicional do audiovisual não dar sinais de esgotamento, reproduzindo conteúdos, nos diferentes formatos, como metástases, adicionado ao facto de os novos conteúdos interactivos necessitarem de um know-how no plano das competências de escrita, de design, de interfaces, no plano narrativo e no plano dos conteúdos de forma mais genérica, podem também explicar este compromisso envergonhado das indústrias de conteúdos norte-americanas no âmbito dos novos media e da convergência de sectores.
A questão é que, de facto, todos estes serviços, por muito que o legislador o não queira, dificilmente se compatibilizarão com a estratégias políticas de desenvolvimento de serviços universais a preços justos, ou com a ideia de integrar escolas e centros de saúde de tecnologias avançadas de telecomunicações, como prescreve o Telecommunications Act de 1996. E isto, nesse maravilhoso mundo novo... Razão tem Umberto Eco quando diz que a imaterialização dos conteúdos está a tornar a indústria, paradoxalmente, cada vez mais pesada...
Convergências do nosso grau
Mais comedidos, vejamos como estão as coisas por cá. A potencialidade do cabo fez implodir a Lei de Televisão 58/90, havendo no final de século uma nova oferta real – e legal – no plano dos canais temáticos, da pay TV, e no plano da informação regional e dos canais cívicos. Esta nova paisagem audiovisual teve como consequências imediatas o reordenamento jurídico e empresarial da TV pública e uma reorientação estratégica do operador comercial mais forte no mercado, quer através da criação de estruturas de holding e participadas, no primeiro caso, quer através da diversificação de negócios, no segundo caso.
Nesta dualidade assentará algo do que já está a mudar a televisão e a paisagem mediática em geral. Públicos mais exigentes têm tendência a fragmentar o seu tempo de visionamento médio da televisão em benefício de novos media e/ou canais. Esta tendência irreversível para um número cada vez maior de indivíduos, está já a fazer mudar algumas das estratégias dos grupos de comunicação (veja-se o multimedia on-line, mas veja-se também o cabo activo, a NetTV, etc.). A questão da qualidade e do suporte passa seguramente por aqui – e se há tendências de fim de século que sejam importantes para pensar o fenómeno da oferta de conteúdos, da "audimetria" e da disponibilidade dos públicos para os novos serviços e programas, essas são-no decisivamente.
Os novos canais e o novo público emergente, tal como, em consequência, o reordenamento do mercado da publicidade, conferem designadamente à nova televisão por cabo e às plataformas digitais por satélite capacidades que a curto/médio prazo poderão ser convertidas em investimento em conteúdos e produção de stock, o que garantirá aquilo que é hoje essencial numa estratégia comercial de televisão em pleno processo de convergência, isto sendo certo que sairá vencedor no século XXI quem apostar sobretudo na ciência, na tecnologia e na criatividade. O mito do paradigma do progresso, assente na lógica de criação de riqueza com base em bens matérias, acabou-se também.
Publicidade e agentes
Como alguém disse, "um dia ninguém nos conhecerá melhor do que o nosso software". Isto é – e acreditando que os famosos agentes inteligentes de Patti Maes e seus sucedâneos serão benignos –, poderemos delegar à vontade neles, por exemplo, o trabalho árduo de pesquisa na Net, embora conscientes de que o retorno é o reconhecimento aprofundado do utilizador por parte do agente, facto que publicitários e comerciantes electrónicos da rede justamente agradecerão. Os nossos hábitos, comportamentos como consumidores, "hobbies" de navegação, tiques culturais, tudo ficará registado pelos agentes que connosco se cruzam. Tudo se poderá voltar contra nós, salvo se... estiver de início previsto o contrário.
Onde parte destes modelos começam justamente a ter aplicação prática é no mundo da publicidade. Na Net, a publicidade será mais direccional, será mais "conspiração" – aqui no mau sentido –, do que propaganda, satisfazendo o conceito de Esther Dyson, de que a Net é uma ferramenta pouco útil para a propaganda mas perfeita para a conspiração.
Muita coisa está pois a mudar designadamente em áreas de fusão de motores de pesquisa, tecnologias push com empresas de software no plano dos agentes inteligentes. Esta fusão permitirá de facto aos sites web personalizar o tipo de oferta e as suas facilidades e funcionalidades, adaptando-as aos utilizadores. Através das tecnologias de personalização, ou de filtragem cooperativa – e da disponibilidade para os utilizadores retraçarem os seus perfis pessoais, deixando de alguma forma o seu retrato demográfico e psicográfico. Depois, através de uma espécie de socialização dos diversos agentes em presença, constitui-se uma teia de "informadores" e de interfaces 'agentizados', que potenciam essa mesma filtragem cooperativa.
A disfunção menos complexa sucederá quando agentes direccionados para compras específicas desconheçam, por exemplo, o que é adquirido no "mundo real", fazendo emergir uma espécie de sociedade - monopoly e tudo o mais que se possa imaginar.
Para que o sistema não degenere, foi criado o OPS – Open Profiling Standard, uma proposta de norma que salvaguarda a possibilidade de o utilizador permitir ou não a partilha dos seus dados pessoais por outros utilizadores, empresas ou serviços. A questão da privacidade é aqui decisiva e o OPS constitui-se de alguma maneira como norma de regulação no intercâmbio de informação na Net.
Mais avançadas do que as filtragens, as redes neuronais podem inclusivamente perceber o tipo de conteúdos que estão em jogo no processo de 'personalização' e isto através de agentes que se podem instalar ou não nos servidores onde é necessário pesquisar determinada informação. Incontrolável software e incontroláveis hiper-humanos.
Notas
1 Wilbur Schramm, "Conséquences sociales prévisibles de la généralisation des Communications spatiales", L’information à l’ère spatiale, Unesco, 1968.
2 Emili Prado e Rosa Franquet, "Convergencia digital en el paraíso tecnológico: claroscuros de una revolución", Zer- Revista de Estudios de Comunicación, FCSC, Bilbao, Maio de 1998, pp. 15-40.
3 Serge Proulx e Michel Sénécal, "Interactividade técnica – simulacro de interacção e de democracia?", Tendências XXI, n.º 2, APDC, Lisboa, Setembro de 1997.
4 Manuel Castells, La Era de la Informacíon - Economia, Sociedad, Cultura, Vol. III, "Fin de Milenio", Madrid, Alianza Editorial, 1998, p. 394.
5 Javier Echeverría, "Constituir Internet", El Paseante, La Revolución Digital y Sus Dilemas, n.° 27-28. s/d, Madrid, Ediciones Siruela, pp. 6-7. Veja-se também o texto de J. A. Bragança de Miranda "O Controlo do Virtual". Tendências XXI, n° 1, Lisboa, APDC, Março de 1996.
6 Neil Barrett, The State of the Cibernation - Cultural, Polítical and Economic Implications of the Internet, Kogan Page, London, 1997.
7 Mark Dery, Velocidad de Escape – Le cibercultura en el final del siglo, Madrid, Ediciones Siruela, 1998.
8 Sherry Turkle, "Repensar la identidad de la comunidad virtual", El Paseante, La Revolución Digital y Sus Dilemas, n.27-28, s/d, Madrid, Ediciones Siruela.
9 Francisco Rui Cádima, "Metahomorfosis", Inter-face, Dezembro de 1998.
10 Esther Dyson, Release 2.0, Ediciones B, Barcelona, 1997, p. 15.
11 Ver, por exemplo, o texto de Roy Ascott, "A Arquitectura da Cibercepção", Ars Telemática -Telecomunicação, Internet e Ciberespaço (ed.: Cláudia Giannetti). Lisboa, Relógio d'Água, 1998.
12 Michio Kaku, Visões, Lisboa, Bizâncio, 1998, p. 58.
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