29.5.04

Miragens Digitais (*)

Como não perder a arte dos pequenos passos perante os espantos da globalização? Ou como entender que prevaleça o nepotismo da opinião quantificada, rateada, retirada, no fundo, a quem não foi dada, muito provavelmente, a possibilidade de construir a sua própria opinião? E como não imaginar que a Net pode não exorcizar esta crua realidade, reforçando os conceitos de interacção e interactividade como controlo social, isto é, como uma forma de coercividade em que os indivíduos, aceitando de forma não reflexiva as opiniões integrantes do «two step flow» da era digital, adaptam assim o seu comportamento às atitudes predominantes sobre o que é aceitável ou não?
Estas algumas das questões prévias que se poderiam colocar quando o tema em debate se refere à chamada democracia electrónica. Daí que a disseminação do acesso ao digital possa não significar o alargamento do conceito de participação e a sua consecução efectiva, mas apenas uma nova forma de aceder a velhos modos de discriminação e de dominação.
Assim, antes de abordar mais em concreto os tópicos desenvolvidos por William Dutton, procurarei enunciar de forma sintética algumas preocupações centradas em torno das miragens do digital.


I. Telerealidades: o que se perde, o que se esquece


Telerealidade, memória, esquecimento são alguns dos parâmetros centrais do dispositivo comunicacional clássico e «pós-clássico». Tal como, aliás, a sua instrumentalidade, o seu regime logotécnico e a sua performatividade, o seu «fazer» ao dizer.
No campo dos media clássicos, as duas últimas dédadas do século foram marcadas pela fragmentação dos grandes sistemas comunicacionais, o que determinou, de facto, o fim da inscrição dos consensos como forma de agenciamento específico, designadamente da máquina televisiva monopolista, produtora de identidades, ela própria palimpsesto neutralizador, dispositivo abstracto de enunciação. Mais do que uma interacção entre usos e gratificações, suceder-lhe-ia uma lógica de indiferença que deriva da virtual multiplicidade das escolhas centradas nos novos gadgets comunicacionais de final de século.
No âmbito das discursividades, quer se trate da recomposição ou da fragmentação do real, no écran televisivo redimensiona-se o tempo e o espaço, sendo improvável a possibilidades de contemplarmos uma imagem. É afinal o fluxo de imagens que nos «contempla». É este excesso que neutraliza também as condições de possibilidade do exercício arqueológico da memória. O esquecimento é imposto por esse excesso, por esse fluxo desordenado que torna impossível restituir a continuidade perdida da experiência ou tão somente de uma história narrada. Trata-se em síntese de um fenómeno de indiferença resultante da errância de que a um outro nível a contaminação do discurso por formatos e géneros constitui o paradigma central. Donde, o paradoxo da crise dos consensos, que, no limite, alterna entre uma lógica de indiferença e uma lógica normativa. No fundo, o que poderia ser um extraordinário meio de democracia directa pode converter-se de facto em instrumento de opressão simbólica.
Uma outra normatividade prende-se com a lógica da telerealidade que reconfigura a natureza dos media, concedendo-lhes a dimensão hiperreal de que fala Paul Virilio. A televisão molda o acontecimento ao seu dispositivo, adequa-o ao seu regime tecnodiscursivo, cuja finalidade, ao contrário da experiência do «directo», é deixar aparecer o que de seguida se esquece. Deparamo-nos assim de novo com o diferendo: deter a história, possuir a prova, mas não conseguir superar o facto de o homem se constituir por uma faculdade activa do esquecimento, como dizia Nietzsche, por uma espécie de recalcamento da memória biológica, entregando-se aos sistemas da crueldade, aos inventários domesticadores, emergindo estes como traços inelutáveis da contemporaneidade. Um campo de espectros, em processo de reconversão digital: a política é fundada sobre o esquecimento, o que permite todas as reescritas da história e a emergência de novos ciclos de reapropriações. Como tenho referido, o esquecimento gera então o monstro e nessa denegação do acontecimento, novos holocaustos aguardam a sua hipertelia.

II. Da arte dos pequenos passos

Não muito antes da Internet, ao princípio, era o verbo. A grande cesura situava-se então no plano dos signos e dos códigos convencionais. Para Platão, como se sabe, a escrita não era mais do que um simulacro do real. A escrita surgia assim como fim da techne. Os hard media a tanto obrigavam. Essa delegação do saber na escrita era assim uma perca do sujeito, e evoluia para uma mnemotécnica que desabituava do «esforço interior», e criava um saber não reflexivo como nas sociedades de cultura oral. O arbítrio do déspota tinha agora que enfrentar não a sobrecodificação mas o fluxo desterritorializado de escrita e doravante a dominação far-se-ia cada vez mais no espaço e já não no tempo. Assistiu-se então ao predomínio da técnica autoritária sobre a techne, sobre a técnica democrática, também à legitimação do discurso segundo a performatividade dos seus enunciados. E à revisão da história num mundo de narrativas, de tecno-imaginários, sendo a transparência da comunicação uma espécie de novo cárcere.
As fábricas de sonhos - dos imaginários à política e aos media -, tornam-se num admirável mundo, numa realidade modelizada e hiperreal que se configura sobretudo como dispositivo comunicacional totalizante. Esse ruído, essa sobreinformação, é, no fundo, uma crise de solidariedade entre o sentido e a experiência.
Da techne perdida chegou-se ao messianismo científico-tecnológico que por sua vez arrasta consigo os novos mensageiros de práticas minimalistas, singulares, locais, centradas sobre o homem e os seus contextos. No domínio essencial da comunicação do que se trata é então de libertar as sujectividades e a experiência do «local», centrada agora nos novos poderes dos fluxos à escala do homem, não como terminal, mas como nómada.


III. Da ordem interactiva simulacral


Eis-nos então chegados à ordem interactiva, mirífica salvação dos deserdados do ciberespaço. Importa aqui pensar se a interactividade se fica apenas no seu registo técnico, saber se ela não será mais do que a metáfora da sociedade da abundância tecnológica tornando-se a miragem da sociedade das proezas tecno-sociais, como referia Manuel Castells.
Entramos assim na era do transpolítico, das sombras do tempo que caminham mais rápido que os seus próprios passos. Numa modernidade que se recompõe por adições complexas: o movimento mais a incerteza. Ou por oposições definitivas: o mundo da vida mais o sistema da eficácia. De onde resultam as crises do paradigma do progresso, as passagens da finalidade à hipertelia; dos equilíbrios orgânicos aos seus clones; dos (des)equilíbrios pelo terror; da legitimação pela representação ou pelo êxtase do real.
Nesta violenta mutação joga-se uma ruptura dramática no dispositivo comunicacional e nesse aspecto o controlo do virtual é decisivo para que a nova telépolis não fique exposta aos olhares da insondável totalização e às suas maquinações.
Os novos media preparam, no fundo, uma outra convergência - a dos neurónios com os chips, procurando exorcizar de certa maneira as fobias bio-tecnológicas. Na era do mundo de possíveis que a tecnologia disponibiliza, o inumano pode ser a modelização, a clonagem. Mas o facto é que onde está o perigo está aquilo que liberta.
De qualquer forma, a crise do paradigma do progresso, as excrescências de uma modernidade continuadamente em crise - das limpezas étnicas às mortes «limpas» -, enfim, as obscenidades e o êxtase verificados pelas hipertelias do que está para além da ordem natural das coisas, são parâmetros a levar em conta no novo dispositivo comunicacional e societal. Através deles verifica-se de algum modo a colonização do mundo da vida, do lebenswelt, pelo sistema da eficácia e por um regime simbólico que é de algum modo apocalíptico, embora numa dimensão não antropológica - a elisão do corpo (da experiência) pelo sujeito estatístico, ou pelos seus algoritmos. A própria legitimação do político emerge a partir do «outro», pela representação e pelo desempenho mediático. Estamos, portanto, perante diferentes crises antropológicas - de legitimação dos saberes, da representação, e do social.
Mas perante os perigos da interactividade técnica, ou perante os mitos da «cibernação» e das naturais miragens do digital, há uma realidade que permanece como espécie de vírus: a empatia pelos fluxos, pelas logotécnicas televisivas, pela gratuitidade da desagregação brutal do tempo nas reduzidas dimensões de um qualquer pequeno écrã, ou de uma qualquer entidade terminal, denotando ainda essa irreconciliável tensão entre tecnociência e singularidades.
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IV. Da exclusão na acessibilidade

Finalmente, o «défice social», ou seja, uma certa secundarização da questão da «alteridade», dos «outros» no processo de radicação das infotecnologias, não só em relação à oposição «local» versus «global», mas também no que concerne a formas mais violentas de exclusão, isto é, em relação aos sectores mais vulneráveis da sociedade.
Uma SI e um transpolítico indiferente às margens que eventualmente pode criar, no sentido em que essa miragem, essas proezas da técnica, esse mirífico «ciberespaço», mais do que um espaço virtual de poder absolutamente aberto, ou mais do que uma «tirania da telepresença» (numa leitura essencialmente crítica), pode configurar um novo cárcere, uma nova exclusão, a mais dramática das exclusões da era pós-industrial.
Prefigura-se, nessa medida, um quadro de desenvolvimento infocomunicacional que deverá ter como objectivo estratégico o investimento nas diferentes periferias, conduzindo a uma progressiva superação das margens, fazendo emergir os «localismos» - e o homem - à dignidade da sociedade global, combatendo todas as formas de «info-exclusão» e ainda o mito da interactividade técnica como modelo societal e de cidadania.
Sociedade de Informação, portanto. Convirá talvez ver, finalmente, como tem vindo a ganhar corpo a caracterização da Sociedade de Informação. Em meados da década de 90, de acordo com deliberações tomadas no G7, a transição para a SI deveria contemplar, nomeadamente: a interacção global das redes de banda larga; a formação e educação transculturais; o apoio a bibliotecas, museus e galerias de arte electrónicas; a gestão do ambiente, dos recursos naturais, da saúde; a interligação entre administrações públicas; a execução de um inventário global multimedia sobre projectos e estudos para a promoção e desenvolvimento da Sociedade Global de Informação.
Da mesma maneira, pode ler-se nas propostas do Fórum Europeu para a Sociedade da Informação: permitir que a SI se transforme numa sociedade educativa ao longo de toda a vida; combater a exclusão na SI; modernizar a prestação electrónica dos serviços públicos; envolver os cidadãos na revitalização da democracia; desenvolver acções de consciencialização do grande público sobre a SI; estimular o crescimento dos mercados para novos serviços interactivos e para o multimedia; aproximar empresas e escolas para colaborar na produção de novas campanhas exigíveis pela SI; e, last but not the least, fomentar a emergência de uma segunda Renascença com base na SI, com relevo para o estímulo da criatividade, da descoberta científica, do desenvolvimento cultural e da coesão comunitária. Desenhar um futuro de criação de emprego e de desenvolvimento sustentável.
Seguindo este discurso apologético, alguns anos depois da sua enunciação, vê-se agora o seu vazio de conteúdo. Tratar-se-ia, porventura, de um novo paradigma comunicacional e experiencial, caracterizado por um modelo que pode democratizar efectivamente os meios e as mensagens, dando a cada cidadão a capacidade de ultrapassar a sua condição limitada de consumidor ou de espectador e passar a ser um destinador, um sujeito operativo, reflexivo, participativo.
Com todos os desafios que daí decorrem, o primeiro deles não será o menos saliente e provavelmente o mais problemático: a nova era comunicacional vai certamente não só radicalizar as distâncias entre os inforicos e os infopobres, como vai também fazer novos analfabetos, os novos iliteratos da era digital. O novo campo de mediação repõe de uma nova forma a questão da dominação e do político, e evidencia novas microfísicas de poder disseminadas parcialmente pelo corpo social mas geridas sobretudo pelo poder das redes e dos fluxos.
São questões que devem ser ponderadas, justamente, em função de um modelo participado e aberto no plano da experiência, e designadamente da experiência do «outro» e das periferias, como alternativa ao modelo da «massificação» na era clássica do campo dos media, mas também, como advertência às eventuais hipertelias que a sociedade da informação deixa antever em tudo o que se refere a um outro vector da «massificação» - precisamente o que tem a ver com o consumo reduzindo as subjectividades à lógica «comercial» da globalização.
Há que ver que se a economia da sociedade da informação é global, os indivíduos continuam a ser «locais», o que significa que existe de facto um abismo entre a globalidade da riqueza e do poder e a experiência local. A Net é um espaço virtual de poder que terá uma participação activa na evolução das sociedades representativas para as sociedades solidárias e participativas. Nessa medida, a Internet é a rede vital, estratégica, mas a questão aqui está em saber como se domina o novo alfabeto quando o velho código convencional de escrita continua inacessível à maioria dos portugueses atingidos por essa realidade dramática chamada analfabetismo e iliteracia.


V. Uma possível síntese: do poder dos fluxos aos fluxos de poder

Centrando-nos finalmente mais em particular na comunicação de William Dutton e na reflexão feita em torno das questões aqui levantadas de forma aleatória e a partir de diferentes enfoques, deve reconhecer-se que tendencial e progressivamente a democracia electrónica pode constituir um factor de reforço dos fluxos de poder face ao poder dos fluxos. Isto é, de reforço da autonomia do cidadão no quadro de uma experiência democrática mais participada.
Uma das questões centrais nesta evolução é a acessibilidade, que em determinados aspectos, e em particular no campo das redes, pode ser vista no quadro da manutenção de um «serviço universal», que a prazo poderá ser ainda de complementaridades entre redes, a que os cidadãos têm direito - assim estejam criadas as condições para a facilidade no acesso à informação, aos conteúdos culturais, aos arquivos, enfim, às redes.
Na esfera politico-partidária, os guias electrónicos dirigidos ao eleitor podem trazer uma maior transparência à actividade política, uma presença constante dos protagonistas e ainda mais informação. Neste âmbito, e apesar dos riscos, a Net pode ser um forte potenciador de uma experiência política mais participada, mais partilhada. Da mesma forma, a Net pode potenciar a interacção social e a partilha de solidariedades. Deram-se alguns exemplos: a campanha Stop the Overlay em Los Angeles e a campanha Por Timor, no final de 1999, em Portugal.
De um ponto de vista teórico, os media interactivos sucedem aos media clássicos repondo algo que estava perdido: justamente, a bidireccionalidade, isto é, o fim do «escutar sem ser escutado». E essa é uma revolução civilizacional que só encontra correspondência na introdução do alfabeto na História (o mesmo é dizer, na introdução do Estado, do mercado, etc.). O que significa que a nova era digital será mais fortemente comunitária e menos primitiva… Isto, claro, desde que esteja garantido o essencial, ou seja, o controlo do virtual por parte do cidadão. Essa é, afinal, a questão das questões. Mas tal como nos outros casos referidos, também aqui onde está o perigo está aquilo que salva. Isto é, onde estão as bases de dados pessoais, onde está a colisão com a privacidade, estará, queremos crer, também o seu controlo. Como projecto mais geral fica a ideia da necessidade de recentrar a questão da interactividade na cidadania e no acesso, já que centrada está ela demasiado na economia. Daí, de facto, que a disseminação do acesso ao digital possa não significar o alargamento do conceito de participação e a sua consecução efectiva, mas apenas uma nova forma de aceder a velhos modos de discriminação. Como diz Bragança de Miranda, as teses da globalização são uma pálida imagem do que está em falta: a possibilidade de um universal humano que se realiza politicamente. Ou como Esther Dyson referiu, aliás, o impacto da Net, através das possibilidades infinitas da comunicação electrónica bidireccional transformará radicalmente as nossas vidas: absorverá o poder dos governos centrais, dos meios de comunicação e das grandes empresas. Pelo contrário, uma visão menos céptica deste desenvolvimento permite acreditar na continuação da afirmação da opinião pública no campo social na modernidade, agora já não em termos de espaço público, mas em termos de ciberespaço. O que pode também significar uma progressiva autonomização do cidadão e uma consolidação de novos processos democráticos, mais participados, mais partilhados, mais solidários.
Na Net - e nas redes e nos sistemas de informação -, deverá também permanecer uma nova memória, cada vez menos feita de esquecimentos. Há embora a notar que se o grande arquivo digital pode ser a carta que precede o território, a verdade é que a informação facilmente passará de uma presença virtual a uma não-presença, emergindo assim uma nova censura, não já a da raridade dos textos, mas antes a da obsolescência da informação.
A interposição de uma logotécnica biunívoca e multimodal neste novo sistema potencia, por assim dizer, as suas virtualidades de forma exponencial. A aparente limitação, ou mesmo subordinação, do mundo de possíveis da poiética cinematográfica - ou das videoplastias - à lógica algorítmica, é reconvertida na sua própria disponibilidade em tempo real. O «esquecimento» torna-se memória e, virtualmente, todos acederemos, de forma descontinuada aos interstícios dos saberes. Que será, no fundo, o repositório global da informação, do saber, da arte e da ficção, isto é, o património fundamental do conhecimento.
Por outro lado, a lógica hipertextual, as contínuas recorrências e navegações, podem configurar porventura a contextualização e a organização de uma realidade, mas dificilmente deixarão submeter à ordem da técnica a lógica do utilizador. Poder-se-ia inclusivamente prever que a iconicidade dos novos sistemas multimedia reenviam para ideografismos que repõem o excesso de objecto que a sobrecodificação veio reprimir. As novas navegações interactivas serão, assim, nesta visão porventura idílica, uma nova libertação face à lógica unívoca do sistema mass-mediático predominante neste século XX. Doravante não fará, por isso, muito sentido, pensar as linguagens clássicas, mass-mediáticas, enquanto sistema estratégico de narratividades específicas. Essa impossibilidade remete, aliás, para a identificação dos próprios limites desses mesmos processos narrativos clássicos. O novo complexo multimedia interactivo configura-se numa nova discursividade, na qual, ao contrário dos sistemas clássicos, cada um de nós terá a sua própria expressividade. Pensar as novas linguagens e técnicas do multimedia, hoje, requer de facto uma reflexão sobre as práticas, estratégias e tecnologias do novo campo comunicacional, já não apenas enquanto sistema repartido entre grandes famílias mediáticas, concentrando meios, uniformizando fluxos, instituindo novas legitimidades, mas enquanto abismo desse modelo. Como referia Virilio, o ciberespaço pode ser não uma evolução da democracia mas antes uma tirania vigilante clássica, mas não duvidemos é que há, como se viu, novas experiências participativas pela construção de uma democracia electrónica, certos, sempre, de que onde está aquilo que liberta está também o perigo que espreita.



* A propósito da conferência de William Dutton «Networked Citizens and e-Democracy»
in Os Cidadãos e a Sociedade de Informação, Actas da Conferência promovida pelo Presidente da República, Lisboa, INCM, 2000)

Referências bibliográficas

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22.5.04

Narratividade vs. interactividade – do linear ao multi-linear

Nesta comunicação procurar-se-á pensar e discutir o contexto da transição do analógico para o digital no quadro emergente de competências e de conceptualização não-lineares e multi-lineares, face à presença pouco permeável e territorial dos códigos convencionais da linearidade. Reflexão que tem em vista problematizar as lógicas de migração dos meios de comunicação de massa, do audiovisual e do seu discurso clássico, para o multimédia interactivo.


1. Dispositivos lineares e politópicos

Desde logo a questão da escrita. Há uma fractura a registar no acto de fundação da escrita, que é justamente o momento em que a expressão gráfica se subordina à expressão fonética pelo uso do dispositivo linear – processo a que Deleuze chama de ‘ruptura no próprio mundo da representação’ 1 .

É o fim da inumerabilidade do signo e o significante torna-se "despótico". Já para McLuhan a assimilação da ‘tecnologia’ do alfabeto fonético transfere o homem do mundo ‘mágico’ da audição para o mundo ‘neutro’ da visão.

Para trás ficam os geo-grafismos, o território de ressonância da inscrição, do código e da marca primitiva. No novo regime «a boca já não fala, bebe a letra. O olho já não vê, lê. O corpo não se deixa gravar como a terra, prostra-se em frente das gravuras do déspota, a outra terra, o novo corpo pleno» 2 .

Importa então analisar, nesta arqueologia da alfabetização do olhar (narrativizado, linear, táctil), tecnologias do olhar e estratégias que se produzem na espacialidade, no político, na estrutura do espaço figurativo, nos corpos.

E procurar perceber porque é que desde Cézanne se abandonou o visual em favor dos modos lábeis (e audiotácteis) da experiência. E, por acréscimo, problematizar o papel que tiveram o alfabeto e a tipografia, as mediações simbólicas e tecnológicas, na atribuição da função emergente do sentido da visão na linguagem e na arte.

Por exemplo, com a escultura grega arcaica é já claramente uma concepção antropomórfica que ameaça querer constituir-se como centro do campo representativo. A própria mitologia refere Dédalo como o primeiro a dar vida aos corpos de mármore, o artista qui deorum simulacro primus fecit, o criador das estátuas «o primeiro a abrir-lhes os olhos, a descerrar-lhes os lábios, aquele que lhes alargou as pernas, desprendeu os braços do corpo, soube infundir-lhes vida, de tal modo que pareciam mover-se, caminhar, olhar, respirar» 3 .

Na Grécia, numa primeira fase, a plástica arcaica não é ainda da ordem da mimesis como viria a ser a escultura imperial em Roma no século de Augusto, ou mesmo a escultura helenística tardia: «a escultura arcaica grega, fundamentalmente constituída por imagens de divindades, por deuses antropomorfizados, filiava-se sem dúvida numa poiesis.» 4

Este é de facto o período em que se começa a notar como que uma progressiva hemorragia do simbolismo. Fenómeno que não se verificará somente no domínio da arte. Lévi-Strauss diria (entrevista a Georges Charbonnier): «Un ethnologue se sentirait parfaitement à son aise, et sur un terrain familier, avec l'art grec antérieur au Vè siècle et même avec la peinture italienne quand on l'arrête à l'Ecole de Sienne. Là où le terrain commencerait à céder sous nos pas, ce serait donc seulement, d'une part avec l'art grec du Vè Siècle, de l'autre, avec la peinture italienne à partir du Quattrocento» 5 .

O progressivo desaparecimento da função semântica da obra, verifica-se, assim, no contexto de uma aproximação «de plus en plus grande du modèle qu'on cherche à imiter, et non plus à signifier» 6.

É pois este movimento da ordem da mimesis sobre a poiesis, que se poderia ver como um «desperdício dos símbolos da linguagem» (Leroi-Gourhan) ou como pura «evaporação do sentido da obra» (Gilbert Durand), que nos remete exactamente para a fundação de um regime disciplinar do olhar, de uma ‘aptidão de ver’ que é em si mesma uma exclusão.

Afinal, desde o século XIII, as artes e a consciência já não se propõem reconduzir a um sentido, mas sim ‘copiar a natureza’.

O novo modo de representação, isto é, este regime analógico (de analogias), emerge do próprio aristotelismo: «A poética de Aristóteles, que será a Bíblia da estética ocidental até ao romantismo, repousa essencialmente sobre a noção de imitação. A imitação não é mais do que a extrema degradação da redundância.» 7

A construção pictural dos Gregos teria respondido à organização da cena fundada sobre a multiplicidade dos pontos de vista, espécie de multi-linearidade avant-la-lettre (tal como surgirá, no teatro, a cena politópica antiga e medieval), enquanto que a pintura da Renascença vai elaborar um espaço centrado («A pintura não é mais do que a intersecção da pirâmide visível seguindo uma distância dada, um centro fixo e uma determinada luz» - Alberti) em que o centro coincide com o olho que será justamente chamado por Jean Pélerin Viator (De Artificialis Perspectiva, 1505) de ‘sujeito’ 8 .

Não é só, no entanto, a concepção do espaço que muda radicalmente. Há um imenso movimento de descontextualização a atingir a Europa nos séculos XV/XVI. «Tudo sofre uma reviravolta: o tempo liberta-se pouco a pouco das redes simbólicas e, deixando de se medir pela vida humana, e pelos ciclos astrais, tende a tornar-se a medida de todas as coisas. Agora é o espaço que será medido pelo tempo. A geometria torna-se a linguagem da nova temporalidade». 9

Com o Renascimento, o espaço deixa de dominar para ser dominado; a própria espacialidade encontra uma lei. Ao nível da arquitectura, com Brunelleschi, pela primeira vez, o edifício deixa de possuir o homem, para ser este, aprendendo a lei simples do espaço, a possuir o seu segredo.

Dominado o espaço, emergem as figuras de ficção e a representação imaginária. Mas dominando o espaço, o homem deixa também dominar-se por ele. Centramento e descentramento são já aqui uma luta de contrários. A própria imagem do homem muda com a concentração no espaço fechado que é a cidade - a ville-machine, ou a ville-matrice. O ‘olho-sujeito’ transforma finalmente a terra-mãe em terra-objecto, território sobrecodificado, para ser a partir desse novo modelo centrado que se geram novas produções de sentido.


2. Da narrativa ‘teleológica’ ao anti-narrativismo

A história da narrativa começa por ser a história de um fluxo linear de escrita. Da cultural oral ficava-nos fundamentalmente a referência a um complexo processo enunciativo: os Poemas Homéricos (espécie de ‘storyspace’, dúctil e múltiplo’ 10) através de sucessivas interpolações e reconstruções generativas (sensivelmente do século XX a.C. ao século VI a.C.).

É sabido que para Aristóteles a origem da tragédia estava já contida na estrutura narrativa dos Poemas. Eles «são, por exemplo, o modelo, directo ou indirecto, de toda a poesia épica subsequente e influem consideravelmente na lírica (…)»11, tendo sido fundamentalmente um dos raros sistemas enunciativos de «reificação» de uma história mnemónica, oralizada,

Recorde-se Aristóteles e a sua Poética 12 : «L'historien et le poète, ne diffèrent pas par le fait qu'ils font leur récit l'un en vers, l'autre en prose. On aurait pu mettre l'oeuvre de Hérodote en vers et elle ne serait pas moins de l'histoire en vers qu'en prose. Ils se distinguent au contraire en ce que l'un raconte les événements qui sont arrivés, l'autre des événements qui pourraient arriver. Aussi la poésie est-elle plus philisophique et d'un caractère plus élevé que l'histoire car la poésie raconte plutôt le géneral, l'histoire le particulier».
A questão da narrativa histórica sempre preocupou Ricoeur. Em Histoire et Vérité (1955) abordava já a crise da história e do conceito de verdade de um ponto de vista hermenêutico. Mais tarde, em A Metáfora Viva (1975) considera a metáfora como o poder através do qual o discurso pode reescrever a realidade, de uma forma «suprema», aliás.
A grande obra de Ricoeur, Temps et Récit, aprofunda a questão do acto de narrar e a reciprocidade entre narratividade e temporalidade. Considera a narrativa como a guardiã do «tempo», uma vez que a experiência temporal apenas pode ser narrada.
Na análise da narratividade, do que se trata é de pensar um «impossível» (precisamente o acto de narrar), é de reunir as formas e as modalidades do jogo de narrar, disseminadas em géneros literários cada vez mais específicos, separados em narrativas com uma pretensão à verdade e em narrativas que a não têm.
A unidade funcional deste campo espartilhado é o seu carácter temporal. A narrativa é uma re-figuração da experiência, que, no fundo, contém já em si própria uma estrutura pré-narrativa, feita de «histórias» que procuram ser narradas. A questão é, afinal, a identidade entre a narrativa do ‘real’ e a narrativa de ficção. Desta forma, tratando a qualidade temporal da experiência como referente comum, Ricoeur constitui um problema único, a saber, ficção, história e tempo, filiados na muthos aristotélica, na mise-en-intrigue clássica, na selecção/distribuição teleológica dos acontecimentos e das acções narradas.
Sendo certo que na vertigem dos traços, dos fragmentos, das cintilações, e até dos nomadismos não-lineares e descronologizados a narrativa descreve de modo mais poiético e essencial aquilo a que se convencionou chamar ‘o real’.

A questão está então na dificuldade em superar os ‘teleologismos’ lineares e em retomar a ordem politópica da representação ‘figurativa’ na própria narrativa.

E não basta pensar, como sobre o Quixote, que o romance é o único género a poder traduzir as tendências evolutivas do mundo em devir e a infinitização do discurso: «C'est dans le roman seulement que le discours peut révéler toutes ses possibilités originales et atteindre à des profondeurs réelles.» 13

O final do século XIX e início do século XX bem como os modernismos marcam alguns dos limites da linearidade, com exemplos que vão, desde a emergência da pintura face à fotografia e suas consequências, à emergência do cubismo face aos paisagismos do século XIX, passando pelo cinema com a montagem das atracções de Eisenstein, passando por James Joyce e indo até Michel Butor ou Jay Bolter.

A segunda metade do século fica, para além do mais, marcada por movimentos múltiplos desconstruccionistas, da teoria das catástrofes às descontinuidades foulcautianas.

Mas se a narrativa clássica é fundamentalmente um fluxo linear de escrita, a narrativa interactiva e o hipertexto pretendem ser outra coisa e quando aplicados à dimensão ficcional, não são fluxo, nem tão pouco são lineares. Marcos Palacio 14 propunha, por exemplo, a multi-linearidade do hipertexto, em contraposição à uni-linearidade do texto tradicional.

Há no entanto uma dificuldade que se mantém não só face ao multimédia interactivo em geral, mas em particular ao storytelling dos modelos interactivos, trate-se ou não de ficção: a dificuldade de conceber lógicas potenciadores de interacção no plano do modelo de interface, da mise en intrigue interactiva e da base de conteúdos, e de as adequar aos seus públicos específicos e eventualmente mesmo ao público em geral, o que tem resultado na verificação de um obstáculo difícil de transpor – pensar/conceber a formatação multimédia dos conteúdos interactivos ainda (dir-se-ia: sempre) com uma forte dependência conceptual do analógico…

Como resolver? Eventualmente, despertando o ‘chip’ que há em nós… ou que progressivamente começa a haver em nós. Mas essa é a dificuldade maior, que se prende sem dúvida com a inversão de um modelo cultural milenar, pós-alfabético.

Para além dos autores habitualmente referenciados, no plano sobretudo anglo-saxónico, alguma pesquisa tem sido feita entre nós nestas áreas. Vejam-se os trabalhos de José Augusto Mourão e também um interessante texto de Patrícia Valinho recentemente editado, «TV Interactiva: ao encontro de um novo utilizador». Neste texto, Patrícia Valinho 15 trabalha, a partir de Janet Murray, uma das possibilidades de convergência entre a narrativa digital e a televisão interactiva: o hyperserial. Formato que traz, nas suas palavras, uma maior sustentação à narrativa digital e à televisão interactiva dado que vem resolver alguns constrangimentos de interactividade - e consequentemente de acessibilidade e usabilidade dos conteúdos.

Mas outros exemplos podem ser referidos no quadro do equilíbrio entre televisão e narrativa digital: veja-se o «Pyramid Challenge», uma série da Sky Digital, programa que engloba três componentes distintas: o jogo interactivo, a narrativa interactiva e o documentário. Veja-se o modelo de ‘autoria’ ‘Storyspace’, de Michael Joyce e Jay Bolter.

Mas os avanços não são de facto suficientes para falar de um modelo novo de televisão «(…) intuitivo e simples, facilmente adaptável a qualquer utilizador», como refere Valinho. Importa então deixar aberta a dimensão politópica, da não-linearidade à multi-linearidade, mesmo quando, como acontece com Fallout 2, «a narrativa segue, quase que passo a passo, os modelos clássicos, tanto na construção do herói, quanto na construção do mito trágico em si (…). Assim, este jogo, pode possuir diversas linhas narrativas, pode-se dizer até, que a quantidade dessas linhas é infinita. Mas, não importa quantas voltas e nós essa linha possua, nem quantas linhas estejam a ela ligadas, ela continua sendo uma linha.» 16.


3. Da ordem da indústria e da tecnologia

A ordem da técnica impõe no último quartel do século XX a transição progressiva do analógico para o digital, não sem que antes os meios de comunicação de massa se arrogassem o direito de produzir modelos interactivos a partir de canais de retorno complementares, como o telefone, por exemplo. Isso sucedeu fundamentalmente na rádio e na televisão, nos anos 60 e 70.

Mas às primeiras experiências rapidamente sucedem as grandes utopias. Falava-se no final dos anos 80 nos "vídeo-servers" do século XXI, nos grandes catálogos, nos videogravadores virtuais, imaginando-se a disponibilização da "videoteca universal" cumprindo a utopia de Borges passando o "mapa" a ser idêntico ao território. Utopia aliás, em vias de concretização precisamente neste início de século XXI com o Google Video e o Yahoo, que permitirão procurar um arquivo cada vez maior de conteúdos vídeo, e que estão claramente à conquista do arquivo global, numa primeira fase com os muitos milhares de programas que as televisões emitem diariamente e depois com a universalidade das imagens em movimento, dos ‘home channels’ e dos vídeo blogues às velhas redes generalistas com as suas janelas online.

Em termos de mass media, a transição para o digital, na perspectiva mais precisa da interactividade, é imediatamente visível na televisão. Desde logo no plano da interactividade restrita, com canal de retorno complementar, e mais tarde mesmo digital, tudo começa por volta dos anos 70, com a experiência Qube, lançado pela Warner nos EUA, em Dezembro de 1977. Era então um sistema de televisão que de certa maneira correspondia à tendência dos anos 70 para uma maior individualização do consumo de televisão e do consumo através da televisão. Recordem-se nomeadamente os sistemas on demand e o home shopping – como o QVC (Quality, Value, Convenience) e a HSN (Home Shopping Network) que desde cedo se tornam uma autêntica indústria nos EUA, uma indústria que reúne dois dos pas­satempos preferidos dos americanos: o con­sumo e a televisão.

No Canadá surgia o projecto Videotron / Videoway, no Canadá alargado depois aos E.U.A. e tam­bém ao Reino Unido. Através do teleco­mando e de início com o complemento telefónico eram fornecidos serviços de modo bi-direccional. Existia um ter­minal telemático (telecompras, telebanco, tel­ereservas), um terminal domótico (televigilân­cia, telegestão de equipamentos), correio electrónico, com comunicação entre os difer­entes utilizadores e um fornecedor de serviços. Existia também o acesso a catálogos ou bancos de ima­gens digitalizadas combinadas com bancos de dados. O assinante podia jogar no casino virtual, consultar o astrólogo, ler jornais electrónicos, etc.

Depois surgem as primeiras experiências da Time Warner no sistema de pay per view em Queens e Brooklin, lançadas em Dezembro de 1991. Um terço dos 150 canais de rede integravam serviços de video on demand, telecompras, serviços financeiros, informação médica, formação profissional e pay per play - jogos vídeo).

Pouco depois surgia a experiência de Orlando, na Florida, também da Time Warner, Era um sistema on demand, designado por Full Service Network (FSN). Entre os diversos serviços podia contar-se o video on demand, jogos video em pleno écran e tempo real, bases de dados, telecompras interactivas, educação e formação ao domicílio, serviços de comuni­cação interpessoal, etc. Foi mais um projecto-piloto que não teve a sequência desejada, tendo, na mesma altura (anos 1992-93) envolvido um orçamento superior ao do lançamento de uma estação privada de televisão em Portugal, cerca de 15 milhões de contos. Com um total de quatro mil lares aderentes, este projecto experimental lançado por aquele gigante da comunicação, pretendia testar um serviço de televisão interactiva onde não faltava nada: dos filmes em video-on-demand, que é o serviço de maior sucesso, aos telejogos. As dúvidas em relação a este sistema interactivo da Time Warner colocavam-se designadamente em relação à lentidão da rede e à sua alegada frequente inoperacionalidade (para testes, modificações, estudos, etc.).

A interactividade emergiu depois com um menu muito alargado de serviços, produtos e conteúdos, num registo técnico que poderá não ser mais do que a metáfora da sociedade da abundância tecnológica e da própria democracia, menu que deixava crer, no entanto, que o mundo das proezas tecno-sociais estava aí, com um conjunto de serviços que aparentemente introduziam e naturalizavam o próprio conceito.

Tem-se regularmente chamado a atenção para o facto de se registar uma certa frustração em relação à anunciada televisão interactiva nos grandes mercados mundiais, designadamente norte-americanos, europeus, mas também japoneses, australianos e de Hong-Kong. É um facto que os principais projectos não têm decorrido da melhor forma. Para a televisão interactiva é ainda claramente o tempo da experiência. A falta de entusiasmo pela televisão do futuro, fica a dever-se a uma certa descoordenação entre a inovação tecnológica propriamente dita, as expectativas e capacidades do consumo e a própria conceptualização e produção de conteúdos para multimédia interactivo. De facto, os media sedutores mas não transaccionais davam lugar aos media transaccionais mas pouco sedutores.

As próprias questões específicas da ‘escrita interactiva’ deixavam todas as dúvidas em aberto sobretudo ao nível da congruência do conceito e da coerência dos percursos múltiplos: «Tous les concepteurs de produits, amateurs, professionnels ou pédagogues marchaient sur la même voie : celle du récit, de la narratologie, de l'écriture au sens sémantique, créatif et littéraire du terme ; leur objectif était bien de construire du sens à partir d'éléments épars et éclatés que l'interactivité, via l'écran perçu comme le lieu du montage de ces mêmes éléments, devait unir et rendre cohérent, si le scénario était bien écrit. Quel défi ! Quelle audace aussi ! D'ailleurs certains s'interrogeaient sur la faisabilité de ces produits, voire l'existence même des écritures interactives comme le remarque Olivier Koechlin, de l' INA : ‘Verra-t-on apparaître un appareil sémantique, syntaxique et stylistique de l'interactivité, bref, une écriture interactive ?’. (…) la question des "écritures interactives" ne se pose plus de la même façon aujourd'hui. Il s'agit dorénavant de considérer l'interactivité comme un outil d'accès et de manipulation de l'information.» 17


O facto é que, definitivamente, «um dia ninguém nos conhecerá melhor do que o nosso software». E os agentes de Patti Maes, ou outros sistemas inteligentes perseguirão os nossos hábitos, os nossos comportamentos, os segredos nossos que nós próprios teimamos em não perscrutar, enquanto consumidores generalistas ou culturais ou outros, personalizando todo o tipo de oferta, desde os bens de consumo, aos bens culturais… até às ficções interactivas que de repente nos devolvem a sedução dos novos media.

Daí às teias de «informadores» e de interfaces que potenciam modelos avançados de filtragem e de organização da informação vai um pequeno passo. E a questão está então em saber se está concedida ao software e aos seus agentes a capacidade de acrescentar um ponto ao que - e àqueles - que contam um conto, isto é, se a reconstruções generativas que ficámos a conhecer desde os Poemas Homéricos, são, no futuro, o campo fértil de redes e conteúdos ‘neuronais’?


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Notas:

1 Gilles Deleuze e Felix Guattari, O Anti-Édipo, Lisboa, Assírio e Alvim, s/d., p.162.
2 Deleuze/Guattari, op. cit., p. 164.
3 Giovanni Beccati, A Escultura Grega, Lisboa, Arcádia,1965, p.22.
4 Erwin Panofsky, La perspective comme forme symbolique, Paris, Éditions de Minuit, 1976, p.79.
5 Georges Charbonnier, Entretiens avec Lévi-Strauss, Paris, UGE, 1961, p. 69.
6 Charbonnier, op. cit., p.73
7 Gilbert Durand, A Imaginação Simbólica, Arcádia, Lisboa, 1979, p. 35.
8 Citado por Jean-Louis Baudry, «Effets idéologiques produits par l'appareil de base», Cinétique, nº 7/8, 1970.
9 José Gil, Metamorfoses do Corpo, Lisboa, A Regra do Jogo, Lisboa, 1980, p. 103.
10 José Augusto Mourão, Para uma poética do hipertexto – A Ficção Interactiva, Edições Universitárias Lusófonas, Lisboa, 2001.
11 Maria Helena da Rocha Pereira, Estudos de História da Cultura Clássica, I Vol., Cultura Grega, 4ª edição, FCG, Lisboa, 1976, pp. 121-122.
12 Aristóteles, La Poétique, Cap. 9, 51a/b, tradução e notas de Roselyne Dupont-Roc e Jean Lallot, Éditions du Seuil, 1980.
13 Mikhail Bahktine, Esthétique et théorie du roman, Paris, Gallimard, 1978, p. 409.
14 Marcos Palácios, «Hipertexto, fechamento e o uso do conceito de não-linearidade discursiva», http://www.facom.ufba.br/ciberpesquisa/palacios/hipertexto.html.
15 Patrícia Valinho, «TV Interactiva: ao encontro de um novo utilizador», Observatório nº 10, Obercom, Lisboa, Dezembro de 2004.
16 Cf. Eduardo Gomes Hulshof, Estrutura da Narrativa do Jogo Fallout 2 -Um estudo sobre narrativa interativa, http://www.bocc.ubi.pt/pag/_texto.php?html2=hulshof-eduardo-narrativa-jogo-fallout.html.
17 Françoise Séguy, Les questionnements des écritures interactives - http://www.u-grenoble3.fr/les_enjeux/2000/Seguy/index.php

15.5.04

Proto e pós-televisão. Adorno, Bourdieu e os outros – ou na pista da «qualimetria»*

«Quiconque écrit sur un peu de télévision (et non sur «la») se retrouve vite poussé en public à prendre un parti, le plus général qui soit. Comme si la modestie scientifique était incompatible avec l’objet même».
Jérôme Bourdon, in Penser la Télévision



Datando as primeiras emissões de televisão do final dos anos 20, a verdade é que desde essas primeiras emissões de Alexandre Place, em Londres, até ao final do século toda uma complexa história do campo da comunicação ocorreu, múltiplas teorias foram enunciadas, várias rupturas sucederam – soft, mass, self, ciber, ever media, etc. -, mas, em termos mais concretos, o discurso televisivo pouco evoluiu, isto é, a estrutura do dispositivo televisivo resistiu estoicamente, em geral, à inovação do seu modelo técnico-discursivo, isto se atendermos à genealogia da televisão e às suas principais periodizações – proto, neo e pós-televisão.
A «mass-mediatização», ou melhor, a massificação da televisão dá-se ainda em plena «proto-história» do meio. Na Europa, designadamente, com excepção do caso do Reino Unido, é num contexto de monopólio televisivo de serviço público que se verifica a radicação do meio e a sua popularidade e inclusivamente a conquista das grandes audiências nacionais, até então «target» do meio rádio, isto fundamentalmente no pós-guerra.
Poder-se-á dizer que a proto-televisão mergulha as suas raízes mais fundas na evolução tecnológica iniciada pelos daguerreótipos e continuada por um conjunto de cientistas e inventores que consolidaram esse velho mito platónico da transmissão da imagem à distância: Christian May e a fotoelectricidade; Paul Nikow e o disco perfurado; Hertz e as respectivas ondas «sem fios»; Marconi e as primeiras emissões. Finalmente, John Baird e a primeira transmissão de imagens à distância em 1925; e a televisão electrónica de Zworykin.
A Alemanha nazi introduz pela primeira vez na Europa emissões de televisão regulares, muito embora os britânicos tenham tido no final dos anos 20 as primeiras experiências de emissões experimentais. O caso alemão éparadigmático: dominado o país, sob o ponto de vista mediático, pela ordemgoebbelsiana, a televisão acaba por ter uma dimensão relativamente restrita,sendo sobretudo utilizada em regime de «intra-televisão», em circuitofechado no interior do espaço do poder. Mesmo as dificuldades técnicas degestão das máquinas televisivas desaconselhavam o regime totalitário deensaiar qualquer tipo de propaganda através do novo media. Na Alemanha nazi, ao contrário da rádio, a televisão foi um adereço sem consequências.
As primeiras emissões regulares da década de 30, tanto na Alemanha como no Reino Unido, tanto na União Soviética como nos Estados Unidos, em termos estruturais, são muito idênticas às primeiras emissões regulares realizadas pela televisão portuguesa em 1956/57, quase trinta anos depois. E a verdade é que também no fundamental da linguagem televisiva e no essencial da estrutura narrativa, a programação da televisão pública portuguesa no final do século pouco evoluiu face aos dispositivos dos pioneiros. E nalguns aspectos do específico televisivo, como os «directos» ou as conversas gravadas dos grandes comunicadores da história da RTP (António Pedro, João Villaret, Vitorino Nemésio, David Mourão-Ferreira, etc.), houve inclusivamente uma regressão: a televisão deixou as suas charlas linguísticas – e uma certa cultura da inteligência –, para cair regularmente no charco da banalidade.
Portanto, numa época em que se confrontam conflitualmente proto e pós-televisão, o certo é que muitos são ainda os pontos de encontro entre modelos televisivos contraditórios, o que permite identificar uma resistência clara da televisão generalista à sua potencial canibalização pelo novo contexto da multiplicidade da oferta e da interactividade emergente.
Mas se no modelo proto-historico o pedagogismo televisivo acabava por integrar um processo de enriquecimento cultural óbvio através deste meio emergente, a submissão do dispositivo informativo à dominação política do tempo acabava por secundarizar as virtualidades de alguns segmentos da programação. A profunda dependência política da televisão pública europeia, nesta fase, constituía a dimensão crucial e estratégica do novo meio de comunicação social destinado, fundamentalmente, a perpetuar a acção política das democracias conservadoras europeias do pós-guerra e das restantes ditaduras da Europa do Sul.
O modelo BBC passa assim a ser, mais do que um modelo conservador de televisão, um serviço público com a fórmula popular da televisão norte-americana, bastante mais avançada que a Europa nos anos 50. Após 1954, com a criação da Eurovisão, centralizava-se o modelo de intercâmbio de programas entre os diferentes canais europeus, o que originaria uma harmonização dos próprios modelos específicos do dispositivo informativo e dos seus géneros. Nos anos 60 consubstancia-se na Europa a «comunidade planetária» da era dos satélites, que progressivamente se consensualiza e vincula em torno deste modelo fechado. A «mundovisão» acontece em 1962 com o satélite Telstar, continuada em 1965 através do satélite geostacionário Early Bird. Em 1969 a mundovisão concentrava-se nas imagens em directo transmitidas da Lua, em directo. Marcuse dizia então que tinha chegado a «sociedade de massas». A década de 70 vê a proto televisão evoluir para um modelo de neo-televisão, onde o contrato televisivo e os monologismos da paleo-televisão são progressivamente substituídos pelo contacto e a indiferença.
É curiosamente Theodor Adorno (1954) quem desenvolve uma tese que pretende inventariar alguns efeitos considerados «nefastos» da televisão. Adorno refere a «psicologia das profundezas» e as suas estruturas de estractos múltiplos para designar aquilo que ele considerava ser as camadas de significação sobrepostas específicas dos massa media, e em particular da televisão, na compleição da dualidade «mensagem manifesta» vs. «mensagem escondida». Precisamente, os efeitos nocivos da mensagem escondida iam, na sua perspectiva ao encontro das tendências de natureza totalitária, que se alimentavam justamente de «motivações irracionais»: «A maioria das emissões televisivas visa hoje produzir, ou pelo menos reproduzir, a suficiência, a passividade intelectual e a credulidade que parecem concordar com os credos totalitários, mesmo se a mensagem explícita dos espectáculos é antitotalitária». Daí também uma outra sua tese no mesmo texto, retirada a partir da visão da realidade americana: «Quanto mais os estereótipos se reificam e tornam rígidos na indústria cultural tal qual ela é hoje, menos as pessoas são capazes de modificar as suas ideias preconcebidas em função da evolução da sua experiência».
McLuhan, por exemplo, vê como uma espécie de celebração do inevitável o que em diversos autores acabam por ser críticas profundas quanto aos impactes das novas tecnologias da comunicação e nomeadamente da televisão na sociedade. É importante referir algo que em McLuhan não se refere tanto à interacção entre a tecnologia e o social, mas sobretudo às «metamorfoses de sensibilidade» entre a tecnologia e o indivíduo: «Incorporando continuamente tecnologias, relacionamo-nos a elas como servomecanismos» (1964 : 64). De facto, para McLuhan, a galáxia Marconi retoma a ordem visual: «O emprego dos media electrónicos constitui uma fronteira que marca a clivagem entre o homem fragmentado de Gutenberg e o homem integral, da mesma forma que a alfabetisação fonética marcou a passagem do homem tribal, centrado sobre o conhecimento oral, para o homem condicionado pela percepção visual» (1977 : 47). Apesar de considerar os media electrónicos como o fim de um ciclo «cataléptico», McLuhan não deixa de propor que o choque entre a cultura antiga, fraccionada e visual, e a cultura nova, integral e electrónica, provoca uma espécie de eclipse do eu, uma crise de identidade, que pode revestir formas pessoais ou colectivas (1977 : 55), lançando desta forma um pré-modelo de dispositivo que se viria a configurar através de leituras diversas do objecto televisivo. A televisão tem, com efeito, essa faculdade de produzir e reciclar as identidades colectivas, de criar um dispositivo simbólico partilhado, uma vida simbólica comum, o que, em última instância, pode ser visto como uma estratégia de agenciamento de conteúdos e de saberes.
Pensar a televisão e o seu «dispositivo» algumas décadas após Adorno e McLuhan, e também após a «mundovisão», remete de facto para uma impressão que permanece dual, dicotómica, ou mesmo constituída por vários pólos de observação possíveis, o que, a ser assim, remeteria a análise para uma lógica proteiforme que afastaria ainda mais o 'objecto' da leitura que coloca a televisão quase sempre como um instrumento de dominação simbólica.
Os habituais profetismos críticos e mediológicos, as visões catastrofistas dos efeitos sociais e culturais da televisão, têm sido de alguma forma postos em causa por novas realidades políticas que ao longo do século XX foram ocorrendo, a maior parte das vezes impulsionadas pela própria televisão.
Apesar de tudo é um facto que permanece um contrato tácito entre o objecto televisivo e a audiência - um contrato aliás de amplo clausulado, que pode ir da assimilação simples, recolocando o objecto enquanto electrodoméstico, à procura incessante de uma só imagem, através de um interminável zapping.
Concordamos com Jérôme Bourdon e François Jost quando defendem que há realmente um «défice de reflexão sobre a enunciação televisiva» (1998). As etapas marcantes da evolução teorética e analítica sobre o «electrodoméstico» vêm já desde a sociologia funcionalista norte-americana e do determinismo tecnológico e simbólico de McLuhan e vêm até à escola francesa, desde Wolton e o seu profecismo optimista às «profecias» críticas de Bourdieu quando refere que o acesso à televisão está determinado a uma «formidável censura», ou quando discorre sobre as censuras invisíveis da nova ordem simbólica do pós-Guerra, «decretada» pela televisão e pelas audimetrias - «on peut et on doit luter contre l'audimat au nom de la démocrati
e» (1996).
No nosso caso, trabalhámos ao longo dos anos 90 o objecto televisão na complexidade do seu dispositivo (1995 e 1999) : instrumental, logotécnico, performativo, e também numa outra dimensão do seu sistema, o campo da recepção e a lógica das audiências, domínio utilizado já no final da década por Pierre Bourdieu para colocar de novo a televisão como campo simbólico e tecnológico que se auto-recicla recriando a cada momento o seu contrato de audiência, como dispositivo ora consensual ora dissensual, um «dispositivo lábil» (1997), multiforme, na expressão de Noël Nel. Em O Fenómeno Televisivo, vimos como a noção de dispositivo televisivo entroncava no modelo foucaultiano, devendo ser visto como «uma rede de relações, de práticas, de estratégias discursivas e não‑discursivas, que estariam directamente imbricadas nas condições de enunciação, nas condições de exercício da função enunciativa, nas práticas disciplinares e no contexto histórico‑cultural que enforma a genealogia do sujeito moderno. A própria dualidade ver/ser visto (bem como o I am/Eye am proposto por McLuhan), que emerge de uma forma radical a par do universo pós‑tipográfico, como nova ordem disciplinar do olhar moderno, poderia ser interpretada como um dispositivo de vigilância, um dispositivo panóptico de espaços recortados, de acontecimentos registados, de indivíduos "observados", um modelo compacto disciplinar onde os indivíduos, em vez de sujeitos de comunicação, se tornam objecto de informação».
Se a televisão já foi de facto um instrumento de criação de consensos sociais, como sucedeu em Portugal, hoje ela é sobretudo um sistema que gera a indiferença sem abdicar do vínculo social enquanto consenso, quer na sua lógica interna politópica, quer na organização do discurso que se produz sobre ela própria.
O Colóquio de Cerisy - Penser la Télévison - a que já fizemos referência, é um bom ponto de partida para voltarmos a este tema. No seu texto de abertura às actas do colóquio, Jérôme Bourdon (1998) alerta para o facto de o objecto (televisivo) em si ser já uma espécie de «mau objecto», sublinhando a teleologia televisiva assente em nomes como Popper, Bourdieu, Friedmann como tendo construído uma visão da televisão como objecto «deplorável», ou aquele que nunca teria sabido utilizar convenientemente as suas competências, designadamente numa dimensão mais social.
Mau objecto ou metagénero, o certo é que a televisão cria mais facilmente consensos através da sua logorreia discursiva ou da activação da recepção de um programa (veja-se Jauss ou René Berger), do que através da polifonia das interpretações e do que se tem escrito sobre a televisão.
A questão fundamental nesta reflexão sobre o objecto televisivo continua assim a ser a questão do poder da televisão. Popper, Condry, Duverger, Bourdieu, Sartori e muitos outros confluem na mesma interpretação que de certo modo se revê na posição de que se o campo político não controla a televisão será ela inelutavelmente a apropriar-se desse mesmo campo.
A verdade é que nas infinitas oportunidades que a política já teve para tornar a TV uma televisão de acesso, amplamente partilhada pelas comunidades e pelos públicos, sempre decidiu pelo que lhe era mais conveniente, a saber, pelo controlo do seu dispositivo informativo de forma a se perpetuar enquanto poder.
O que significa que o campo político, definitivamente, nunca resolverá este impasse. É muito claro hoje que esta contradição vai sendo resolvida não pelo político, mas sobretudo pelo económico e pelos equilíbrios que procura sustentar com o cultural, que aproveitando a dinâmica da neo-televisão e os efeitos da multiplicidade da oferta - e mesmo as novas dinâmicas interactivas -, se adequam, segundo estratégias e técnicas do marketing e dos estudos de mercado, aos novos interesses do consumo e dos públicos televisivos.
Apesar da redundância de boa parte do modelo da neo-televisão, o poder da televisão será assim tanto menor quanto maior for a competência e a capacidade de escolha - e mesmo de intervenção/criação -, dos públicos perante o dispositivo de produção/difusão da televisão.
A resolução desta quase aporia transfere-se assim do campo do político e do legislativo para o campo do público, invertendo-se também assim um modelo clássico mediático da era dos mass-media. Coloca-se então a questão de saber como reforçar a competência do público em alterar a lógica preversa da audimetria que conduz a televisão generalista a perpetuar uma lógica de programação que se decide sempre como uma espécie de hipertelia a partir da «grelha-tipo» da neo-televisão e não a partir dos interesses e das expectativas do público auscultados no exterior da lógica audimétrica e inclusivamente do interesse público. Quando se trata do serviço público de televisão é claro que as normas éticas e os objectivos qualitativos não podem ser sacrificados às forças de mercado. Esta evolução da própria história da televisão tem conduzido inclusivamente alguns autores, como Nel e Maffesoli, a relativisarem os impactes sociais da televisão. Outros, como é o caso de Wolton, de há muito que «reabilitam» a televisão, concedendo-lhe virtualidades que ela porventura não tem no domínio das identidades e do vínculo social.
Assim, a pós-televisão afirma-se cada vez mais como uma televisão para públicos mais diversificados, rompendo progressivamente com um modelo cristalizado de programação que a televisão generalista construiu ao longo de décadas e do qual ainda não se separou. A radicação de um novo modelo que eventualmente só poderá ganhar consistência em pleno desenvolvimento da era digital assentará assim prioritariamente numa nova lógica marcada por novas competências dos públicos face aos programadores. E a ruptura do modelo analógico é como que uma oportunidade histórica para que isso possa acontecer.
A questão da complexidade de uma analítica do objecto televisivo pode ser vista inclusivamente ao nível do próprio estudo das audiências e dospúblicos. Conforme bem demonstraram Francesco Caseti e Federico di Chio (1999), o estudo dos público não se confina na questão da audimetria. É precisamente nas múltiplas alternativas que se colocam a este método «de mercado» que reside a questão essencial: análise de conteúdo, estudos multivariados de segmentação do mercado, análise de motivações, apreciação e atitudes, análise textual, estudos qualitativos, estudos etnográficos de consumo, estudos culturais, etc., etc. Sobretudo numa perspectiva de «interesse público», mais do que saber quantos telespectadores viram um programa importará saber a razão por que o viram, a reacção ao que viram, e sobretudo a disponibilidade para o mundo de coisas que não viram... E importará ter consciência, primeiro que tudo, que a recusa das estratégias de «nivelamento por baixo» são uma decisão política - dir-se-ia de formação para a cidadania - e não uma decisão «audimétrica» ou de estratégia de programação. O que podem ser então os estudos qualitativos em televisão? Desde logo, possuir os dados sobre o agrado do público, quer em relação às grelhas de programação, quer em relação aos géneros televisivos e à filosofia do canal, independentemente da grelha que possa estar no ar, procurando definir os modelos de programação que encontrem o equilíbrio entre o agrado dos telespectadores - sem conceder ao «comercial» e à guerra de audiências - e a responsabilidade de fornecer um serviço público. Aqui, há sobretudo que ter em conta que o telespectador estatístico é muito diferente do telespectador reflexivo, do cidadão. A participação nestes estudos de grupos e associações emanados da sociedade civil, de painéis de telespectadores, auscultados através de dinâmicas de grupo, pode constituir de facto um outro modo de abordagem da questão da audiência fazendo evoluir o conceito do seu significado estrito de mercado, para um significado qualitativamente diferente, na perspectiva da redefinição do serviço público de televisão em Portugal e na Europa de uma forma geral.
A teoria da recepção não se esgota portanto no audímetro, instrumento que, paradoxalmente, não foi destinado a medir a experiência da audiência, isto é, não mede o que ela retém mas antes o que a retém. Não mede identidades, mentalidades, comportamentos, etc. Falar de audiência é falar de tudo isso, pelo que, em geral, do que falam os audímetros é de audimetria e do triunfo da «parte de mercado». No fundo, o essencial está numa famosa frase de Manuel Maria Carrilho que é todo um programa: «o que se avalia quando se medem as audiências não é o que as pessoas querem, mas a reacção àquilo que lhes é dado». Trata-se portanto de propor a reorientação dos estudos habituais de audiências com base no estudo sociológico aprofundado da recepção de emissões de TV, objectivo que o operador público deve cumprir prioritariamente. Peter Meneer, que dirigiu o sector de pesquisa da BBC desde 1979 a 1992 tinha como primeiro axioma, o seguinte: «Maximizar a parte de audiência é um bom objectivo de gestão para a televisão comercial mas não para o serviço público». Para Peter Menneer havia de facto uma incompatibilidade intrínseca entre a opção «parte de audiência» e a opção «diversidade». Desse ponto de vista, a qualidade de um serviço público de televisão deve sempre ser ponderada designadamente em função da complementaridade face aos difusores privados, em função da variedade da oferta e da promoção da cultura local e em função também da sensibilidade do público inquirida no exterior da própria lógica de medição audiências.
Num quadro sociológico dir-se-ia que se trata, no fundo, de estudar o impacte dos programas num público que não é já um simples consumidor do discurso dominante mas participa na construção do sentido. Para poder segmentar a análise e reorientar os estudos da teoria da recepção aplicada à audiência de televisão, conviria, desde logo, provocar a análise microsociológica no plano das práticas de ver televisão e da competência do telespectador em integrar uma estética da recepção. Num segundo momento, ver como a recepção organiza o texto e lhe dá uma ordem observável e descritível. Finalmente, pensar a recepção como apropriação, isto é, ver como o ficcional, a novelização do real e a realidade-espectáculo se rebatem no real do espectador. É assim óbvio que algo mais deve ser exigido à televisão e algo mais deve ser conhecido do «ser» (do) público. Nesse sentido não seria errado dar apenas um pequeno passo e começar por complementar os índices de audiência com estudos qualitativos, por uma «qualimetria», recolhendo indicadores que aprofundem e ponderem a apreciação dos telespectadores sobre a organização das grelhas, sobre os programas concretos e ainda sobre géneros e programas que habitualmente não estão nos melhores segmentos horários, numa perspectiva quer de serviço público quer de respeitar também o interesse mais diversificado dos públicos, que naturalmente não se confinam no modelo esgotado, «unilateral», de programação da televisão clássica.

* Publicado na RCL, nº 30, Novembro de 2001.


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