24.8.04

Programa de História dos Media

HISTÓRIA DOS MEDIA
Departamento de Ciências da Comunicação
FCSH-UNL
2004-2005


PROGRAMA DA CADEIRA


Pretende-se desenvolver nesta cadeira uma reflexão em torno da genealogia de estruturas histórico-comunicacionais, das respectivas mediações simbólicas e tecnológicas e do campo dos media. Do mesmo modo se fará a análise de contextos, práticas, regularidades, arquivos, e das condições de produção histórica do real comunicacional e da lei dos sistemas que orientam o aparecimento de enunciados como acontecimentos singulares.
Na abordagem dos diferentes tempos históricos, procura-se problematizar a emergência de campos de mediação, designadamente a partir da interpretação das grandes mutações e na configuração das diferentes estruturas comunicacionais, tecnológicas e simbólicas.
Serão considerados diferentes universos - as sociedades de cultural oral; a emergência da escrita; o universo tipográfico, o livro e a imprensa; a sociedade pós- industrial e os media de massa, analisando os dispositivos histórico-culturais das diferentes épocas históricas e/ou comunicacionais.
A cadeira de História dos Media está assim organizada em grandes capítulos, o primeiro dos quais - Epistemologia da História dos Media - tem uma preocupação fundamentalmente teórica e metodológica. Nele se procurará repensar as diferentes contribuições provenientes do âmbito da filosofia e da teoria da história, com relevância, quer para o trabalho historiográfico no campo dos media, quer para uma crítica da própria história enquanto 'grande narrativa' na encruzilhada de saberes em crise. Os capítulos seguintes configuram-se necessariamente como um todo. A história dos media não é, no nosso entender, a história conjuntural de determinado 'fenómeno' ou campo mediático dado como totalidade inexpugnável, é sim uma figura global sempre em processo de mudança, um corpo de tensões, uma cadeia de interdependências recíprocas. Nessa medida, a história das mediações simbólicas e tecnológicas - das sociedades de cultural oral às dramaturgias da pós-modernidade - emerge como um universo fecundo de sentido, em constante actualização, sendo certo que quanto mais densos e aprofundados são os problemas e dependências recíprocas, mais se tornará visível a constituição de um dispositivo histórico-cultural comum pré- e pós-alfabético.
Trata-se portanto de provocar uma reflexão em torno da genealogia de estruturas comunicacionais, numa perspectiva fundamentalmente histórico-cultural. No estudo dos diferentes tempos históricos procurar-se-á problematizar o sentido da emergência - o sentido da história - de diferentes universos comunicacionais e respectivos campos mediáticos, a partir essencialmente da interpretação das grandes mutações observáveis nas linhas de fractura e na configuração das diferentes estruturas.
Em análise estarão quer os macro acontecimentos e as grandes estruturas históricas, quer os micro fenómenos comunicacionais, do fait-divers aos meta-acontecimentos e à actualidade trágica. Procurar-se-á conduzir à definição dos seus parâmetros isomórficos, na sua genealogia, e confrontar os mecanismos de regulação da produção simbólica nas diferentes épocas. Em acréscimo propõe-se o aprofundamento da reflexão entre o campo de dominação e o campo de comunicação, analisando os dispositivos de dominação propriamente ditos, designadamente a partir da noção de dispositivo histórico-cultural pós-alfabético, e com base no postulado que considera a história da comunicação 'pública', e também 'privada' - é a história de um fluxo unívoco de dominação.
Colocar-se-á então ao historiador o problema das condições de produção histórica - de um quadro legal, de um discurso, ou saber, de um relato événementielle, por exemplo. É através do trabalho 'arqueológico' dos contextos, discursos e condições de possibilidade que se chegará à descrição intrínseca desses documentos, das formações discursivas em que se inserem, procurando as regularidades que se enunciam, a figura que se forma.
Importará pois trabalhar o campo das excisões que nos apelam à descoberta da lei do sistema que orientou o aparecimento de enunciados como acontecimentos singulares, produzindo dessa forma aquilo que é lícito chamar de 'real' ou, pelo menos, as formas e o conteúdo da visibilidade desse real mediatizado. Emergirá, nestas circunstâncias, um 'media' ou um acontecimento-monumento, configurado como produto de um contexto histórico-cultural que lhe deu corpo segundo as relações de forças que aí detinham o poder e também em função das formações não-discursivas então estabelecidas, das condições de enunciação e contextos criados, dos efeitos assegurados por uma descrição do mundo que é, finalmente, uma nova ordem discursiva do real e do mundo.




INTRODUÇÃO

1. Introdução à cadeira: programa, bibliografia e sistema de avaliação

2. Introdução à Teoria da História : da História à crítica da comunicação
Metodologias, pesquisa crítica e empírica
O jornalista, o historiador e os media
Dispositivo histórico-cultural clássico e moderno
O retorno da techne


EPISTEMOLOGIA DA HISTÓRIA DOS MEDIA

3. História, tempo e media
A história, o historiador e os mass-media
O regresso do acontecimento
O acontecimento e o historiador do presente

4. Para uma sociologia histórica das práticas culturais
Documento/monumento
História, escrita de ficção
No grande jogo da História
Para uma epistemologia da história dos média - de McLuhan a Foucault


GENEALOGIA DA ESCRITA E DO LIVRO

5. Modelos e profecias da Aldeia Global: McLuhan
Livro: uma abordagem histórica
A cultura oral, a origem da escrita e a economia antiga
Escrita, Poder, Estado


EMERGÊNCIA DA TIPOGRAFIA E DA IMPRENSA

6. O novo espaço público e a ordem disciplinar do olhar
A origem da tipografia e da esfera pública crítica
Pré-História e primeira Infância da Imprensa
Elogio e elegia do jornalismo


A IMPRENSA E A ERA INDUSTRIAL

7. Século XVIII: A Glória da Inglaterra
A Revolução Francesa e a Imprensa
A Liberdade e a Imprensa
A Idade de Ouro
A Grande Guerra


A IMPRENSA EM PORTUGAL

8. Os Primórdios
A Imprensa romântica ou de opinião
A fase industrial da imprensa


OS MASS MEDIA

9. Genealogia da sociedade de consumo e emergência da publicidade
O dispositivo comunicacional moderno I, II e III

10. A emergência da Rádio :
O período nazi
A Rádio na URSS
A Voz da América
A BBC

11. A Rádio em Portugal :
A Rádio ao tempo de Salazar e Caetano
Rádio : do marcelismo aos nossos dias

12. A emergência da Televisão e o caso português
Salazar, a censura e os media.
Salazarismo e TV
Caetano e a RTP
A fragmentação do modelo audiovisual




Bibliografia essencial

ALVES, José Augusto dos Santos
A Opinião Pública em Portugal (1780-1820), UAL, Lisboa, 2000.

ALVAREZ, Jesus Timoteo
Historia y modelos de la communication en el siglo xx, Ariel Comunicacion, 1986.

CÁDIMA, Francisco Rui
História e Crítica da Comunicação, Século XXI, Lisboa (2ª edição), 2002.
Desafios dos Novos Media, Editorial Notícias, Lisboa 1999.
Estratégias e Discursos da Publicidade, Veja, Lisboa, 1997.
Salazar, Caetano e a Televisão Portuguesa, Presença, Lisboa, 1996.
O Fenómeno Televisivo, Círculo de Leitores, Lisboa, 1995.

CHARTIER, Roger
A História Cultural - Entre práticas e representações, Difel, 1988.

FOUCAULT, Michel
L'arquéologie du savoir, Gallimard, 1969.

FRANCO, Graça
A Censura à Imprensa (1820-1974), IN-CM, Lisboa, 1993.

GOODY, Jack
A Lógica da Escrita e a Organização da Sociedade, Edições 70, 1987.

HABERMAS, Jurgen
Historia y critica de la opinión publica, Gustavo Gili, Barcelona, 1981.

HALE, Julian
La radio como arma politica, Gustavo Gili, Barcelona, 1979.

Jeanneney, Jean–Noël
Uma História da Comunicação Social, Terramar, Lisboa, 1996.

LeGOFF, Jacques
«Documento-Monumento», Enc. Einaudi, IN-CM, Lisboa, 1984.
Reflexões sobre a História, Edições 70, Lisboa, s/d.
A Nova História, Edições 70, Lisboa, 1983.

MCLUHAN, Marshall
A Galáxia de Gutenberg, CEN, 1977.

TENGARRINHA, José
História da Imprensa Periódica Portuguesa, Editorial Caminho, 1989.

WILLIAMS, Raymond
Historia de la Comunicacion, Bosch, Barcelona, 1992.

foto


21.8.04

No grande jogo da História

Leia-se a «abertura» de L' archéologie du savoir: «Voilà des dizaines d' années maintenant que l'attention des historiens s' est portée, de préférence, sur les longues périodes comme si, au-dessous des péripéties politiques et de leurs épisodes, ils entreprenaient de mettre au jour les équilibres stables et difficiles à rompre, les processus irréversibles, les régulations constantes, les phénomènes tendanciels qui culminent et s' inversent après des continuités séculaires, les mouvements d' accumulation et les saturations lentes, les grands socles immobiles et muets que l'enchevêtrement des récits traditionnels avait recouverts de toute une épaisseur d' événements» [1] .
Lance-se o primeiro dado: às sucessões lineares que foram até então, por excelência, o objecto de investigação, sucedeu-se um jogo de desprendimentos (décrochages) em profundidade. Ora, aproximadamente na mesma altura, em disciplinas como a história das ideias e das ciências, das mentalidades e também da literatura, nestas disciplinas que escapam em grande parte ao trabalho do historiador e aos seus métodos, a atenção deslocou-se das vastas unidades que eram descritas como «épocas» ou «séculos» para fenómenos de ruptura.
As totalidades diluem-se assim em redistribuições, interrupções, descontinuidades. As «tendências seculares» que anteriormente permitiam falar de relações fixas e de coerência nas estruturas, confrontam-se agora inevitavelmente com o que Foucault designou de irrupção dos acontecimentos nas estruturas que a história tradicional pretende sem labilidade. Veja-se, por exemplo, em Braudel: «Pour nous, historiens, une structure est sans doute assemblage, architecture, mais plus encore une réalité que le temps use mal et véhicule très longuement. Certains structures, à vivre longtemps, deviennent des éléments stables d'une infinité de générations. Elles encombrent l'histoire, en gênent, donc en commandent, l'écoulement» 2 . Poder-se-ia inclusive esboçar uma crítica a Braudel em três momentos: em primeiro lugar pela insustentável estabilidade das estruturas; num segundo momento porque a própria crise das grandes narrativas dificilmente deixará ainda crer que a história possa ser uma explicação do social em toda a sua realidade 3, em terceiro lugar porque a história narrativa se reapropriou da noção de acontecimento enquanto ocorrência ou «irrupção», ultrapassando assim o impasse da crítica do positivismo como crítica do événementielle. O próprio Marc Ferro vem a considerar, nos Annales, o fait-divers como objecto de história privilegiado, como uma necessidade da história 5 se bem que acabe por não fundamentar a rigor esse objecto da micro-história. E é curioso notar, por exemplo, que Pierre Nora considerou que o acontecimento em relação à história tradicional havia mudado de natureza devida à transformação operada pelos media, criando sistema de inflação fenomenológica 6 .
A própria cientificidade do trabalho histórico passa a ser problematizada. Michel de Certeau faria comparações com o estatuto da crónica, narrativa equívoca adstrita a um sujeito de enunciação, e dizia que a história não é científica se por científico se entender o texto que explicita as regras da sua produção 7. E se é óbvia a crise que resulta da falência das noções de testemunho, documento, prova (e outras) isso não implica que a paixão pelo carácter narrativo das discursividades e da história se registe a um outro nível da razão. Fernando Gil diria que a prova é uma arte, mas uma arte que transporta em si o rigor da nacionalidade científica 8 .
A história narrativa surge assim indubitavelmente não já na ordem da duração ou das estruturas, mas na ordem do discurso procedendo a novos questionamentos quer do documento, quer do testemunho, enfim, das modalidades de explicação do real, das formas de argumentação e da prova, do diferendo e da impossibilidade de testemunhar, da ordem morfológica e dos seus impasses, da performatividade, da modelização.
No limite, a história, enquanto escrita de ficção ou «arte de encenação» como lhe chamava Certeau, rege-se nas suas concretizações discursivas, submetendo-se à actualidade do(s) saber(es), reciclando os seus próprios isomorfismos, as hierarquias de importância em todo esse trabalho, fundando uma prática científica, uma «ciência», mas de modo a subtrai-la à ideologia do seu passado e revelando esse passado como ideologia. É sem dúvida essa grande inquietação crítica, o novo questionar do documento, do testemunho e da prova, que conduz, no trabalho do historiador, a uma reavaliação da interpretação a fazer das práticas discursivas, do discurso histórico e do arquivo, enfim, da nova ordem do discurso e da sua improbabilidade legitimadora.
Em causa, portanto, uma história-devir, feita de dinamismo interno, uma história que coloca a sua abertura em oposição à «imobilidade das estruturas», ao seu sistema fechado, e substitui a procura da totalidade pela análise da raridade, isto é, pela descrição de um conjunto de enunciados não enquanto totalidade plena e pictórica mas enquanto únicos conjuntos significantes que foram enunciados entre uma infinidade de possíveis. Daí, por exemplo, a sua definição de arquivo: o arquivo não é a soma de todos os textos, a acumulação dos documentos, mas a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento de enunciados como acontecimentos singulares 9 .
Daí também que a prática arqueológica se coloque como uma proposta de atingir na sua totalidade lógica os conceitos de uma época, as condições reais de uma interrogação e de um saber analisando o princípio de coesão das séries, vendo qual o «sistema vertical» que são susceptíveis de formar, quais as relações entre as séries, etc. 10. Poder-se-á acrescentar, no limite, que interessa observar se se constituirá ou não um sistema vertical não apenas entre traços, séries de traços, etc., permitindo a descrição de determinados isomorfismos inter-estruturais, dispositivos histórico-culturais, invariantes comuns, redes de simultaneidades, a partir exactamente das homologias formais entre diferentes conjuntos.
Torna-se finalmente necessário desmistificar a instância global do real como totalidade a restituir. Não existe «o» real que se reencontraria na condição de falar de tudo ou de certas coisas mais «reais» que as outras, e que se perderia se nos limitássemos a trabalhar sobre abstracções inconsistentes, sobre outros elementos, outras relações: «(...) Un type de rationalité, une manière de penser, une technologie, un ensemble d' efforts rationnels et coordonnés, des objectifs définis et poursuivis, des instruments pour l'atteindre, etc., tout cela c' est du réel, même si ça ne prétend pas être Ia rationalité elle-même, ni la société tout entière» 11 . O essencial não reside portanto na distinção ou discriminação dos «níveis de realidade», como sublinhou Roger Chartier, mas sim na compreensão de como a articulação dos regimes de práticas e de séries de discursos produzem aquilo que se designa como «realidade» 12 .
Nessa trajectória, nessa mise-en-abîme transdiscursiva procura-se fundamentalmente, reduzindo e intensificando a nossa relação com o mundo, a detenção nos fragmentos, as cintilações, o registar visibilidades, revendo-nos neles e ao mesmo tempo vendo como se afastam de nós. A própria literatura parece ser muitas vezes mais sensível a estas questões do que a história como bem se assinalava relativamente a Italo Calvino: «A pendular oscilação das referências e a permanente metamorfose do sentido de tudo impedem cada vez mais Palomar de ajuizar sobre o mundo, afastam-no das normas universais e da esperança da compreensão das coisas» 13 . Dir-se-ia finalmente que se a única procura histórica do «sentido» é a do outro, é porque, nas palavras de Certeau, este projecto, contraditório, «vise à 'comprendre' et à cacher avec le sens l'altérité de cet étranger, ou, ce qui revient au même, à calmer les morts qui hantent encore le présent et à leur offrir des tombeaux scripturaires» 14 .
As condições de possibilidade de uma história-devir, inacabada, passam, em primeiro lugar, pela recusa das modalidades de legitimação do trabalho dos historicismos e dos seus sucedâneos. Um dos autores europeus que a par de Foucault mais tem trabalhado estas condições de possibilidade é Paul Ricoeur. Colocando a hipótese da existência de uma unidade funcional entre os múltiplos modos e géneros narrativos (das narrativas que têm uma pretensão à verdade histórica às que a não têm) e tratando a qualidade temporal da experiência como referente comum à história e à ficção como pontos de partida da sua reflexão, os seus trabalhos têm constituído nos últimos anos pontos de referência essenciais para a problematização da história.
Recuemos um pouco no tempo: é nos anos 60 - época de ouro, por assim dizer, do estruturalismo francês - que a «velha» oposição entre récit fictif e récit historique é repensada de forma radical, encontrando-se, por exemplo em Roland Barthes, a explicitação de uma ruptura fundamentada em termos teóricos no texto «Le discours de l'histoire» 15. Aí, Barthes perguntava-se se «(...) la narration des événements passés, soumise communément, dans notre culture, depuis les Grecs, à Ia sanction de Ia science historique, placée sous Ia caution impérieuse du réel, justifíée par des principes d' exposition rationelle, (si) cette narration differe-t-elle vraiment, par quelque trait spécifique, par une pertinance indubitable, de Ia narration imaginaire, telle qu'on peut Ia trouver dans l'épopée, le roman, le drame?»... O texto em si é a resposta a esta questão. Barthes parte do discurso de historiadores e de autores clássicos como Heródoto, Maquiavel, Michelet, para desenvolver esta sua abordagem do tema, que, diga-se, surge praticamente isolada, não fosse o caso de existirem algumas referências esparsas no contexto da historiografia anglo-americana.
Para Barthes, os sinais de enunciação no enunciado histórico visam, mais do que dar ao historiador a possibilidade de exprimir a sua subjectividade, pôr em confronto dois tempos: aquele que designa como «tempo crónico da história» e o do «discurso», do «tempo-papel», este, segundo Barthes, nâo-cronológico: «La présence, dans Ia narration historique, de signes explicites d'énonciation viserait à 'déchronologiser' le 'fil' historique et à restituer, ne serait-ce que à titre de réminiscence ou de nostalgie, un temps complexe, paramétrique, nullement linéaire, dont l'espace profond rappelerait le temps mythique des anciennes cosmogonies, lié lui aussi par essence à la parole de poète ou du devin» 16 .
As grandes questões referentes ao discurso da história estavam assim enunciadas: por um lado, o fim da dicotomia récit de ftctionlrécit historique; por outro, a tentativa de encontrar a linha de demarcação entre o tempo cronológico e o não-cronológico.
Numa perspectiva meramente linguística poder-se-á aceitar que as marcas de enunciação explicitam um tempo não-cronológico, configuracional. Porém, a radicalidade com que esses dois tempos se confrontam é bem mais complexa - e fulcral. Digamos que a mais importante contribuição de Barthes se situa, na sequência do seu texto «Introduction à l'analyse structural du récit»17 em defender que no enunciado histórico se encontram as mesmas classes de unidades de conteúdo que se encontravam no récit de fiction. O que está, pois, em causa é justificar a história como arte de encenação ou como narrativa, sem descurar o pressuposto elementar, a razão legitimadora, a coerência do programa. Será portanto necessário, em primeiro lugar, ir ao encontro da natureza narrativa da história.
Para Paul Ricoeur, em «La narrativité»18 , estudo onde todo esta questão é claramente problematizada - e que é uma espécie de introdução à trilogia de Temps et récit - podem ser considerados dois aspectos distintos na constituição narrativa do conhecimento histórico. O primeiro é o conceito de discurso narrativo - série de acontecimentos com uma ordem específica, que deixa já antever que a «história dos historiadores» é uma espécie do género história contada. Gallie reconhecia já em 1968, em Philosophy and Historical Understanding, que o que impedia historiadores e epistemólogos de reconhecer esta verdade era o preconceito que tinham em considerar exactamente a relação entre história e ficção, dado estarem demasiado absorvidos pelas «evidências» na história, isto é, a prova documental, o arquivo, a tradicional oposição história-crónica versus história-ciência, etc.
A leitura de história deriva, portanto, da nossa competência em seguir histórias, em «seguir uma narrativa», sendo portanto a história um tipo particular de narrativa. Ricoeur põe claramente em evidência este aspecto: a história dos historiadores (history) enquanto récits de acções humanas passadas, são susceptíveis de «ser seguidas ou compreendidas da mesma maneira geral que o são todas as histórias (stories)» 19 .
A questão da natureza narrativa da história não é, porém, uma questão absolutamente pacífica. A prová-lo estão os infindáveis argumentos anti-narrativistas que se poderiam encontrar na teoria da história. De uma forma geral toda essa genealogia das escolas que têm problematizado a natureza da história, têm vindo a considerar que, por um lado, ela nada tem a ver com os géneros literários, e, por outro, que deve ser considerada como não-événementielle, assim fazendo a crítica do historicismo. É importante referir que no conjunto dos historiadores não-narrativistas Ricoeur começou por escolher significativamente Fernand Braudel e Paul Veyne. Braudel porque, a pretexto do acontecimento ser uma «oscilação curta, rápida e nervosa» e servir assim exclusivamente ao retomar da histoire-bataille, defende uma história da longa duração, das estruturas macro-históricas, uma história que Braudel pretende situar no pólo oposto da história événementielle, recusando, por conseguinte, um dos critérios minimais ao entendimento da natureza narrativa da história. Quanto a Paul Veyne, verifica-se da mesma forma um recuo do conceito de acontecimento, que é, aliás, segundo Ricoeur, acompanhado por um recuo semelhante do conceito de narrativa - e isto acontece de uma forma geral entre os historiadores contemporâneos que «tendem a considerar a narração como restituição dos acontecimentos na linguagem dos próprios actores da história e nos termos das suas conjecturas. A história é assim desde logo uma pesquisa que rompe com toda a narrativa que seria indiscernível daquela que os actores da história poderiam ter produzido na altura própria» 20 .
Veyne assume deste modo a sua radicalidade: só a conceptualização histórica, entendida como uma determinação de invariantes, interessa. O acontecimento, entendido como variável, faz parte do «inventário das diferenças» - subproduto da construção do modelo invariante. É importante ressalvar nesta sequência a posição que Ricoeur posteriormente defende ao considerar que mais para além dos Écrits sur l'histoire de Braudel é possível determinar um regime de mise-en-intrigue na sua obra La Méditerranée... o que permite dizer desassombradamente o seguinte: «Ia notion même d'histoire de longue durée derive de l'événement dramatique, au sens qu'on vient de dire, c'est à dire de l'événement-mis-en-intrigue» 21 .
Ora, para Ricoeur, a simultaneidade do recuo da noção de narratividade e de acontecimento tem a ver com o facto de os historiadores se apoiarem num conceito não crítico de acontecimento. Ricoeur propõe em sua substituição o conceito de ocorrência como extensivo à macro e à micro-história, justificando que é perfeitamente compatível com a noção de ocorrência defender que os acontecimentos são construídos ao mesmo tempo que o são as narrativas que os enquadram: o acontecimento ocorre no discurso.
A razão desta noção crítica podemos encontrá-la no facto de Ricoeur pensar que a função da noção de acontecimento é a de preservar, para além das construções do historiador, a convicção de que qualquer coisa se produziu efectivamente, que aconteceu realmente, mas que, tal como o númeno kantiano, pode ser apenas pensado e não conhecido; é a coisa em si, uma pura ideia a que não corresponde nenhum objecto material. Finalmente, nesta aproximação à natureza narrativa da história, e depois de uma crítica ao conceito de acontecimento, Ricoeur formula uma crítica ao conceito de história.
Em primeiro lugar, como traço comum quer ao literário quer ao histórico, há a referir as duas dimensões de todas as narrativas: a dimensão cronológica e a não-cronológica. A cronológica é episódica, tem a ver com a «art de suivre» a narrativa, com o aguardar das contingências; a não-cronológica situa-se no descortinar dos conjuntos significantes a partir de acontecimentos dispersos. A actividade narrativa combina assim estas duas dimensões: a cronológica - sequencial - e a não-cronológica - configuracional. Para além disso, «a história, enquanto narrativa 'verdadeira', implica que o mais simples récit seja sempre mais do que uma série cronológica de acontecimentos e, por outro lado, implica que a dimensão configuracional não faça esquecer a dimensão episódica sob pena de abolir a própria estrutura narrativa» 22 .
Ora, ao privilegiarem o sequencial sobre o configuracional, os argumentos anti-narrativistas não reconhecem a combinatória entre ambas, bem como a continuidade do récit para a história, a estrutura teleológica e o carácter configuracional do acto narrativo, não reconhecendo portanto a natureza narrativa da história.
Num outro plano, o da natureza do discurso narrativo, importa ver se, não obstante as suas diferenças - as chamadas «pretensões referenciais» entre récit historique e récit de fiction -, se há uma estrutura comum que autorize a usar o conceito de récit como homogéneo, denotando um único modo de discurso. Tomando por base a análise estrutural da narrativa poder-se-ia dizer que há uma prioridade do aspecto configuracional do récit daí derivando a subordinação da sintagmática a uma paradigmática correspondente.Verifica-se, portanto, uma tendência para «descronologisar», sendo reduzidos os aspectos temporais a propriedades formais subjacentes.
E, tal como Ricoeur claramente explicita, deparamo-nos aqui com a ironia de onde parte essencialmente esta obra: «Enquanto a tendência de muitos historiadores era de privilegiar o carácter cronológico e sequencial da narrativa, e daí tirar argumentos contra o carácter narrativo da história, a tendência dos críticos literários de obediência estruturalista será, inversamente, de consignar o aspecto cronológico da narrativa somente à estrutura de superfície, à camada de 'manifestação' (Greimas) e de não reconhecer à estrutura profunda senão traços acrónicos» 23 .
Já em Propp se estava na via da descronologização da estrutura narrativa - o que implicava que todas as questões de génese e de história em geral fossem subordinadas às de estrutura - o que quer dizer que a tese morfológica sugeriria a tese genética... Em Greimas esse passo é decisivo com a pretensão «acrónica» do modelo actancial, verificando-se a passagem da sequência cronológica do récit a uma estrutura acrónica caracterizada por relações não sucessivas, ou melhor, construindo, segundo Ricoeur, um modelo paradigmático sem dimensão diacrónica originária.
Este é, no entanto, um modelo criticado por Ricoeur, nomeadamente porque considera existirem factores irredutivelmente sequenciais na narrativa: há uma «temporalidade» irredutível na narrativa. As noções de épreuve e de quête contêm, de imediato, esse carácter diacrónico indesmentível. Se para Greimas a noção de épreuve é como que um resíduo diacrónico na análise estrutural, para Ricoeur todo o movimento do contrato à luta, da alienação ao restabelecimento da ordem é sucessivo por natureza. É, portanto, a quête-intrigue o factor cronológico irredutível que narrativisa a própria intriga. Finalmente, diz Ricoeur: «Nous avions à défendre l'aspect confígurationnel du récit contre toute réduction de celui-ci à une simple anedoctique d'événements. Il nous faut maintenant nous battre sur l'autre front et défendre la dimension chronologique du récit contre toute réduction à une matrice achronique de pures relations logiques (...) La conjonction entre les deux argumentations semble suggérer que c'est un trait universal de tout récit, de fiction ou non, de conjoindre une dimension séquentielle et une dimension configurationelle. C'est cette conjonction ou cette compétition qui, selon moi, constitue Ia structure de base du récit» 24 .
O propósito da função narrativa é pois de apreender como um todo modalidades narrativas do discurso - do récit de fiction às formas empíricas como o romance histórico, a biografia, a autobiografia. Que diferentes modos narrativos - como o récit de fiction e o récit historique apresentem uma certa unidade estrutural e nesse sentido constituam um único jogo de linguagem - isso parece decorrer do que ficou exposto atrás. Veremos que para além de um jogo de linguagem comum aos dois récits há uma complementaridade entre ambos que os faz emergir, em última instância, na própria linguagem. Há uma complementaridade entre récit de fiction e récit empírico. Essa complementaridade não deriva só do fundamento da própria constituição inteligível da historicidade, da sua hermenêutica, mas é exigida por ela: temos necessidade do récit empírico e do récit de fíction para levar à linguagem a nossa situação histórica. É nesta troca entre história e ficção - e entra as suas pretensões referenciais opostas, que a nossa historicidade é levada à linguagem.
Convém referir que história e ficção têm pretensões referenciais opostas na medida em que a pretensão referencial da história ao real é directa e a pretensão referencial do récit de fiction é indirecta. Mas ainda que opostas elas são complementares: a pretensão da história é a de ser uma representação do real - por outro lado a pretensão da ficção é de reescrever o real a partir de um sistema auto-suficiente de símbolos, de uma poiesis l mimesis aristotélica, uma mise-en-intrigue cuja pretensão referencial é, indirectamente, o real.
Pode, portanto, dizer-se que história e ficção são ambas «verdadeiras» se bem que segundo modalidades diferentes, do mesmo modo que são diferentes as suas pretensões referenciais. Assim, se, por um lado, só a história pode articular a pretensão referencial como uma pretensão à «verdade», por outro lado os récit de fíction podem ter a pretensão de reescrever a realidade segundo as estruturas simbólicas da ficção.
E considerando que, por um lado, a dimensão mimética da ficção, não se referindo directamente à efectividade dos acontecimentos mas à sua estrutura lógica, à sua metaforização e significação, pode ligar directamente ao universal - e que, por outro Iado, a história, na sua preocupação de representar o real com mais ou menos rigor, deixa-se prender sobretudo ao contingente, esquecendo o essencial, não se poderia dizer, parafraseando Ricoeur, que «en nous ouvrant au différent, l'histoire nous ouvre au possible, tandis que Ia fiction, en ouvrant à l'irréel, nous ramène à l'essentiel»? 25 .
A narrativa é finalmente, a «guardiã do tempo» - e é a história enquanto narrativa que reinscreve o tempo vivido sobre o tempo cósmico, cabendo portanto à ficção resolver o que é negligenciado pelo tempo vivido.

Notas

[1]Michel Foucault, L'archéologie du savoir, Gallimard, Paris, 1969, p. 9.
2 Fernand Braudel, Écrits de l'Histoire, Flammarion, Paris, 1969, p. 50.
3 Op. cit., p. 61
5 Marc Ferro, «Fait-divers, fait d'histoire», Annales, Juillet-Août, 1983, pp.821-825.
6 Pierre Nora, «O acontecimento e o historiador do presente», A Nova História, Edições 70, Lisboa, 1983, p. 48.
7 Michel de Certeau, e outros, «A História, uma Paixão Nova», A Nova História, Edições 70, Lisboa, 1983, p. 21.
8 Fernando Gil, Provas, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, Lisboa, 1986.
9 Michel Foucault, op. cit., p. 170.
10 Op. cit., p. 18.
11 Michel Foucault, «La poussière et le nuage», L'impossible prison - Recherches sur le système
pénitentiaire au XIXe siècle, dir. Michelle Perrot, Paris, Éditions du Seuil, 1980, pp. 34-35, citado por Roger Chartier in «Le passé composé», Traverses, Théâtres de la Mémoire, nº 40, Avril 1987, Paris.
12 Roger Chartier, «Le passé composé», Traverses, Théâtres de Ia Mémoire, nº 40, Avril
1987, Paris.
13 Manuel Maria Carrilho, «Palomar, a essencial desarmonia do mundo», Expresso (Revista),
Dezembro de 1987, Lisboa, p. 69-R.
14 Michel de Certeau, Lécriture de l'histoire, Gallimard, Paris, 1984, p. 8
15 Roland Barthes, in Poétique, Février 1982, Paris.
16 Op. cit., p. 15.
17 Communications, nº 8, EHESS, Nov. 1966, Paris.
18 Paul Ricoeur, La Narrativité, CNRS, Paris, 1980.
19 Op. cit., p. 13.
20 Op. cit., p. 16.
21 Paul Ricoeur, Temps et Récit, Tome I, Éditions du Seuil, Paris, 1983, pp. 289-290.
22 Paul Ricoeur, La narrativité, p. 21.
23 Op. cit., p. 39
24 Op. cit., p. 41.
25 Op. cit., p. 67.

14.8.04

A Migração do Audiovisual para o Digital

Seminário «A Migração do Audiovisual para o Digital»


Resumo:

O Audiovisual está a atravessar neste início de século uma encruzilhada complexa, que se caracteriza por um conjunto de avanços e recuos na migração do analógico para o digital. Quer no âmbito jurídico-político e no enquadramento das políticas europeias, quer no âmbito estritamente tecnológico e nos mercados – do público ao privado -, quer ainda no plano dos conteúdos, da sua qualidade e da recepção, há toda uma reflexão a fazer de modo a melhor compreender esta transição de paradigma.

Programa:


1. Apresentação do Programa da cadeira

1.1 Caracterização dos conteúdos programáticos.
1.2 Sistema de avaliação.
1.3 Metodologias e Fontes.


2. Da ‘paleo-televisão’ à Convergência

2.1 O "estado da arte"
2.2 Fragmentação do modelo e multiplicidade da oferta.
2.3 O dispositivo comunicacional e a interactividade - um novo paradigma da comunicação?


3. Identidade cultural, diversidade e pluralismo

3.1 Da protecção cultural à cultura política na União Europeia.
3.2 A TV pan-europeia e o espaço europeu de comunicação.
3.3 Media, concentração, diversidade e pluralismo.
3.4 Questões sobre o dispositivo televisivo.


4. Lições das políticas audiovisuais europeias dos anos 80/90

4.1 Avaliação das Directivas do Audiovisual.
4.2 O Relatório do Grupo de Alto Nível.


5. Tendências do Audiovisual Europeu

5.1 A Política Audiovisual Europeia e o Digital.
5.2 O Futuro da Política Europeia de Regulação Audiovisual.


6. Serviço Público de Televisão: diversidade e qualidade face ao Digital

6.1 Proto e pós-televisão. Na pista da «qualimetria».
6.2 Televisão, diversidade e qualidade.
6.3 Figuras do público.


7. A Emergência dos Ambientes Digitais

7.1 Convergência soft, realidade hard.
7.2 Miragens Digitais.
7.3 Da regulação da Rede às redes de desregulação.


8. Novas Estratégias do Audiovisual

8.1 O Audiovisual na Europa e nos EUA.
8.2 A Perspectiva Europeia.
8.3 A Revisão da Directiva TVSF.


9. A Televisão Digital e as Políticas do Audiovisual no Contexto da Sociedade de Informação

9.1 Panorama da TDT nos EUA.
9.2 Conteúdos e Serviços da TDT na Europa.


10. O utilizador e a narrativa interactiva

10.2 Televisão Digital e Interactiva: o desafio de adequar a oferta às necessidades e preferências dos utilizadores.
10.3 TV Interactiva: ao encontro de um novo utilizador.
10.4 Narrativa interactiva.


11. Televisão, Interactividade e redes

11.1 Televisão Digital na Europa – Qual a Importância da Interactividade?
11.2 Da Televisão Interactiva à Televisão em Rede.
11.3 Da TDT à iTV – questões finais.


Bibliografia essencial

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Revistas
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Réseaux, nºs 118 (2003) e 126 (2004)
TELOS, nºs 57 (2003) e 62 (2005)

7.8.04

Escrita, Poder, Estado - o contexto da emergência da cultura alfabética




Écrire, ou diffuser par le livre, c'est s'impliquer dans le collectif, à un niveau où le désir ne peut plus directement être renvoyé comme tel; Lacan oppose avec justesse langage et parole: le premier sert à 'communiquer', mais forme un 'mur de langage', tandis que la parole cherche la réponse de l'Autre. (Catherine Clément)


Sem dúvida nenhuma que a História, e em particular o conhecimento, seguiram, a cada momento, como que subordinados, na dependência mais estreita das mudanças fulcrais, das descontinuidades, que se têm operado no domínio das mediações simbólicas e tecnológicas. Ao nível da escrita, o aparecimento dos primeiros mitogramas, e, mais tarde os ideogramas sumero-acadianos, a evoluir já para uma transcrição fonética, conseguida com o alfabeto de consoantes fenício e pouco depois pelo alfabeto vocálico e consonântico grego, são, a par do desenvolvimento do universo tipográfico e, enfim, de todas as novas tecnologias aplicadas aos media no universo pós-tipográfico e na sociedade pós-industrial, momentos capitais dessa evolução.
A escrita mitográfica, primeiro de todos esses elos e as representações pictográficas de objectos que traduziam, no fundo, a palavra que a eles se aplicava, tinham aliás uma relação estreita com a própria oralidade. Leroi-Gourhan defendia que previamente aos conjuntos simbólicos de figuras tinha forçosamente existido um contexto oral com o qual estavam coordenados e a partir do qual reproduziam espacialmente os valores [1] . Kristeva, por exemplo, defendia que inclusivamente dois níveis simbólicos aparentemente distantes, como a arte primitiva e a linguagem, se confundiam naquilo a que Leroi-Gourhan chamava «le couple intellectuel phonation-graphie».
De facto ele assim o assinala dizendo que o conteúdo das primeiras figurações parietais implicava já uma convenção de conceitos altamente organizados pela linguagem.
Do aparecimento dos primeiros grafismos para o aparecimento da escrita (em sentido restrito) é fundamental reter, por um lado, que há conjuntos simbólicos iniciais que não desaparecem e, por outro lado, que não se podem estabelecer cortes entre os processos pictográficos, ideogramáticos e fonéticos. O único corte a registar, se é que assim se pode dizer, no acto de fundação da escrita, é o momento em que a expressão gráfica se subordina completamente à expressão fonética pelo uso do dispositivo linear - processo a que Leroi-Gourhan chama a «conquista adquirida com a escrita» e que Deleuze considera, na reciprocidade de subordinação, como uma ruptura no próprio mundo da representação [2] .
«É no sentido do restringimento das imagens para uma rigorosa linearização dos símbolos que a escrita tende. Possuindo o alfabeto, o pensamento clássico e moderno possui mais do que um meio de conservar na memória o resultado exacto das suas aquisições progressivas nos diferentes domínios da sua actividade; dispõe de um utensílio pelo qual o símbolo pensado se submete à mesma notação na palavra e no gesto. Esta unificação do processo expressivo implica a subordinação do grafismo à linguagem sonora, reduz o desperdício de símbolos que é ainda característico da escrita chinesa e corresponde ao mesmo processo seguido pelas técnicas no decurso da sua evolução» [3] . Sem reconhecer a reciprocidade de subordinação entre a escrita e a voz fundadora, Gourhan capta assim o momento por excelência da instituição de um simbólico que já comporta em si toda a violência discriminante da origem, no acto de fundação da escrita.
É pois, este também, o acto de fundação do alfabeto vocálico e consonântico, que aqui nos interessa particularmente. Digamos que se atinge assim o ponto nodal de todo um processo evolutivo complexo que tem a sua origem próxima no simbolismo abstracto do sapiens e no dispositivo simbólico que tem na linguagem o seu instrumento principal. Este nível intermédio, antecipador directo do próprio dispositivo linear, assimila aliás todo um conjunto de fenómenos relativos à inserção espacio-temporal, sua possessão e ''domesticação" simbólica. Simultaneamente, como já referimos, é recusada a inumerabilidade do signo, o significante torna-se "despótico",
Apesar da relação estreita entre inscrição e oralidade não se pode dizer que haja uma prioridade do escrito sobre o vocal, ou, inversamente, do fonema sobre o grafema. Trata-se de uma questão sem sentido histórico, como referiu Kristeva [4] . A interacção entre ambos é que se revela esclarecedora. Da mesma forma que é pertinente a complexa rede interactiva entre a escrita e o poder, também o é a que se estabelece entre a escrita e o ídolo, ou entre a escrita e o Estado. Para já convém sublinhar que não se trata de proceder a filiações evolucionistas mas antes a observar ritmos de descontinuidade, clivagens, no processo de interiorização e divulgação do alfabeto fonético. A haver uma filiação histórica só poderá ser no sentido de que o que está hoje ligado simbolicamente, esteve verosimilmente ligado outrora por uma identidade conceptual e linguística. Leroi-Gourhan diria, de outro modo, que a nossa cultura electrónica tem por suporte um aparelho fisiológico que data de há 40 mil anos: «Toda a evolução psico-motriz, desde os primeiros vertebrados, processou-se por adição de novos territórios, que não suprimiram a importância funcional dos precedentes, preservando-lhes o seu papel específico, cada vez mais enraizado nas funções superiores» [5] .
De Leroi-Gourhan ficou entretanto em suspenso aquilo a que Deleuze/Guattari chamam o "paradoxo" que se desprende das suas análises: «As sociedades primitivas são orais não porque não tenham grafismo, mas, pelo contrário, porque o grafismo é aqui independente da voz, e marca nos corpos signos que respondem, reagem, à voz, mas são autónomos e não determinados por ela; pelo contrário, as civilizações bárbaras são escritas, não porque tenham perdido a voz mas porque o sistema gráfico perdeu a sua independência e as suas dimensões próprias, orientando-se pela voz, subordinando-se a ela, extraindo dela um fluxo abstracto desterritorializado que retém e faz ressoar no código linear da escrita» [6] .
A questão fundamental é portanto a da subordinação da expressão gráfica à fonética, a instituição do significante-despótico e, com ele, a expressão acabada da escrita como primeiro fluxo desterritorializado na sua origem imperial.
Contrariando de alguma forma Lévi-Strauss, que defendia a hipótese da aparição súbita da linguagem («Les choses n'ont pas pu se mettre à signifiquer progressivement. A la suite d'une transformation dont l'étude ne relève pas des sciences sociales, mais de la biologie et de la physiologie, un passage s'est effectué d'un stade où rien n'avait un sens, à un autre où tout en possédait») [7] , Leroi-Gourhan [8] defende, relativamente à escrita, que a sua emergência não se fez a partir do nada gráfico, não foi fortuita, da mesma forma que, por exemplo, a agricultura não existiu sem a intervenção de estádios de evolução anteriores; o seu conteúdo inicial não foi de igual modo fortuito. O símbolo gráfico pressupõe já em si uma linguagem humana. Inversamente, como referiu Derrida, qualquer linguagem supõe uma escrita originária. Tal como para o Estado, cujo acto de fundação deriva de um continuum e não propriamente de um momento zero, também para a linguagem e para a escrita o "momento zero" não existe. Esta uma questão que nos parece fundamental, até porque o seu cerne reside não nos mitos fundadores da origem, mas sim nas formas de variabilidade. O que interessa, pois, é a variação e não a origem da língua. Aproximamo-nos assim do conceito de grama em Derrida - a língua como movimento - o que permite exactamente a colocação de uma série de questões da ordem da política da língua e não exclusivamente da ordem do fonológico. Desaguamos nos Mille Plateaux [9] : «Toutes les langues sont en variation continue immanente: ni synchronie, ni diachronie, mais asynchronie, chromatisme comme état véritable et continu de la langue. Pour une linguistique chromatique, qui donne au pragmatisme ses intensités et valeurs».
Finalmente, e legitimando-nos no continuum, poderíamos afirmar, com Deleuze: subordinando-se à voz, o grafismo subordina a voz. «A voz deixa de cantar para ditar, editar; a grafia deixa de dançar e de animar o corpo para se escrever nas tábuas, nas pedras, nos livros (...). O rebatimento da grafia sobre a voz fez com que da cadeia saltasse um objecto transcendente, voz muda de que toda a cadeia parece agora depender, e em relação à qual se lineariza. A subordinação do grafismo à voz induz uma voz fictícia das alturas que já não se exprime, inversamente, a não ser pelos signos da escrita que emite (revelação)» [10] . Dito de outro modo, e ainda citando Deleuze/Guattari: «Em vez de um grafismo plurívoco com a forma do real, há uma bi-univocização que forma o transcendente de onde sai uma linearidade; em vez de signos não-significantes que compõem as redes duma cadeia territorial, há um significante despótico donde correm uniformemente todos os signos, num fluxo desterritorializado de escrita».
Tão importante, contudo, como analisar o contexto em que se verifica a subordinação da expressão gráfica à fonética é problematizar o sentido da emergência das diferentes mediações e a forma como elas se articulam com o poder. Da escrita mitográfica para a escrita alfabética, numa primeira análise, passamos de uma sociedade recolectora do Paleolítico para a economia de mercado que fundamenta a própria revolução urbana. Quer isto dizer que a escrita, a emergência da notação fonética, estaria à partida subordinada à evolução tecno-económica da civilização em que se insere, ou, pelo menos, interagindo entre o modo de comunicar e o modo de produzir dessa mesma civilização, ou, ainda, e um pouco mais longe, segundo Harold Innis, subordinando o próprio modo de produção.
Ora, sabendo-se que é com o fim do nomadismo recolector que surgem exactamente as economias produtora e de mercado, e, por acréscimo, se solidificam as sociedades em que se começa a notar a estratificação social, então concluir-se-ia que a escrita estaria também na base da própria emergência das sociedades com Estado. Por aqui se pode ir também ao encontro do que Jack Goody defende, a saber, que exactamente a variação dos modos de comunicar é tão determinante nas mudanças histórico-estruturais como a dos modos de produzir.
Avancemos, porém, com Lévi-Strauss [11] que identifica a escrita como uma "técnica de opressão": «O único fenómeno que a tem fielmente acompanhado é a formação das cidades e dos impérios, isto é, a integração num sistema político de um número considerável de indivíduos e a sua hierarquização em castas e classes (...) ela parece favorecer a exploração dos homens, antes da sua iluminação. Se a minha hipótese for exacta, é necessário admitir que a função primária da publicação escrita foi a de facilitar a servidão. Percebe-se assim porque é que a luta contra o analfabetismo se confundia segundo Lévi-Strauss, com o reforço do controle dos cidadãos por parte do Estado.
Há, no entanto, algo a ressalvar relativamente à posição de Lévi-Strauss. Partindo do pressuposto de que há sempre uma função de subordinação a atravessar a função de comunicação, pode concluir-se que é ilusório procurar na escrita a origem de toda e qualquer hierarquia ou dominação [12]. No limite poder-se-ia dizer que a própria relação significante/significado é já uma relação de subordinação [13] . Ora, se a escrita não é realmente a origem de toda a hierarquia, isso quer dizer que formas de subordinação anteriores já tinham sido estabelecidas - e essas poderiam inclusive ser as de outras sociedades com Estado, ou pelo menos de sociedades hierarquizadas pelo regime de consanguinidade; não poderiam ser, de qualquer modo, sociedades sem língua. Ao privilegiar exactamente não o mito fundador da escrita, mas antes a sua função de continuum de dominação, Goody aproxima-se, claro, de Deleuze.
Num outro texto, Lévi-Strauss [14] retoma a sua tese anterior, situando-a geográfica e politicamente, e considerando, de certa maneira, ao contrário de Jack Goody, que a escrita está de facto na origem de sociedades hierarquizadas: «Le seul phénomène qui semble toujours et partout lié à l'apparition de l'écriture, non pas seulement dans la Méditérrannée orientale mais dans la Chine proto-historique, et même dans les régions de l'Amérique oú des ébauches d'écriture étaient apparus avant la conquête, c'est la constitution de sociétés hierarchisées qui se trouvent composées de maîtres et d'esclaves, de sociétés utilisant une certaine partie de leur population pour travailler au profit de l'autre partie. Et quand nous regardons quels ont été les premiers usages de l'écriture, il semble bien que ces usages aient été d'abord ceux du pouvoir: inventaires, catalogues, recensements, lois et mandements». Esta é já de facto uma outra questão, implícita também em Goody quando defende o papel da escrita na mise-en-place de novos modos de dominação. Poder-se-ia prosseguir a partir do mot d' ordre contido na linguagem uma vez que, como refere Deleuze, o marcador de poder está já contido na própria linguagem, é-lhe uma função intrínseca.
McLuhan fala da agressividade de organização do modelo romano na irradiação do poder do centro para a periferia. Ele vê a formação e alargamento do Império assentes sobretudo nesse alicerce de poder que era a própria escrita. Aliás, cita o declíneo do Império Romano, no século V, não a partir das invasões bárbaras e da crise interna, mas sim do próprio sistema de comunicações entre o centro e a periferia. Justifica-o citando Seltman (Approach to Greek Art): «Os gregos não se aproveitaram tanto da alfabetização quanto os romanos com a sua alta organização de produção de papel e comércio de livros. Atribui-se ordinariamente ao declíneo dos suprimentos de papiro, no último período do Império Romano, o colapso dos impérios e do seu sistema de estradas. A estrada romana era, com efeito, em todos os sentidos, a estrada do papel» [15] . Anotemos, no entanto, que para McLuhan a assimilação e interiorização da tecnologia do alfabeto fonético transfere o homem do mundo mágico da audição para o mundo neutro da visão, isto é, da "esfera tribal" para a "esfera civilizada".
A questão da função da escrita na variabilidade da dominação é ainda retomada por Goody: "L'acquisition du langage est à la base de tous les institutions sociales, de tout le comportement normatif» [16] ; ou: «Il est clair que l'adoption de formes écrites de communication fut une condition intrinsèque du développement d'états plus étendus, de systèmes de governement plus impersonnels et plus abstraits» [17] . De sublinhar, portanto, que a adopção de formas escritas de comunicação foi uma condição intrínseca e não «a» condição...
Passemos da questão do estabelecimento de linhagens hierárquicas e da emergência do Estado para a questão do poder - e de Goody para Pierre Clastres. Fundamentalmente de raiz cultural, a questão da natureza e origem do poder nas sociedades ditas arcaicas «terá o seu momento de fundação quando essas mesmas sociedades abandonam a economia de subsistência e descobrem a escrita, passando, no limite, de sociedades sem poder para sociedades com Estado, considerando-se, no entanto, que nenhuma classificação das sociedades empíricas nos pode esclarecer nem sobre a natureza do poder político nem sobre as circunstâncias do seu advento» [18] . Se Lévi-Strauss defendia que o Estado surgia com a escrita, Clastres não o nega, embora reconheça que o poder político e o Estado propriamente dito não admitem um "grau zero". Clastres cita depois Lapierre para sublinhar que «o poder realiza-se numa relação social característica: comando-obediência», resultando daqui que as sociedades onde não se observa esta relação essencial são sociedades sem poder. Logo - o poder fundamentar-se-ia sim nessa relação essencial.
A questão que se levanta é a seguinte: se num acto ilocutório há sempre uma função de subordinação - e considerando-se que uma tal hierarquia é no fundo uma relação comando-obediência, aliás tal como Nietzsche defende - «é pela linguagem e não pelo trabalho que passa a relação do senhor e do escravo» ou como em Deleuze/Guattari: «A dominação exerce-se através e na transcendência do significante» (Anti-Édipo): ou ainda: «Na linguagem antes do império da ordenação sintáctica, há o império da ordem, do veredicto» (Mille Plateaux) -, então teríamos que concluir que não existem sociedades sem a relação de subordinação comando-obediência, sem poder, desde que se estabeleçam formas empíricas de comunicação.
Clastres volta atrás e pergunta, exactamente, se o poder político existe unicamente numa relação que se resolve numa relação de coerção (o ser do poder: a violência), isto é, se quando não se verifica, como vimos, a relação de coerção-violência, se deixa de poder falar de poder. Conclui que «não é evidente que coerção e subordinação constituam a essência do poder político em toda a parte e em todo o sempre» [19] . Só aparentemente no entanto se trata de um paradoxo uma vez que Clastres introduz a forma não coerciva de poder, específica das sociedades sem língua. Portanto, em determinadas sociedades, formas não coercivas de poder antecipam-se à própria linguagem.
Esta interpretação divergirá, enfim, de Goody (e de Lévi-Strauss) que não se referem a um poder não-coercivo. Apontam, quer à subordinação hierárquica intrínseca à função de comunicação, quer às primeiras utilizações da escrita por parte do poder, respectivamente uma função de subordinação e uma estratégia de opressão. "Coerção" e "subordinação" constituem assim, no limite, a essência do acto de comunicação, e, enfim, do poder. «Induisant à croire que l'écriture survient au pouvoir (on peut en général, et on peut écrire à l'occasion), qu'elle peut s'allier à lui, le prolonger d'un complément ou le servir, Ia question laisse penser que l'écriture peut arriver au pouvoir, ou le pouvoir à l'écriture. Elle exclut d'avance qu'on identifie l'écriture comme pouvoir ou qu'on reconnaisse le pouvoir dès l'écriture. Elle auxiliarise, et vise donc à dissimuler que l'écriture et le pouvoir ne s' exercent jamais separément, si complexes que soient les lois, le régime ou les relais de leur collusion (...) L'écriture n'arrive pas au pouvoir. D'avance elle y est, elle en a et elle en est» [20] .
No fundo, e ao contrário do que propõe Clastres, o que nos parece fundamental é não separar a questão da emergência do poder (e do político) da da linguagem. Há, com efeito, uma circularidade constante entre as diferentes mediações, tornando-se impossível a cristalização de qualquer prioridade ou sequência de uma relativamente à outra.
Parece-nos assim retomarem-se aqui posições já expressas no domínio exactamente da antropologia política. O evolucionismo de Morgan pressupunha uma passagem das sociedades sem Estado para as sociedades com Estado baseada quer na consanguinidade quer na territorialidade. Evans-Pritchard, por seu lado, é abertamente contra o "mito" fundador do Estado e prefere, tal como Clastres, uma omnitemporalidade do político assente no estabelecimento da ordem social (para Pritchard as linhagens seriam já uma espécie de linguagem que traduziria a própria estrutura social e política da sociedade).
A questão da origem do Estado é na perspectiva de Evans-Pritchard (e também de Fortes) uma questão meramente filosófica, aceitando, no entanto, que de sociedades muito pequenas onde a estrutura política se confunde com a estrutura de parentesco se tenha evoluído para sociedades com uma autoridade centralizada, um aparelho administrativo e instituições judiciais. Há ainda a reter a proposta de Southall [21] em que se sugere um continuum entre as sociedades sem Estado e as sociedades com Estado, sem que de qualquer modo se esqueça que há um momento em que o rei-déspota mediatiza autonomamente grupos de interesses: «Os papéis políticos especializam-se à custa dos papéis rituais» [22] .
Chegamos então ao momento da instauração da máquina despótica. O déspota regula os mecanismos de inscrição, as marcas na carne e coloca-se em filiação directa com Deus: «O corpo pleno como socius deixou de ser a terra, é agora o corpo do déspota ou o seu Deus (...) A máquina é que se modificou profundamente: em vez da máquina territoral, há a mega-máquina do Estado, pirâmide funcional em cujo cume está o déspota» [23] .
Com ele, obviamente, o seu séquito, domesticador do espírito selvagem, agora bárbaro, autênticos agentes de desterritorialização, filiadores da inscrição imperial, à frente dos quais se encontram os escribas e os sacerdotes. Mas vejamos de que forma através do sacerdote se verifica a figuração da inscrição imperial. A partir de Warburton (Essai sur les hiéroglyphes des Egyptiens) finda a crença de que o padre egípcio inventou os hieróglifos com o único objectivo de «cacher leur science au vulgaire» (a vehicle for secrecy) foi de igual modo desmistificado o sentido de dissimulação imanente à origem da escrita, ao seu mito fundador. Retirado o effet de voile à origem da escrita e todo o efeito de enigma que o seu mito fundador circunscrevia há que reconhecer que é exactamente nesta errância da marca, nos sentidos contraditórios que antecedem o significante despótico, que ganha forma o poder do déspota. «Le vulgaire ne sait plus alors où donner de la tête, où trouver le maître-sens, le dépôt où la disposition du savoir» [24] . Trata-se pois de um regime pré-significante onde impera a inscrição nómada, arbitrária, embora territorializada.
Quando o valor representativo do signo afecta o próprio espaço do domínio simbólico do poder, isto é, quando a marca é óbvia, rapidamente é substituída por signos abstractos que concedem, por acréscimo, ainda mais poder ao já de si arbitrário poder do déspota. É curioso notar que a própria invenção da escrita alfabética era atribuída no Egipto ao secretário do Rei - o verdadeiro hierofante - se bem que no domínio da mitologia fosse atribuída a Toth, o verdadeiro escriba dos deuses - o deus da sabedoria e da arte de escrever.
O secretário do Rei teria substituído finalmente as coisas por palavras, sobretudo com o objectivo de assegurar uma inequívoca circulação da informação ao nível do poder. Nesse aspecto a escrita fonética não deixava de constituir um "segredo de Estado", uma escrita de poder, tarefa facilitada dado tratar-se agora de um veículo invisível e não de um hieróglifo.
Particularmente evidente no Egipto onde, apesar de tudo, as marcas continuaram a prevalecer mesmo depois da emergência da escrita, é o facto do padre colocar a alternativa do alfabeto "sagrado" ao político, após, efectivamente, a radicação e ''democratização" da fonetização. Digamos que, descodificado um segredo, um novo código, novo enigma, deve surgir, sob pena de estabilização, ou mesmo redução, da dominação simbólica e, claro, da hegemonia da casta sacerdotal. Trata-se, no fundo, da função clerical de assegurar a expansão dos círculos de signos, isto é, da sua recapitalização.
Da mesma forma que no acto de fundação da escrita há um sistema de representação simbólica semelhante, extensível às grandes civilizações da Antiguidade, também se verifica, quer no Egipto, quer na China, quer na América, ainda que com variações ao nível hierárquico, a presença do Secretário-déspota, que pode ser o reth, ministro, o sábio, o escriba.
O alfabeto, no fundo, opera à transferência do poder da classe sacerdotal para a classe militar: «O alfabeto significou o poder, a autoridade e o controle das estruturas militares à distância. Quando combinado com o papiro, o alfabeto decretou o fim das burocracias templárias e dos monopólios sacerdotais do conhecimento e do poder» [25] . Enquanto na posse da classe sacerdotal a escrita ainda não está em definitivo sobre-codificada, sofre portanto constantes recapitalizações - é esse pelo menos o caso do Egipto que conheceu os hieróglifos, a escrita hierática (que os gregos pensavam exactamente ser do uso exclusivo dos sacerdotes, embora fosse do uso laico) e a escrita demótica, ''popular''. Os hieróglifos, como já referimos, foram porém utilizados até ao século V, como escrita monumental, de revelação, sendo pois por excelência a escrita "sagrada" [26] .
Todo o sistema primitivo passa a ser sobre-codificado pela formação imperial. Segundo Deleuze/Guattari é esta sobre-codificação que define precisamente a operação que constitui a essência do Estado. Mais: é o déspota que faz a escrita, é a formação imperial que faz do grafismo uma escrita propriamente dita. «Legislação, burocracia, contabilidade, cobrança de impostos, monopólio de Estado, justiça imperial, actividade dos funcionários, historiografia - tudo se inscreve no cortejo do déspota» [27] .
Atendendo ao nomadismo ideográfico egípcio, o que o déspota faz, em última instância, não é a escrita, mas uma reescrita, dando constantemente a ver a máscara, reterritorializando o significante durante tanto tempo quanto o necessário por forma a não permitir a legibilidade do rosto, e portanto a manter o segredo. Este parece-nos ser de qualquer modo um caso excepcional, visto que na maior parte das civilizações verifica-se de facto uma transição nítida das castas sacerdotais para as militares com tudo o que isso implica ao nível da radicação do dispositivo linear - aquele que melhor servia às "estradas de papel", e aos grandes impérios militares e coloniais.
A ausência da escrita não servia tanto o arbítrio do déspota quanto a sua efectiva radicação, fosse ela pré-significante, ou significante-despótica. Alfabetizar era pois reforçar o poder sobre os alfabetizados, vinculando-os ao código hegemónico.
Finalmente, com a radicação do dispositivo linear é sobretudo o movimento de desterritorialização que impera. "Os signos da terra" são substituídos pelos "signos abstractos". Para trás ficam portanto os geo-grafismos, o território de ressonância da inscrição, do código e da marca primitiva. No novo regime "o significante é o signo que se tornou signo do signo, o signo despótico que substitui o signo territorial, que franqueou o limiar de desterritorialização; o significante não é mais do que o signo desterritorializado. O signo que se tornou letra. O desejo já nem se atreve a desejar, tornou-se desejo de desejo, desejo do desejo do déspota. A boca já não fala, bebe a letra. O olho já não vê, lê. O corpo não se deixa gravar como a terra, prostra-se em frente das gravuras do déspota, a outra terra, o novo corpo pleno» [28] .
Fica então a questão do efeito de palimpsesto, enfim, como diria Deleuze, a questão de preexistirem máquinas imperiais relativamente às formações históricas tradicionais: «em última análise já não se sabe quem é, de facto, primeiro, nem se a máquina territorial de linhagens não pressupõe uma máquina despótica» [29]
Trata-se no fundo de inverter a relação entre a letra e o ídolo - o ídolo nasce da letra e não o contrário, como se pretendia inclusive na mitologia, fazendo derivar a escrita do próprio Toth [30] . No limite há sempre uma escrita prévia, uma religião. «Pas de premier texte, pas même de surface vierge pour son inscription, et si le palimpseste exige la matière d'un support nu pour une archi-écriture, pas de palimpseste» [31] .
A escrita, o poder e o Estado, encobrem, no fundo, a máquina despótica, gerando como que um mega-efeito de latência. Desvendado o enigma do palimpsesto, verificar-se-á deste ponto de vista que é a política que produz a língua, que o princípio constitutivo da linguagem não está na língua mas na máquina abstracta. É nela que provavelmente tudo se funda.
Voltando, porém, à questão da instauração da máquina despótica e tomando como referência os autores aqui mencionados, bem como outros, aos quais nos referiremos, vemos que a emergência da escrita altera de facto radicalmente todo o universo da oralidade, nomeadamente nos seguintes aspectos: operando à transição de universos audiotácteis e sagrados para universos profanos, onde impera a ordem visual (McLuhan e Mircea Eliade); operando à transição de universos mágicos e mitopoiéticos para universos onde emerge a razão, lógico-empíricos (Vernant e Cassirer); delineando a passagem de sociedades fechadas, que têm como que uma unidade biológica, para as nossas sociedades abertas que funcionam por meio de relações abstractas, tais como trocas, cooperação, alfabeto (Karl Popper, Deleuze/Guattari) enfim, levando à emergência de novos modos de dominação que correspondem, no fundo, à introdução de um novo modo de comunicação, instituindo assim um novo dispositivo de sujeição inerente à mega-máquina da formação imperial desconhecido das sociedades orais conforme defendem Jack Goody e nomeadamente Louis Quéré: «en modifiant le système de communication, l'écriture transforme non seulement le système socio-culturel mais aussi tout le mode de domination. Plus précisément, elle substitue une domination anonyme, abstraite et décontextualisée, à une domination médiatisée par des individus (anciens, prêtes, propriétaires fonciers...) et par le groupe de voisinage (controle par la convenance). L'écrit est en effet corrélatif non seulement de la constitution d'un appareil de domination bureaucratique (possibilité d'enregistrement et de comptabilisation) mais aussi de l'avènement de l'échange marchand et de la Loi comme moyens de régulation dominants» [32] .

Notas:

[1] André Leroi-Gourhan, O Gesto e a Palavra, Vol. I, «Técnica e Linguagem», Lisboa, Edições 70, s/d, p.197. Ver também, do mesmo autor, L'art pariétal - Langage de la préhistoire, Grenoble, ed. Jerôme Millon, 1992.
[2] Gilles Deleuze e Felix Guattari, O anti-édipo, Lisboa, Assírio e Alvim, s/d., p.162.
[3] André Leroi-Gourhan, O Gesto e a Palavra, Vol I, p. 210.
[4] Julia Kristeva, Le langage, cet inconnu, Paris, Éditions du Seuil, 1981, p. 29.
[5] Leroi-Gourhan, O Gesto e a Palavra, Vol II, «Memória e Ritmos», Lisboa, Edições 70, 1983, p. 221.
[6] Deleuze/Guattari, O anti-édipo, p. 161.
[7] Citado por Julia Kristeva, Le langage cet inconnu, p. 52.
[8] Leroi-Gourhan, O Gesto e a Palavra, Vol I, p. 201.
[9] Deleuze/Guattari, Mille Plateaux, Paris, Éditions de Minuit, 1980, p. 123. No que concerne à questão da linguagem ver também Robert Lafont, Anthropologie de l'écriture, Paris, CGP, 1984, p. 11: «A questão da origem da linguagem e da sua data de emergência no processo de hominização da espécie é simultaneamente inelutável (é central na antropologia) e, à falta de documentos, indecidível. O mais simples e menos arriscado é crer na única referência existente de uma actividade humana que poderá se inscrever em linha evolutiva na órbita da lingugem: o traço como antepassado da escrita».
[10] Deleuze/Guattari, O anti-édipo, p. 164.
[11] Claude Lévi-Strauss, Tristes trópicos, Lisboa, Edições 70, 1981, pp. 295-296.
[12] Ver designadamente Jack Goody, La raison graphique, Paris, Éditions de Minuit, 1979.
[13] Deluze/Guattari, O anti-édipo, p. 193.
[14] Georges Charbonnier, Entretiens avec Claude Lévi-Strauss, Paris UGE, 1971, p.32.
[15] Marshall McLuhan, A Galáxia de Gutenberg, São Paulo, CEN, 1977, p.97.
[16] Jack Goody, La raison graphique, Paris, Éditions de Minuit, 1979, p. 46. Ver ainda do mesmo autor «Alfabetos y escritura», Historia de la Comunicación, Raymond Williams (ed.), Barcelona, Bosch Comunicación, 1992.
[17] Goody, La raison graphique, p. 56.
[18] Pierre Clastres, A sociedade contra o Estado, Porto, Afrontamento, 1975, p.9.
[19] Clastres, op. cit., p. 11
[20] Jacques Derrida, «Scribble», Essai sur les hiéroglyphes des Égyptiens de William Warburton, Paris, Aubier-Flammarion, 1978.
[21] Cf. Marc Abélès, Poder, Sociedade, Simbólico, Lisboa, A Regra do Jogo, 1977.
[22] Abélès, op. cit., p. 34.
[23] O anti-édipo, p. 155.
[24] Jacques Derrida, «Scribble», p. 32.
[25] Marshall McLuhan, Os meios de comunicação como extensões do homem, São Paulo, Cultrix, 1979, p. 101.
[26] Marcel Cohen, A escrita, Lisboa, Europa-América, s/d., pp. 36 e ss.
[27] Deleuze/Guattari, O anti-édipo, p. 161.
[28] Deleuze/Guattari, op. cit., p. 164.
[29] Ibid., p. 175.
[30] Patrick Tort, «Transfigurations», Essai sur les hiéroglyphes des Égyptiens de William Warburton, Paris, Aubier-Flammarion, 1978.
[31] Jacques Derrida, «Scribble», op. cit., p.42.
[32] Louis Quéré, Des miroirs équivoques - aux origines de la communication moderne, Paris, Aubier-Montaigne, 1982, pp. 124-125.
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