Ainda os 40 anos da Rede Globo
1 – Editorial
Os 40 anos da Globo faziam obrigatório um tratamento especial por parte do Prometheus. A controversa emissora, que nasceu no Rio de Janeiro, construiu desde 1965 a referência mais forte em termos de linguagem e modelo de TV. Essa referência determinou um olhar sobre a TV, marcou gerações e ajudou a escrever parte da história brasileira. Pela multiplicidade de abordagens possíveis, tínhamos que fazer uma escolha no tratamento do tema.
Queríamos evitar análises fáceis e dicotômicas, que se propusessem a uma crítica ou a louvação de sua qualidade. Preferíamos uma radiografia, tão fiel quanto possível, que trouxesse à tona uma série de elementos que, combinados, pudessem qualificar o debate e a análise sobre a Globo. Optamos por aquela que parecia a menos explorada entre as opções que estavam a nosso alcance: destrinchar os significados do poder global.
O exercício desse poder esteve presente desde o começo, e se construiu numa relação íntima (quase promíscua) com os governos, ditatoriais ou não. No entanto, ele não é apenas um poder político stricto sensu, mas um poder de homogeneização da linguagem, um poder simbólico, um poder que tem conseqüências diretas no cotidiano da empresa. Não nos bastava, portanto, entender o histórico passado. Era preciso tentar entender as formas presentes de prática desse poder e tentar traçar um panorama futuro. Como será a Globo desse século que se inicia?
Para isso, optamos por diferentes estratégias. A primeira delas, ouvir funcionários da Rede Globo. Buscamos não os grandes nomes da direção, que falam institucionalmente, mas funcionários de suas equipes de reportagem e das redações. Pessoas que acompanham suas práticas no dia-a-dia, que fazem parte da engrenagem, mas que tem clareza sobre a máquina como um todo. Para evitar problemas para eles, preferimos manter o sigilo das fontes.
Fomos atrás também do material já escrito sobre a emissora. Destaca-se entre todos o livro A História Secreta da Rede Globo, escrito pelo jornalista Daniel Herz e publicado em 1991. Dele, e de diversos outros escritos, extraímos histórias e análises que apontam a gênese e o desenvolvimento do poder global.
Outra referência importante foi a monografia de João Brant (da equipe do Boletim Prometheus) “Políticas de radiodifusão no Brasil (1985-2001) e espaço público: estudos para uma aproximação crítica” (orientador: Mauro Wilton de Sousa), São Paulo, janeiro de 2002. Além do paper “Globo: o desafio da convergência”, de Gustavo Gindre.
Finalmente, buscamos analisar o quadro político atual para descrever os últimos movimentos da emissora, e tentar prever os próximos, num tabuleiro cada vez mais intrincado.
Esperamos que esse especial possa contribuir para a compreensão da Globo em sua complexidade. Entender as contradições e paradoxos que se apresentam, suas qualidades e seus problemas, perceber as maneiras como ela exerce o poder, e ajudar a elaborar estratégias de contraposição a esse poder, em nome do fortalecimento da democracia brasileira.
2 – Minisérie: Breve histórico das relações da Globo com o poder
Capítulo 1 – O acordo Time-Life
“Sim, eu uso o poder”. A frase de Roberto Marinho, estampada na capa do livro de Daniel Herz, dá a dimensão do modo de atuação da Rede Globo e de seus proprietários.
O crescimento da emissora começou com o acordo de assistência técnica com o grupo Time-Life, que iria se mostrar muito mais do que um acordo técnico, com a injeção de capital estrangeiro numa empresa de radiodifusão brasileira. O acordo seria considerado ilegal pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), presidida por Saturnino Braga e criada para investigá-lo. Mas, só entre 1962 e 1966 (os negócios haviam começado logo que foi criada a TV Globo, antes do canal começar a operar) já haviam entrado mais de 6 milhões de dólares, quantia bastante expressiva para a época. Também foram cedidos, pela Time-Life, acervo de cerca de três filmes norte-americanos por dia e capacitação gerencial e técnica para os funcionários da Globo. O caso gerou uma batalha jurídica e política com diversos atores: a Presidência da República, o Ministério da Justiça, o Banco Central (à época, SUMOC), o CONTEL (Conselho Nacional de Telecomunicações) e o Congresso Nacional.
Mesmo com a pressão de Carlos Lacerda pela apuração, com a resistência de João Calmon, dos Diários Associados, à época presidente da Abert, à infiltração de capital estrangeiro e mesmo violando a Constituição e o Código Brasileiro de Telecomunicações, a Globo teria seus negócios autorizados pelo Marechal Costa e Silva. Aliada incondicional do poder, a Rede Globo cumpriria papel estratégico para os governos militares durante toda a ditadura. Simbolicamente, o Jornal Nacional nasce no mesmo dia, 1º de setembro de 1969, que o governo Médici.
Capítulo 2 - A aliança do Estado com o setor privado
O modelo criado para a radiodifusão brasileira obteve sucesso graças à contribuição da ditadura militar.
Primeiro, com a necessidade de um modelo concentracionista, baseado na formação de redes. Este modelo foi favorecido pelo surgimento da Empresa Brasileira de Telecomunicações (Embratel), em 1965. Durante anos, segundo denúncia da Federação Interestadual dos Trabalhadores em Telecomunicações (Fittel), as transmissões via satélite da Rede Globo foram subsidiadas pela empresa estatal.
E a inexistência de uma cota obrigatória para produção local (como ocorre em outros países) permitiu à Globo concentrar toda a sua programação no eixo Rio-São Paulo, “exportando” este material para as suas afiliadas.
Depois, com o projeto de aliança com o capital internacional, que possibilitou a modernização tecnológica e contribuiu com o aumento da dependência, não só tecnológica, mas também cultural.
Durante toda a década de 70, os interesses do Estado em formar redes foram convergentes com os interesses de expansão da Rede Globo. Essa aliança possibilitou o aumento exponencial das emissoras afiliadas, espalhadas por todo o país, que podiam transmitir integralmente a programação da cabeça-de-rede.
A estratégia de aumento da rede de comunicações por meio do setor privado seria referendada nas diretrizes que Figueiredo apresentou ao assumir a presidência, em 1979: “1) A radiodifusão é atividade eminentemente privada, reservada no país exclusivamente a brasileiros. O papel do Estado terá caráter meramente supletivo e dirigido a objetivos específicos; 2) A concessão de canais de radiodifusão levará em conta, além dos critérios técnicos e legais pertinentes, a viabilidade econômico-financeira dos empreendimentos; 3) A formação de redes nacionais será estimulada, especialmente no campo da televisão, como meio de apoiar a meta de integração nacional e de assegurar a estabilidade econômico-financeira dos empreendimentos, dentro de um regime competitivo e equilibrado; 4) A interiorização da televisão será incentivada pelo uso extensivo da infraestrutura do sistema nacional de telecomunicações.”
Capítulo 3 – A nova república e a velha política
Em 6 de março de 85, Tancredo Neves recebeu uma comissão representativa (senador Severo Gomes, deputados Cristina Tavares e Odilon Salmória, todos do PMDB) de setores progressistas que lhe entregou um documento com as propostas de mudança na política de comunicação. Os dois deputados pareciam estar especialmente preocupados com a indicação de Antonio Carlos Magalhães para ministro das Comunicações e com a possibilidade da manutenção de Rômulo Villar Furtado na secretaria geral do ministério.
Tancredo foi evasivo: “ACM será ministro, mas não necessariamente das comunicações”. A preocupação com Furtado se dava porque ele era o homem de confiança da Globo e porque, por estar no cargo desde 74, coordenava projetos importantes, como a reforma do Código Brasileiro de Telecomunicações. Nesta época, foi entregue a Tancredo um documento em que 180 parlamentares declaravam apoio à indicação de Freitas Nobre para o Ministério das Comunicações. Diante da polarização entre Freitas Nobre e ACM, Roberto Marinho, que já havia participado de almoço com Tancredo no dia da eleição deste no Colégio Eleitoral, teria feito uma exigência, dizendo que “podia até rediscutir o nome do ministro, mas Rômulo Villar Furtado deveria permanecer na secretaria geral”.
Tancredo, no entanto, devia favores a ACM, que havia tirado parte da bancada do PDS da candidatura de Maluf. Nem foi preciso rediscutir ministro algum. ACM é anunciado no dia 12/03/85 e Furtado é confirmado no cargo uma semana depois.
Capítulo 4 – ACM, o aliado perfeito
A relação com o Executivo, por sua vez, sempre dependeu mais de fatores políticos do que econômicos. Com ACM, por exemplo, a confluência de ideais se deu por vários motivos: i) ACM tinha interesses na radiodifusão, por controlar, direta ou indiretamente, várias empresas do setor; ii) o ministro das Comunicações nunca teve uma política propriamente para o setor senão a de garantir o livre fluxo de informações e controlar as concessões, o que caracteriza uma coincidência com os interesses econômicos da Abert; iii) a relação de ACM com Roberto Marinho sempre foi extremamente próxima e ilustrada por várias histórias de troca de favores entre os dois.
Ficou famoso também o episódio da venda da NEC. A empresa, que tinha o seu acionista majoritário com problemas na justiça, teve seus negócios com o Ministério das Comunicações cancelados pelo ministro Antonio Carlos Magalhães. O cancelamento serviu, na verdade, para baixar o preço de venda da empresa, a fim de que as ações fossem compradas por valor irrisório por Roberto Marinho, interessado no negócio. Foi o que aconteceu. O empresário pagou pelo controle da empresa (51% das ações) menos de 1 milhão de dólares. Logo após a venda da NEC, o Minicom refez os contratos com a NEC. Três dias depois da Globopar assumir o controle acionário da NEC, a Telebrás pagou US$ 30 milhões em créditos atrasados à empresa. Menos de um mês depois do episódio da NEC, a TV Globo, que tinha a TV Aratu como afiliada na Bahia, não renova o contrato com a emissora e, de um dia para o outro, fecha acordo com a TV Bahia, controlada pela família de ACM.
Capítulo 5 – o debate entre Lula e Collor
O malfadado episódio da edição do debate entre Lula e Collor a alguns dias do segundo turno da eleição presidencial de 1989 revela mais do que uma opção política da Rede Globo. Revela a opção da política estar acima do jornalismo.
Na ocasião, a primeira edição da matéria sobre o debate foi apresentada no “Jornal Hoje” do dia seguinte ao debate. No Jornal Nacional, a edição apresentada foi outra, reeditada para ficar muito mais favorável a Collor, transformando a reconhecida superioridade do desempenho de Collor num massacre contra Lula.
Uma reportagem de Fernando de Barros e Silva na Folha de São Paulo*, em 1999, é uma das que parece melhor explicar o que teria acontecido naquele dia. Em resumo, Roberto Marinho teria passado por cima de Armando Nogueira e Alice Maria, responsáveis pelo jornalismo da emissora, e acionado Alberico Souza Cruz, diretor de telejornais, e Ronald Carvalho, editor de política da Rede Globo, para refazer a edição. A tarefa coube a Otávio Tostes, então editor de política do Jornal Nacional, que teria recebido quatro orientações para favorecer Collor, duas vindas de Alberico e duas de Ronald.
Armando Nogueira e Alice Maria só souberam das mudanças quando viram o Jornal Nacional no ar. Em declarações nos anos seguintes, Ronald buscou isentar Alberico, amigo de Collor, que não teria ficado sabendo das mudanças. Na prática, a tentativa era de incriminar o envolvido de menor posição hierárquica, quando na verdade a ordem partiu do maior posto da emissora.
Ø A reportagem de Fernando de Barros e Silva está disponível em http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos/iq201299.htm#questao10
3 – Jornalismo: entre o poder e a mercadoria
O relato de diversos jornalistas permite construir um quadro instigante sobre a produção de conteúdo na Globo, especialmente o jornalístico. De fato, conta-se com uma das melhores estruturas de produção do Brasil. O padrão Globo de qualidade, no entanto, não deixa transparecer algumas práticas que revelam que “qualidade” não é a única baliza para as políticas da empresa.
A descrição do tratamento interno cotidiano sobre a política paulistana revela que o prefeito e o governador são figuras intocáveis pelo jornalismo da empresa, por ordens superiores. Não são poucos os relatos dos cafés-da-manhã da equipe da prefeitura com os editores-chefe ou até de uma fala expressa de um secretário de Estado dizendo à equipe da emissora para não cobrir o caso da acusação de massacre do Gradi (Grupo de Repressão e Análise dos Delitos de Intolerância) a membros do PCC, no que ficou conhecido como o caso Castelinho.
Sem dúvida a emissora não segue todas as “recomendações” desse tipo que lhe são encaminhadas, mas a abertura para que elas aconteçam revelam uma ligação íntima com o poder. Além disso, os relatos são unânimes em descrever o “melindre” como uma política da empresa. Em geral, para não ter que trabalhar com abordagens “imprecisas”, a Globo opta por não cobrir certas pautas “sensíveis”. Trata-se de uma saída para não atingir interesses relevantes, sem ter que operar a pauta “por dentro”. Continua a valer assim, como já visto no histórico da emissora, um campo indefinido de relações entre público e privado; não seria exagero aqui falar em promiscuidade.
Práticas anti-esportivas
Como uma empresa, a Globo lida com a sua atividade-fim (comunicação, aqui especificamente televisão) como um negócio. Nada mais natural. No entanto, não são todas as operações que transparecem para o telespectador. Em programas como o Esporte Espetacular, é comum a presença de pautas “compradas”. Novamente não se trata de uma abordagem manipulada, mas da escolha de uma pauta que não necessariamente seria relevante. Um exemplo real são as regatas Match Race, patrocinadas pela Vivo.
Também o quadro de maior sucesso no programa, da apresentadora Dani Monteiro, não é feito pela Globo. O programa é realizado por uma produtora independente e entregue pronto. A proposta foi feita pela operadora de celular Oi, que é, na prática, a dona do espaço. Também não é necessariamente por interesse jornalístico que a Globo opta por cobrir extensamente certos esportes de pouco apelo.
A relação da Globo com o Campeonato Brasileiro também é de um “produto”. E como um produto “da casa”, não se pode correr o risco de diminuir a vendagem. Um exemplo. A partir do momento em que o Campeonato Brasileiro tomou conta da maior parte do calendário anual, ele passou a ter duas fases: antes da abertura do mercado europeu, no meio do ano, e depois, no segundo semestre. Isso gera uma mudança completa nos times, que ficam desfigurados no decorrer do campeonato, o que parecia ser uma pauta relevante para a equipe de jornalismo. A matéria não foi realizada porque a coordenação editorial entendeu que isso poderia desmotivar o telespectador a assistir ao campeonato, que perderia audiência.
Nada do que se aponta aqui é novidade para quem acompanha televisão de perto. Nem é prática exclusiva da Rede Globo. A concentração dos meios de comunicação tem gerado um sistema desequilibrado, em que a dependência que os políticos têm dos meios de comunicação, por conta de seu poder em pautar a sociedade, e ao mesmo tempo o interesse dos meios de comunicação em manter a completa ausência de limites para o setor (não comparável a nenhum país de capitalismo avançado) faz da promiscuidade uma constante. Mais além, o tratamento da comunicação como um negócio torna-se natural, o que não é necessariamente um problema, desde que isso ficasse claro para o telespectador.
4 – Parabéns para você
A festa de 40 anos funcionou como uma oportunidade para a Globo tentar recontar sua história e determinar os valores pelos quais ela quer ser conhecida daqui pra frente. Três fatos são reveladores: o livro de Pedro Bial sobre Roberto Marinho, o livro lançado sobre o Jornal Nacional e os eventos da emissora “em defesa do conteúdo nacional”.
O livro sobre Roberto Marinho publicado por Pedro Bial tenta dar versões novas a fatos conhecidos. Na verdade, são as visões que a emissora quer fixar na história, contadas por meio do autor porta-voz, que busca emprestar sua credibilidade. A estratégia foi sagaz, e passou por tentar fazer todos os funcionários porta-vozes dessas versões. Todos os que trabalham na emissora ganharam um exemplar do livro de Bial. No exato dia do aniversário, todos os funcionários tiveram que vestir a camisa do “Bom dia”, com direito à festa no final do Jornal Nacional.
Sobre o acordo com a Time-Life, a emissora preferiu assumir que existiu a querela, mas sem perder a compostura. A pesquisadora Patrícia Ozores Polacow revela que em matéria do Jornal Nacional do último dia 2 de dezembro (véspera do aniversário de Roberto Marinho), a Globo homenageou seu criador recontando o caso do acordo. O repórter Edney Silvestre descreveu assim a história:
"(...) Mas a vida de Roberto Marinho não foi apenas uma sucessão de vitórias. O livro também revela o homem e seus problemas. (...) Assim como os detalhes da CPI que apurou a acusação de que Roberto Marinho seria testa-de-ferro de um grupo americano na criação da TV Globo. Intimado, depôs das duas da tarde até às três da manhã. Ao fim, a operação foi considerada legal pela Procuradoria da República (...)".
O que transparece como apenas um caso corriqueiro de questionamento judicial foi, na verdade, uma querela que durou seis anos, que foi considerada ilegal pela CPI criada para apurar o caso e que só foi legalizada pelo Marechal Costa e Silva – e não pela Procuradoria da República –, contrariando a indicação do Conselho Nacional de Telecomunicações (veja mais em Breve Histórico das Relações da Globo com o Poder).
Mas a principal estratégia atual da emissora é afirmar a “defesa do conteúdo nacional”. Por trás dessa sentença está a apreensão da emissora de que as operadoras de telecomunicações, algumas 100% estrangeiras, se tornem provedoras de conteúdo, como já vem acontecendo pela ausência de regulamentação. Ao mesmo tempo em que prega essa defesa, a Globo tem afinado seus negócios com Rupert Murdoch, da News Corp., na TV por satélite (Sky) e com Carlos Slim Helu, da Telmex, na TV a cabo (NET).
Entrevista recente de Roberto Irineu Marinho, na revista Pay-TV, revela que a emissora optou, no futuro próximo, por se configurar como uma provedora de conteúdo. Caberia aos grupos estrangeiros – Sky, Telmex e mesmo à operadora Vivo, com quem começa a negociar – a distribuição desses conteúdos e a manutenção da infra-estrutura necessária a isso. Mais uma vez, o que transparece como um interesse público (a defesa do conteúdo nacional), é na verdade a dissimulação do interesse particular (de firmar a Globo como a grande e majoritária produtora de conteúdo). Prova disso é que na definição sobre a entrada de capital estrangeiro nas comunicações, a Globo se colocou a favor, assim como continua contra qualquer regulamentação que estabeleça regras de apoio à produção independente, à produção regional ou a outras formas de pluralização dos conteúdos (como no caso do projeto de lei 256 da deputada Jandira Feghali, PCdoB-RJ, que tramita há 14 anos no Congresso Nacional) .
Conteúdo nacional sim, desde que produzido no Jardim Botânico.
5 – A Globo e as relações trabalhistas
Como qualquer outra empresa, a TV Globo tem estratégias próprias para lidar com as relações de trabalho de modo a desonerar-se. Uma das condições que a emissora estabelece é a terceirização, que teoricamente só poderia existir para atividades-meio. Diversos jornalistas e radialistas estão contratados como auxiliares administrativos pela LTM Consultoria e Serviços, uma empresa terceirizadora (sic).
A prática da Globo tem sido manter o funcionário terceirizado por um ano e, depois desse período, estabelecer um contrato temporário por seis meses. Um ano e meio depois, sem férias nem direitos trabalhistas, a emissora pode fazer a opção de contratar o funcionário. Nesse caso, o contratado passa a ter os direitos previstos na CLT.
A partir daí, o nível salarial praticado pela emissora é digno e ela tem mantido o pagamento de horas extras.
Entretanto, a situação volta a se complicar quando o funcionário atinge uma certa faixa salarial. Jornalistas, apresentadores e atores, ao entrarem nessa faixa maior, passam a ter que manter relação com a Globo como pessoa jurídica. Assim, a emissora se vê livre dos encargos trabalhistas e a relação com o funcionário passa a ser contratual, com uma empresa prestadora de serviços.
Na relação com os funcionários, a Globo se utiliza muito da concessão de benefícios, que obtém por vezes em forma de permuta por horário de propaganda. Ao comemorar sua quarta década, a Globo concedeu, por exemplo, um kit supermercado no valor de R$ 1 mil para todos os funcionários. Outra estratégia é a adoção de abonos salariais, o que evita o reajuste comum para todos os funcionários e lhe permite impor recuos ao longo do tempo. Desde 1993, a emissora estabeleceu um programa de gestão participativa (PGP), pelo qual concede abonos aos funcionários a partir do cumprimento de metas de redução das despesas.
Enquanto isso, no Rio de Janeiro, os radialistas passaram cinco anos em dissídio com a emissora, que não queria conceder reajuste salarial equivalente à inflação. Depois de a Justiça do Trabalho julgar o caso favorável aos trabalhadores, foi estabelecido o pagamento de seis salários de compensação. Ameaçando entrar novamente na justiça contra essa decisão, a emissora propôs aos funcionários o pagamento de três salários e um aumento de 10% e obteve a adesão da maioria dos trabalhadores.
O tratamento dado pela Globo à questão trabalhista não gera mais polêmicas por três motivos. O primeiro, a alta circulação de funcionários, especialmente os “prestadores de serviço terceirizado”. Em segundo lugar, pelo quadro geral de precarização das relações de trabalho, especialmente na área da comunicação. Boa parte das empresas apresenta condições ainda piores, o que inibe a manifestação dos funcionários. Em terceiro lugar, por um fator subjetivo, mas com grande peso. A simbologia da Globo transforma um emprego na emissora em condição de status. A combinação da sensação de que a Globo abre portas e do “glamour” das novelas que se transfere a todos os funcionários faz com que uma vaga na emissora seja disputada e tenha valor alto no já exíguo mercado de empregos.
6 – A crise da Globo
Desde o início dos anos 90, o Grupo Globo vinha investindo (em parceria com sócios minoritários) na montagem da maior empresa de TV paga do Brasil: a operadora de TV a cabo NET. Foram necessários recursos para a construção da rede física, depois um upgrade (ainda hoje inconcluso) para torná-la bi-direcional (e capaz de prover acesso à Internet) e, finalmente, sua digitalização (atualmente em curso). O problema é que o modelo de negócios privilegiou as classes A e B e até hoje o número de assinantes patina em cerca de 1,6 milhão (com um índice alto de desligamento).
Ainda no setor de TV paga, a Globo investiu na montagem do empacotamento de canais com a grife NET para a criação de uma rede de franqueadas. Sob a marca NET estão canais norte-americanos (como o atual Universal Channel) e parcerias entre a Globo e as majors dos Estados Unidos (Telecine).
Para a TV por satélite, a Globo tornou-se sócia majoritária da franquia brasileira da maior operadora do planeta, a Sky (de propriedade de Rupert Murdoch, que, no caso brasileiro, era o sócio minoritário).
Mas, a Globo jamais se descuidou de seu foco que é a produção de conteúdos. A Globosat tornou-se a maior produtora de canais para TV em português.
Com dinheiro fácil e barato (graças à paridade entre dólar e real), e estimulada pela necessidade de convergência tecnológica, a Globo também resolveu tentar a sorte no mundo da telefonia e transmissão de dados.
Em parceria com a Italia Telecom (sua sócia no portal Globo.com), a Globo participou do leilão de privatização do Sistema Telebrás, tentando adquirir (e fracassando) a Embratel (de olho na aquisição da rede de satélites da operadora de longa distância).
Ainda com Italia Telecom (e Bradesco), a Globo montou a Maxitel, operadora de telefonia celular nos estados de Minas Gerais, Bahia e Sergipe.
E, com a Victori International, sua sócia na operadora de pager Teletrim, a Globo criou a Vicom, empresa de transmissão de dados, especializada na prestação de serviços para grandes grupos econômicos.
Mas, aí começaram os problemas.
A bolha da “nova economia” não se sustentou, muitas empresas fecharam, os fundos de capital de risco perderam dinheiro e a captação de novos recursos se tornou um problema. Com pouco dinheiro circulando, raros ainda tinham disposição para investir nos chamados “mercados emergentes” e os investimentos se concentram nos países ditos desenvolvidos.
Passada a eleição geral de 1998, os custos da manutenção da paridade cambial tornaram-se insustentáveis e o dólar começou a disparar, levando, consigo, as dívidas contraídas no estrangeiro.
Mas, um terceiro e decisivo elemento se somou para conformar a crise da qual a Globo tenta, agora, se livrar. O horizonte da convergência tecnológica não se aproximou com a velocidade que se imaginava, vários problemas (técnicos, regulatórios e negociais) permaneciam sem solução e o retorno de caixa não conseguia amortizar os investimentos feitos. Assim, por exemplo, a Internet banda larga não cresceu na proporção esperada, a TV digital ainda não foi introduzida e a telefonia celular permanece, em grande medida, transportando apenas sinais de voz.
No dia 28 de outubro de 2002 aconteceu o que até então parecia impensável (dado o seu poderio político e papel simbólico desempenhado nos últimos anos): a Globopar (holding da Globo, que exclui TV Globo, Sistema Globo de Rádio e Infoglobo) anunciou o default (moratória). A Globopar não tinha condições de saldar suas dívidas. Em dezembro do mesmo ano foi a vez da NET.
A TV Globo seguia sendo uma empresa superavitária, mas o default da Globopar lhe afetava diretamente. A família Marinho dera a TV Globo e o Projac como garantias para empréstimos de sua holding no valor aproximado de R$ 4 bilhões. Uma afundando, certamente levaria a outra.
7 – Vendendo os anéis
Desde o anúncio de seu default, a direção da Globo vem se esforçando para conseguir um acordo com os credores que permita o alongamento dos prazos e a conversão de parte do montante em moeda nacional (livrando-a do problema de arrecadar em reais e pagar em dólares agora que a paridade se tornou uma quimera).
Mas, a renegociação implica na adoção de um novo modelo de negócios que garanta aos credores que o grupo tem condições de se manter como um player importante no mercado de mídia.
O plano adotado passa, em primeiro lugar, por assumir uma nova estratégia diante do cenário de convergência.
A Globo desistiu de ter o controle das redes de transmissão de dados. Parte foi simplesmente vendida. A Teletrim converteu-se em uma prestadora de serviços wireless de propriedade da ex-sócia Victori. A Vicom foi alienada para a Comsat. Globo e Bradesco se retiraram da Maxitel que acabou anexada à TIM.
O foco passou a ser o conteúdo.
A Globo ambiciona ter a capacidade de produzir conteúdo em texto, áudio e audiovisual e ser capaz de “empacotá-lo” para as diferentes mídias: jornais, revistas, rádios, TV aberta, TV paga, Internet e telefonia celular, independente de ser a dona da distribuição.
Assim, a Globo decidiu, também, vender suas redes de distribuição de TV paga: NET e Sky. Mas, neste caso, ela não poderia se dar ao luxo de simplesmente deixar o negócio. Era preciso manter uma participação acionária minoritária que lhe garantisse, ao mesmo tempo, reter o uso dos canais de distribuição de seu conteúdo e impedir que outras produtoras (como os canais da Band: News, Sport e 21) lhe fizessem concorrência.
Na operadora NET (agora chamada NET Serviços), a Globo ficará com cerca de 26.01% do capital votante e a mexicana Telmex (que, no Brasil, já é proprietária da Embratel, da Claro, da ex-AT&T Latin America e da Vésper) com, no mínimo, 62,49%. O contrato entre a Globo e a Telmex prevê que a operadora deve continuar usando a marca NET (cujos canais são “empacotados” pela NET Brasil, empresa sob controle exclusivo da Globo).
Na Sky Brasil a Globo ficou com 28% das ações ordinárias. E Rupert Murdoch com o restante. Murdoch é o proprietário da Fox, da Sky e acaba de adquirir a DirecTV para fundi-la com sua plataforma de TV via satélite, além de ser o principal aliado do governo Bush na área da mídia. O contrato prevê tanto a exclusividade na distribuição dos pacotes da NET Brasil quanto a possibilidade da Globo colocar os seus canais nas operações da Sky e DirecTV ao redor do mundo.
Ou seja, na NET e na Sky Brasil, só entram os canais que a Globo aprovar. O que significa que a concorrência nacional (como os canais da Band, por exemplo) deve ficar de fora das duas maiores operadoras de TV paga do Brasil.
Por fim, a Globo parece ter abandonado, ao menos por enquanto, a idéia de investir no setor de parques temáticos. E, com a crise mundial do mercado fonográfico, desistiu de disputar com as cinco grandes (Universal, Warner, EMI, BMG e Sony), transformando a antiga gravadora Som Livre em uma loja virtual e vendedora de trilhas sonoras de novelas.
8 – A Globo e o futuro
Depois de se desfazer das redes de transmissão e se concentrar no conteúdo, a Globo desenvolve uma dupla estratégia.
No dia 21 de abril ela anunciou que os grupos de credores haviam concordado com a reestruturação das dívidas. Agora, começa um intrincado processo de troca das dívidas velhas pelas novas. A Globopar conseguiu descontos que variam entre 30% e 50%. Globopar e TV Globo continuam como fiadoras da dívida que deverá ser liquidada em 2012.
De outro lado, a Globo atua para evitar o inevitável ou ao menos tentar adiá-lo até que sua posição melhore. A Globo sabe que o processo de convergência é inevitável. Sabe que assim com as redes da NET Serviços (originalmente feitas para a TV a cabo) poderão prover telefonia, as operadoras de telecomunicações em breve poderão oferecer conteúdo audiovisual pelos seus cabos ou redes sem fio. Aí, a Globo deixará de disputar o mercado com os Saad, Abravanel e a Igreja Universal para ter que enfrentar Telefonica de España, Portugal Telecom, TIM e outras que podem desembarcar por aqui. A briga muda de nível.
Assim, sua defesa do “conteúdo nacional” procura criar o apoio que ela precisa para aprovar algum tipo de regulamentação que impeça as “teles” de produzirem seu próprio conteúdo brasileiro. Se quiserem transmitir, terão que comprar de terceiros e a própria Globo aparece como candidata natural para fornecer sua programação.
Sua perspectiva é lutar ao máximo para adiar o cenário de convergência e garantir que, quando ele chegue, a emissora esteja novamente posicionada para exercer sua vocação oligopolista.
9 – Expediente
“Quanta verdade um homem é capaz de suportar?” (Nietzsche)
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Editor-responsável: jornalista Gustavo Gindre (gindre@indecs.org.br)
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