18.2.06

ERC: regulação, “contra-regulação” ou governamentalização?

Três informações do dia de ontem sobre o novo regulador: tomada de posse da ERC, anúncio do presidente do novo organismo (o membro ‘cooptado’ Azeredo Lopes) e declinação do convite para a cerimónia de tomada de posse, por parte do Sindicato dos Jornalistas, em oposição às “opções seguidas pelo Governo e pela maioria parlamentar, quanto à composição e forma de designação dos membros do Conselho Regulador da ERC, à propositada marginalização dos jornalistas e dos seus representantes e, enfim, à forma como foi cooptado o quinto elemento do referido Conselho Regulador”.

Vejamos então o recente mas já denso e preocupante histórico desta ERC.

O recém eleito presidente do órgão de regulação dos media em Portugal, professor universitário especializado em política internacional, aparece associado ao universo dos media, tanto quanto é público, há pouco mais de dois anos atrás, quando o ministro Morais Sarmento o indica como coordenador do projecto de Protocolo de co-regulação entre o Estado, a RTP, a SIC e a TVI, lançado pelo governo social-democrata à revelia do próprio regulador sectorial!

Este projecto tutelado de co-regulação, era tanto mais estranho quanto até à data os acordos de auto e co-regulação entre operadores televisivos, tinham vindo a ser coordenados pela entidade reguladora - a AACS.

Directamente interpelada nas suas competências, a AACS aprova em plenário de 27 de Agosto de 2003 uma discreta Deliberação Sobre a Celebração de Protocolo de Co-regulação entre o Estado Português, a RTP, a SIC e a TVI”, com o seguinte teor:

“A AACS tomou conhecimento pela comunicação social, da celebração de um dito ‘Protocolo’ de co-regulação entre o Estado, a RTP, a SIC e a TVI.

“Pelas notícias, que confirmou, o referido Protocolo não só limita os tempos de publicidade do operador público de televisão, como, alegadamente, em troca, impõe certas missões de “serviço público” aos operadores privados de Televisão.

“A AACS não foi previamente consultada sobre o teor do mencionado Protocolo, nem informada acerca do seu conteúdo que, na íntegra, desconhece.

“Assim, a AACS entende ser seu dever tornar público que, não tendo sido parte na preparação e celebração desse ‘Protocolo’, não estará naturalmente em condições de, para além do seu âmbito específico de atribuições e competências constitucionais e legais, assumir quaisquer responsabilidades quer pela fiscalização do seu cumprimento, quer na mediação de eventuais conflitos resultantes da sua interpretação e aplicação.

Afastado o regulador da coordenação e acompanhamento do Protocolo, não tendo sido dados a conhecer os relatórios de progresso dessa monitorização, surge a 15 de Fevereiro de 2005 uma "Declaração Conjunta - Balanço da execução do Protocolo RTP – SIC – TVI de 21 de Agosto de 2003":

"Decorridos 17 meses sobre a pública assinatura do Protocolo de 21 de Agosto de 2003, onde a RTP – Rádio e Televisão de Portugal, a SIC – Sociedade Independente de Comunicação e a TVI – Televisão Independente se comprometeram, sob o patrocínio de Sua Excelência o Ministro de Estado e da Presidência, a co-regularem algumas práticas tendentes à salvaguarda do interesse público e a uma equilibrada exploração das frequências de Televisão em sinal aberto de que são concessionárias, os respectivos presidentes dos conselhos de administração – Dr. Almerindo Marques, Dr. Francisco Pinto Balsemão e Eng. Miguel Paes do Amaral – consideram oportuno proceder a uma avaliação conjunta do nível de execução dos compromissos então acordados.

"Nestes termos, as três partes registam com satisfação que a evolução verificada tem sido globalmente muito positiva no que respeita ao cumprimento dos compromissos pelos operadores e também para o mercado televisivo nacional;

"De entre o conjunto das obrigações voluntariamente assumidas, os signatários entendem destacar algumas, pelo seu alcance e relevância.

"Assim:
- Procedeu-se à redução do limite de publicidade comercial da RTP 1 de 7,5 minutos para 6 minutos por hora e à contenção planificada do volume de patrocínios no canal “a 2” da RTP;
- Iniciou-se a emissão sistemática de conteúdos da SIC e TVI nos canais internacionais da RTP (RTP Internacional e RTP África);
- Garantiu-se o investimento em programas de ficção nacional e na produção independente, e promoveram-se obras financiadas pelo ICAM, em benefício da indústria nacional de produção de conteúdos e do cinema português;
- Incrementou-se a emissão de programas culturais;
- Incrementou-se a emissão de ficção e documentários com legendagem por teletexto e de programas de informação, entretenimento e cultura incorporando linguagem gestual, atendendo assim crescentemente aos públicos com necessidades especiais;
- Reforçou-se o volume de programação para minorias étnicas, culturais e religiosas; "Os signatários congratulam-se com os avanços verificados e manifestam a sua vontade no sentido de os três operadores continuarem a aperfeiçoar os procedimentos acordados, em benefício da credibilidade do sector e da salvaguarda dos interesses dos espectadores."

Aparentemente, portanto, o que se depreende que o sector manifestava, era, no fundo, uma co-regulação amistosamente tutelada e, por conseguinte, a ausência do próprio regulador.


Com Augusto Santos Silva, a situação de marginalização do regulador manteve-se. Com a AACS de fora da monitorização do Protocolo, Santos Silva declarava a 22 de Out. de 2005 ao jornalismoportonet: "Há um protocolo em vigor entre a RTP, a SIC e a TVI, que consagra novas obrigações, designadamente em matéria de ética de antena a todas essas estações e o desenvolvimento desse protocolo tem sido acompanhado por um perito independente, o professor Azeredo Lopes da Universidade Católica do Porto, que tem feito chegar informações muito positivas acerca desse desenvolvimento."

Sublinhe-se, para além do resto, as 'informações muito positivas'...

E repare-se, em particular, que, pelo contrário, de há muitos anos a esta parte, a investigação científica realizada nas universidades portuguesas, as críticas públicas de líderes de opinião, de associações de espectadores, de críticos de TV, etc., aos conteúdos dos operadores televisivos, ao contrário do que diz Santos Silva, têm vindo a subir de tom, vindas dos mais diversos sectores, incluindo de colunistas insuspeitos, como, por exemplo, Emídio Rangel.

O que é espantoso, dito sobretudo por um ministro socialista, homem de cultura, que aparentemente não quer perceber exactamente o mesmo que os operadores também não querem perceber. Que, por exemplo, entre muitas outras coisas, a SIC e a TVI estão com estratégias de programação de índole monotemática e não generalista, que submetem o espaço da informação à estratégia de programação e de contra-programação dos canais, que, sobretudo a SIC, tem tido no ar mais telenovelas brasileiras do que a própria Globo (grave em matéria de respeito pela identidade cultural portuguesa), que o serviço público continua a fidelizar horizontal e verticalmente o seu prime time, limitando (censurando) desta forma ao género 'concursos' um slot fundamental para a construção da Cidadania neste país e para a formação de uma opinião pública esclarecida, chegando a ‘cilindrar’, por exemplo, uma comunicação ao país do próprio PR! 'Informações muito positivas', de todo...


Iniciado então o processo de constituição da ERC, é o monitor do Protocolo perante a tutela - que ‘pilotava’ o dito cujo à revelia do próprio regulador -, o nome de quem se passa a falar para a presidência da ERC (ainda não eram conhecidos os nomes dos membros que o iriam cooptar)...

Denunciada no próprio Parlamento a alegada 'instrução' do 'contra-regulador' pelo governo (ele próprio, governo, actuando como tal), ficava a suspeita pública sobre se teria sido exactamente assim.

As denúncias de orientação do nome do cooptado não só não eram desmentidas por quem de direito, como eram confirmadas nas entrelinhas a diferentes níveis, segundo a imprensa. Estaria assim a ser violada a própria Lei n.º 53/2005, de 8 de Novembro, que cria a ERC - Entidade Reguladora para a Comunicação Social, aprovada semanas antes pelo Parlamento!

O Artigo 17.º da Lei não deixava margem para enganos: "Cooptação" - "1 - No prazo máximo de cinco dias contados da publicação da respectiva lista na 1.ª série-A do Diário da República, os membros designados reunirão, sob convocação do membro mais velho, para procederem à cooptação do quinto membro do conselho regulador. 2 - Após discussão prévia, os membros designados devem decidir por consenso o nome do membro cooptado. 3 - Caso não seja possível obter consenso, será cooptada a pessoa que reunir o maior número de votos."

Reunidos os indigitados, eis que surge então fumo branco, vindo da Secretaria-geral da Assembleia da República:


"Declaração n.º 4/2006 - Designação por cooptação de um membro para o Conselho Regulador da ERC - Entidade Reguladora para a Comunicação Social. (...) Nos termos do n.º 2 do artigo 17.º da Lei n.º 53/2005, de 8 de Novembro, declara-se que foi designado por cooptação para fazer parte do Conselho Regulador da ERC - Entidade Reguladora para a Comunicação Social o Prof. Doutor José Alberto de Azeredo Lopes. Assembleia da República, 10 de Fevereiro de 2006. - Pela Secretária-Geral, a Adjunta, Maria do Rosário Boléo."

Confirmando-se o nome há muito comentado, permaneceria, portanto, a suspeita.

Exigiria a transparência de todo este processo que, pelo menos, para que a suspeita não seja tão grosseira – dado que se continua a ouvir por aí à boca cheia acusações de governamentalização da ERC (ou melhor, para que por muito que nos assalte essa angústia possamos nos convencer a nós próprios que não, que isso não é verdade), que seja então divulgada pela Assembleia da República a Acta da reunião em que os indigitados escolheram a personalidade em causa, de preferência com especificação de requisitos, critérios de selecção e considerandos, adequação dos cooptáveis ao perfil traçado, etc.

Acta que, já agora, deve ser também colocada online (sempre se poupa algum papel à administração pública, isto caso sejam muitos os pedidos da Acta, o que para todos os efeitos também não deverá ser o caso, mas nunca se sabe, pode até ser uma bela peça de português e que por isso mesmo ande de boca em boca…).


Pode até imaginar-se que não tendo havido neste país, no entendimento dos indigitados, personalidades à altura para cooptar, ficassem em plena reunião numa perplexa hipnose, de tal maneira que mais não conseguissem senão soletrar apenas aquelas duas palavras tão divulgadas pelos media… Lopes, Azeredo, Azeredo, Lopes…

Este atrabiliário processo enredou-se assim numa teia profundamente lamentável, que descredibilizou o órgão - logo à nascença - e ainda o feriu da suspeita de governamentalização, o que, diga-se também em abono da verdade, nesta paróquia não é coisa para grande estranheza. Um pouco pior ainda: foi mesmo gerado, de forma um tanto perversa, a partir de enviesadas estratégias 'contra-regulatórias', sendo os próprios agentes dessas estratégias conduzidos agora à figura de 'reguladores'.

Um órgão em que os peritos seniores do sector estão em minoria, em que a minoria dos cooptáveis se reduziu aparentemente a um e um só, para além de, aparentemente também, os próprios socialistas quererem estar franciscanamente em minoria dando o órgão à oposição, o que, a ser assim, não deixa de ser mais um motivo de espanto. A maior estranheza será, evidentemente, se tanta menoridade junta acabar por dar um órgão maior…

Mas o mais espantoso será a confirmação daquilo que está à vista e que já aqui foi enunciado: a tutela parece achar que os operadores estão a fornecer 'informações muito positivas', que a 'ética de antena' está aí a toda a prova.

Conseguiu, ainda por cima, obter um Regulador com um presidente que vem da tarimba do protocolo com os próprios regulados (!) É, ela própria - tutela – “regulada”, via RTP, RDP e Lusa, pelos reguladores que o Estado indicou e que emanam maioritariamente de antigos cargos de direcção e administração dessas mesmas “desreguladas” empresas estatais...

Visto desta perspectiva, este regulador podia até ser já dispensado por falta provável de ‘encomendas’.
O que não é despiciendo, nesta crise e no actual comedimento.

Perante uma comunicação social tão ‘positiva’, tão cor-de-rosa, com uma família tão unida, com os detentores dos regulados (públicos) a nomearem os reguladores e os regulados (privados) a dizerem que só não querem é pagar taxas, que de resto é “um passo em frente” (Paes do Amaral), o melhor mesmo, diria eu (a todos os que tiveram paciência para chegar até aqui) é pedir já o DVD de balanço final de actividade à AACS – não vá esgotar - para o caso de, de vez em quando, dar-nos na veneta e querermos ver como é que é um regulador (perdoem a benevolência) a funcionar…

Ainda sobre o tema:

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Por uma Alta Autoridade para o Audiovisual


Veja-se ainda uma síntese da ERC/2006:

ERC: das dependências às incompetências (serviço clipping)
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