21.8.04

No grande jogo da História

Leia-se a «abertura» de L' archéologie du savoir: «Voilà des dizaines d' années maintenant que l'attention des historiens s' est portée, de préférence, sur les longues périodes comme si, au-dessous des péripéties politiques et de leurs épisodes, ils entreprenaient de mettre au jour les équilibres stables et difficiles à rompre, les processus irréversibles, les régulations constantes, les phénomènes tendanciels qui culminent et s' inversent après des continuités séculaires, les mouvements d' accumulation et les saturations lentes, les grands socles immobiles et muets que l'enchevêtrement des récits traditionnels avait recouverts de toute une épaisseur d' événements» [1] .
Lance-se o primeiro dado: às sucessões lineares que foram até então, por excelência, o objecto de investigação, sucedeu-se um jogo de desprendimentos (décrochages) em profundidade. Ora, aproximadamente na mesma altura, em disciplinas como a história das ideias e das ciências, das mentalidades e também da literatura, nestas disciplinas que escapam em grande parte ao trabalho do historiador e aos seus métodos, a atenção deslocou-se das vastas unidades que eram descritas como «épocas» ou «séculos» para fenómenos de ruptura.
As totalidades diluem-se assim em redistribuições, interrupções, descontinuidades. As «tendências seculares» que anteriormente permitiam falar de relações fixas e de coerência nas estruturas, confrontam-se agora inevitavelmente com o que Foucault designou de irrupção dos acontecimentos nas estruturas que a história tradicional pretende sem labilidade. Veja-se, por exemplo, em Braudel: «Pour nous, historiens, une structure est sans doute assemblage, architecture, mais plus encore une réalité que le temps use mal et véhicule très longuement. Certains structures, à vivre longtemps, deviennent des éléments stables d'une infinité de générations. Elles encombrent l'histoire, en gênent, donc en commandent, l'écoulement» 2 . Poder-se-ia inclusive esboçar uma crítica a Braudel em três momentos: em primeiro lugar pela insustentável estabilidade das estruturas; num segundo momento porque a própria crise das grandes narrativas dificilmente deixará ainda crer que a história possa ser uma explicação do social em toda a sua realidade 3, em terceiro lugar porque a história narrativa se reapropriou da noção de acontecimento enquanto ocorrência ou «irrupção», ultrapassando assim o impasse da crítica do positivismo como crítica do événementielle. O próprio Marc Ferro vem a considerar, nos Annales, o fait-divers como objecto de história privilegiado, como uma necessidade da história 5 se bem que acabe por não fundamentar a rigor esse objecto da micro-história. E é curioso notar, por exemplo, que Pierre Nora considerou que o acontecimento em relação à história tradicional havia mudado de natureza devida à transformação operada pelos media, criando sistema de inflação fenomenológica 6 .
A própria cientificidade do trabalho histórico passa a ser problematizada. Michel de Certeau faria comparações com o estatuto da crónica, narrativa equívoca adstrita a um sujeito de enunciação, e dizia que a história não é científica se por científico se entender o texto que explicita as regras da sua produção 7. E se é óbvia a crise que resulta da falência das noções de testemunho, documento, prova (e outras) isso não implica que a paixão pelo carácter narrativo das discursividades e da história se registe a um outro nível da razão. Fernando Gil diria que a prova é uma arte, mas uma arte que transporta em si o rigor da nacionalidade científica 8 .
A história narrativa surge assim indubitavelmente não já na ordem da duração ou das estruturas, mas na ordem do discurso procedendo a novos questionamentos quer do documento, quer do testemunho, enfim, das modalidades de explicação do real, das formas de argumentação e da prova, do diferendo e da impossibilidade de testemunhar, da ordem morfológica e dos seus impasses, da performatividade, da modelização.
No limite, a história, enquanto escrita de ficção ou «arte de encenação» como lhe chamava Certeau, rege-se nas suas concretizações discursivas, submetendo-se à actualidade do(s) saber(es), reciclando os seus próprios isomorfismos, as hierarquias de importância em todo esse trabalho, fundando uma prática científica, uma «ciência», mas de modo a subtrai-la à ideologia do seu passado e revelando esse passado como ideologia. É sem dúvida essa grande inquietação crítica, o novo questionar do documento, do testemunho e da prova, que conduz, no trabalho do historiador, a uma reavaliação da interpretação a fazer das práticas discursivas, do discurso histórico e do arquivo, enfim, da nova ordem do discurso e da sua improbabilidade legitimadora.
Em causa, portanto, uma história-devir, feita de dinamismo interno, uma história que coloca a sua abertura em oposição à «imobilidade das estruturas», ao seu sistema fechado, e substitui a procura da totalidade pela análise da raridade, isto é, pela descrição de um conjunto de enunciados não enquanto totalidade plena e pictórica mas enquanto únicos conjuntos significantes que foram enunciados entre uma infinidade de possíveis. Daí, por exemplo, a sua definição de arquivo: o arquivo não é a soma de todos os textos, a acumulação dos documentos, mas a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento de enunciados como acontecimentos singulares 9 .
Daí também que a prática arqueológica se coloque como uma proposta de atingir na sua totalidade lógica os conceitos de uma época, as condições reais de uma interrogação e de um saber analisando o princípio de coesão das séries, vendo qual o «sistema vertical» que são susceptíveis de formar, quais as relações entre as séries, etc. 10. Poder-se-á acrescentar, no limite, que interessa observar se se constituirá ou não um sistema vertical não apenas entre traços, séries de traços, etc., permitindo a descrição de determinados isomorfismos inter-estruturais, dispositivos histórico-culturais, invariantes comuns, redes de simultaneidades, a partir exactamente das homologias formais entre diferentes conjuntos.
Torna-se finalmente necessário desmistificar a instância global do real como totalidade a restituir. Não existe «o» real que se reencontraria na condição de falar de tudo ou de certas coisas mais «reais» que as outras, e que se perderia se nos limitássemos a trabalhar sobre abstracções inconsistentes, sobre outros elementos, outras relações: «(...) Un type de rationalité, une manière de penser, une technologie, un ensemble d' efforts rationnels et coordonnés, des objectifs définis et poursuivis, des instruments pour l'atteindre, etc., tout cela c' est du réel, même si ça ne prétend pas être Ia rationalité elle-même, ni la société tout entière» 11 . O essencial não reside portanto na distinção ou discriminação dos «níveis de realidade», como sublinhou Roger Chartier, mas sim na compreensão de como a articulação dos regimes de práticas e de séries de discursos produzem aquilo que se designa como «realidade» 12 .
Nessa trajectória, nessa mise-en-abîme transdiscursiva procura-se fundamentalmente, reduzindo e intensificando a nossa relação com o mundo, a detenção nos fragmentos, as cintilações, o registar visibilidades, revendo-nos neles e ao mesmo tempo vendo como se afastam de nós. A própria literatura parece ser muitas vezes mais sensível a estas questões do que a história como bem se assinalava relativamente a Italo Calvino: «A pendular oscilação das referências e a permanente metamorfose do sentido de tudo impedem cada vez mais Palomar de ajuizar sobre o mundo, afastam-no das normas universais e da esperança da compreensão das coisas» 13 . Dir-se-ia finalmente que se a única procura histórica do «sentido» é a do outro, é porque, nas palavras de Certeau, este projecto, contraditório, «vise à 'comprendre' et à cacher avec le sens l'altérité de cet étranger, ou, ce qui revient au même, à calmer les morts qui hantent encore le présent et à leur offrir des tombeaux scripturaires» 14 .
As condições de possibilidade de uma história-devir, inacabada, passam, em primeiro lugar, pela recusa das modalidades de legitimação do trabalho dos historicismos e dos seus sucedâneos. Um dos autores europeus que a par de Foucault mais tem trabalhado estas condições de possibilidade é Paul Ricoeur. Colocando a hipótese da existência de uma unidade funcional entre os múltiplos modos e géneros narrativos (das narrativas que têm uma pretensão à verdade histórica às que a não têm) e tratando a qualidade temporal da experiência como referente comum à história e à ficção como pontos de partida da sua reflexão, os seus trabalhos têm constituído nos últimos anos pontos de referência essenciais para a problematização da história.
Recuemos um pouco no tempo: é nos anos 60 - época de ouro, por assim dizer, do estruturalismo francês - que a «velha» oposição entre récit fictif e récit historique é repensada de forma radical, encontrando-se, por exemplo em Roland Barthes, a explicitação de uma ruptura fundamentada em termos teóricos no texto «Le discours de l'histoire» 15. Aí, Barthes perguntava-se se «(...) la narration des événements passés, soumise communément, dans notre culture, depuis les Grecs, à Ia sanction de Ia science historique, placée sous Ia caution impérieuse du réel, justifíée par des principes d' exposition rationelle, (si) cette narration differe-t-elle vraiment, par quelque trait spécifique, par une pertinance indubitable, de Ia narration imaginaire, telle qu'on peut Ia trouver dans l'épopée, le roman, le drame?»... O texto em si é a resposta a esta questão. Barthes parte do discurso de historiadores e de autores clássicos como Heródoto, Maquiavel, Michelet, para desenvolver esta sua abordagem do tema, que, diga-se, surge praticamente isolada, não fosse o caso de existirem algumas referências esparsas no contexto da historiografia anglo-americana.
Para Barthes, os sinais de enunciação no enunciado histórico visam, mais do que dar ao historiador a possibilidade de exprimir a sua subjectividade, pôr em confronto dois tempos: aquele que designa como «tempo crónico da história» e o do «discurso», do «tempo-papel», este, segundo Barthes, nâo-cronológico: «La présence, dans Ia narration historique, de signes explicites d'énonciation viserait à 'déchronologiser' le 'fil' historique et à restituer, ne serait-ce que à titre de réminiscence ou de nostalgie, un temps complexe, paramétrique, nullement linéaire, dont l'espace profond rappelerait le temps mythique des anciennes cosmogonies, lié lui aussi par essence à la parole de poète ou du devin» 16 .
As grandes questões referentes ao discurso da história estavam assim enunciadas: por um lado, o fim da dicotomia récit de ftctionlrécit historique; por outro, a tentativa de encontrar a linha de demarcação entre o tempo cronológico e o não-cronológico.
Numa perspectiva meramente linguística poder-se-á aceitar que as marcas de enunciação explicitam um tempo não-cronológico, configuracional. Porém, a radicalidade com que esses dois tempos se confrontam é bem mais complexa - e fulcral. Digamos que a mais importante contribuição de Barthes se situa, na sequência do seu texto «Introduction à l'analyse structural du récit»17 em defender que no enunciado histórico se encontram as mesmas classes de unidades de conteúdo que se encontravam no récit de fiction. O que está, pois, em causa é justificar a história como arte de encenação ou como narrativa, sem descurar o pressuposto elementar, a razão legitimadora, a coerência do programa. Será portanto necessário, em primeiro lugar, ir ao encontro da natureza narrativa da história.
Para Paul Ricoeur, em «La narrativité»18 , estudo onde todo esta questão é claramente problematizada - e que é uma espécie de introdução à trilogia de Temps et récit - podem ser considerados dois aspectos distintos na constituição narrativa do conhecimento histórico. O primeiro é o conceito de discurso narrativo - série de acontecimentos com uma ordem específica, que deixa já antever que a «história dos historiadores» é uma espécie do género história contada. Gallie reconhecia já em 1968, em Philosophy and Historical Understanding, que o que impedia historiadores e epistemólogos de reconhecer esta verdade era o preconceito que tinham em considerar exactamente a relação entre história e ficção, dado estarem demasiado absorvidos pelas «evidências» na história, isto é, a prova documental, o arquivo, a tradicional oposição história-crónica versus história-ciência, etc.
A leitura de história deriva, portanto, da nossa competência em seguir histórias, em «seguir uma narrativa», sendo portanto a história um tipo particular de narrativa. Ricoeur põe claramente em evidência este aspecto: a história dos historiadores (history) enquanto récits de acções humanas passadas, são susceptíveis de «ser seguidas ou compreendidas da mesma maneira geral que o são todas as histórias (stories)» 19 .
A questão da natureza narrativa da história não é, porém, uma questão absolutamente pacífica. A prová-lo estão os infindáveis argumentos anti-narrativistas que se poderiam encontrar na teoria da história. De uma forma geral toda essa genealogia das escolas que têm problematizado a natureza da história, têm vindo a considerar que, por um lado, ela nada tem a ver com os géneros literários, e, por outro, que deve ser considerada como não-événementielle, assim fazendo a crítica do historicismo. É importante referir que no conjunto dos historiadores não-narrativistas Ricoeur começou por escolher significativamente Fernand Braudel e Paul Veyne. Braudel porque, a pretexto do acontecimento ser uma «oscilação curta, rápida e nervosa» e servir assim exclusivamente ao retomar da histoire-bataille, defende uma história da longa duração, das estruturas macro-históricas, uma história que Braudel pretende situar no pólo oposto da história événementielle, recusando, por conseguinte, um dos critérios minimais ao entendimento da natureza narrativa da história. Quanto a Paul Veyne, verifica-se da mesma forma um recuo do conceito de acontecimento, que é, aliás, segundo Ricoeur, acompanhado por um recuo semelhante do conceito de narrativa - e isto acontece de uma forma geral entre os historiadores contemporâneos que «tendem a considerar a narração como restituição dos acontecimentos na linguagem dos próprios actores da história e nos termos das suas conjecturas. A história é assim desde logo uma pesquisa que rompe com toda a narrativa que seria indiscernível daquela que os actores da história poderiam ter produzido na altura própria» 20 .
Veyne assume deste modo a sua radicalidade: só a conceptualização histórica, entendida como uma determinação de invariantes, interessa. O acontecimento, entendido como variável, faz parte do «inventário das diferenças» - subproduto da construção do modelo invariante. É importante ressalvar nesta sequência a posição que Ricoeur posteriormente defende ao considerar que mais para além dos Écrits sur l'histoire de Braudel é possível determinar um regime de mise-en-intrigue na sua obra La Méditerranée... o que permite dizer desassombradamente o seguinte: «Ia notion même d'histoire de longue durée derive de l'événement dramatique, au sens qu'on vient de dire, c'est à dire de l'événement-mis-en-intrigue» 21 .
Ora, para Ricoeur, a simultaneidade do recuo da noção de narratividade e de acontecimento tem a ver com o facto de os historiadores se apoiarem num conceito não crítico de acontecimento. Ricoeur propõe em sua substituição o conceito de ocorrência como extensivo à macro e à micro-história, justificando que é perfeitamente compatível com a noção de ocorrência defender que os acontecimentos são construídos ao mesmo tempo que o são as narrativas que os enquadram: o acontecimento ocorre no discurso.
A razão desta noção crítica podemos encontrá-la no facto de Ricoeur pensar que a função da noção de acontecimento é a de preservar, para além das construções do historiador, a convicção de que qualquer coisa se produziu efectivamente, que aconteceu realmente, mas que, tal como o númeno kantiano, pode ser apenas pensado e não conhecido; é a coisa em si, uma pura ideia a que não corresponde nenhum objecto material. Finalmente, nesta aproximação à natureza narrativa da história, e depois de uma crítica ao conceito de acontecimento, Ricoeur formula uma crítica ao conceito de história.
Em primeiro lugar, como traço comum quer ao literário quer ao histórico, há a referir as duas dimensões de todas as narrativas: a dimensão cronológica e a não-cronológica. A cronológica é episódica, tem a ver com a «art de suivre» a narrativa, com o aguardar das contingências; a não-cronológica situa-se no descortinar dos conjuntos significantes a partir de acontecimentos dispersos. A actividade narrativa combina assim estas duas dimensões: a cronológica - sequencial - e a não-cronológica - configuracional. Para além disso, «a história, enquanto narrativa 'verdadeira', implica que o mais simples récit seja sempre mais do que uma série cronológica de acontecimentos e, por outro lado, implica que a dimensão configuracional não faça esquecer a dimensão episódica sob pena de abolir a própria estrutura narrativa» 22 .
Ora, ao privilegiarem o sequencial sobre o configuracional, os argumentos anti-narrativistas não reconhecem a combinatória entre ambas, bem como a continuidade do récit para a história, a estrutura teleológica e o carácter configuracional do acto narrativo, não reconhecendo portanto a natureza narrativa da história.
Num outro plano, o da natureza do discurso narrativo, importa ver se, não obstante as suas diferenças - as chamadas «pretensões referenciais» entre récit historique e récit de fiction -, se há uma estrutura comum que autorize a usar o conceito de récit como homogéneo, denotando um único modo de discurso. Tomando por base a análise estrutural da narrativa poder-se-ia dizer que há uma prioridade do aspecto configuracional do récit daí derivando a subordinação da sintagmática a uma paradigmática correspondente.Verifica-se, portanto, uma tendência para «descronologisar», sendo reduzidos os aspectos temporais a propriedades formais subjacentes.
E, tal como Ricoeur claramente explicita, deparamo-nos aqui com a ironia de onde parte essencialmente esta obra: «Enquanto a tendência de muitos historiadores era de privilegiar o carácter cronológico e sequencial da narrativa, e daí tirar argumentos contra o carácter narrativo da história, a tendência dos críticos literários de obediência estruturalista será, inversamente, de consignar o aspecto cronológico da narrativa somente à estrutura de superfície, à camada de 'manifestação' (Greimas) e de não reconhecer à estrutura profunda senão traços acrónicos» 23 .
Já em Propp se estava na via da descronologização da estrutura narrativa - o que implicava que todas as questões de génese e de história em geral fossem subordinadas às de estrutura - o que quer dizer que a tese morfológica sugeriria a tese genética... Em Greimas esse passo é decisivo com a pretensão «acrónica» do modelo actancial, verificando-se a passagem da sequência cronológica do récit a uma estrutura acrónica caracterizada por relações não sucessivas, ou melhor, construindo, segundo Ricoeur, um modelo paradigmático sem dimensão diacrónica originária.
Este é, no entanto, um modelo criticado por Ricoeur, nomeadamente porque considera existirem factores irredutivelmente sequenciais na narrativa: há uma «temporalidade» irredutível na narrativa. As noções de épreuve e de quête contêm, de imediato, esse carácter diacrónico indesmentível. Se para Greimas a noção de épreuve é como que um resíduo diacrónico na análise estrutural, para Ricoeur todo o movimento do contrato à luta, da alienação ao restabelecimento da ordem é sucessivo por natureza. É, portanto, a quête-intrigue o factor cronológico irredutível que narrativisa a própria intriga. Finalmente, diz Ricoeur: «Nous avions à défendre l'aspect confígurationnel du récit contre toute réduction de celui-ci à une simple anedoctique d'événements. Il nous faut maintenant nous battre sur l'autre front et défendre la dimension chronologique du récit contre toute réduction à une matrice achronique de pures relations logiques (...) La conjonction entre les deux argumentations semble suggérer que c'est un trait universal de tout récit, de fiction ou non, de conjoindre une dimension séquentielle et une dimension configurationelle. C'est cette conjonction ou cette compétition qui, selon moi, constitue Ia structure de base du récit» 24 .
O propósito da função narrativa é pois de apreender como um todo modalidades narrativas do discurso - do récit de fiction às formas empíricas como o romance histórico, a biografia, a autobiografia. Que diferentes modos narrativos - como o récit de fiction e o récit historique apresentem uma certa unidade estrutural e nesse sentido constituam um único jogo de linguagem - isso parece decorrer do que ficou exposto atrás. Veremos que para além de um jogo de linguagem comum aos dois récits há uma complementaridade entre ambos que os faz emergir, em última instância, na própria linguagem. Há uma complementaridade entre récit de fiction e récit empírico. Essa complementaridade não deriva só do fundamento da própria constituição inteligível da historicidade, da sua hermenêutica, mas é exigida por ela: temos necessidade do récit empírico e do récit de fíction para levar à linguagem a nossa situação histórica. É nesta troca entre história e ficção - e entra as suas pretensões referenciais opostas, que a nossa historicidade é levada à linguagem.
Convém referir que história e ficção têm pretensões referenciais opostas na medida em que a pretensão referencial da história ao real é directa e a pretensão referencial do récit de fiction é indirecta. Mas ainda que opostas elas são complementares: a pretensão da história é a de ser uma representação do real - por outro lado a pretensão da ficção é de reescrever o real a partir de um sistema auto-suficiente de símbolos, de uma poiesis l mimesis aristotélica, uma mise-en-intrigue cuja pretensão referencial é, indirectamente, o real.
Pode, portanto, dizer-se que história e ficção são ambas «verdadeiras» se bem que segundo modalidades diferentes, do mesmo modo que são diferentes as suas pretensões referenciais. Assim, se, por um lado, só a história pode articular a pretensão referencial como uma pretensão à «verdade», por outro lado os récit de fíction podem ter a pretensão de reescrever a realidade segundo as estruturas simbólicas da ficção.
E considerando que, por um lado, a dimensão mimética da ficção, não se referindo directamente à efectividade dos acontecimentos mas à sua estrutura lógica, à sua metaforização e significação, pode ligar directamente ao universal - e que, por outro Iado, a história, na sua preocupação de representar o real com mais ou menos rigor, deixa-se prender sobretudo ao contingente, esquecendo o essencial, não se poderia dizer, parafraseando Ricoeur, que «en nous ouvrant au différent, l'histoire nous ouvre au possible, tandis que Ia fiction, en ouvrant à l'irréel, nous ramène à l'essentiel»? 25 .
A narrativa é finalmente, a «guardiã do tempo» - e é a história enquanto narrativa que reinscreve o tempo vivido sobre o tempo cósmico, cabendo portanto à ficção resolver o que é negligenciado pelo tempo vivido.

Notas

[1]Michel Foucault, L'archéologie du savoir, Gallimard, Paris, 1969, p. 9.
2 Fernand Braudel, Écrits de l'Histoire, Flammarion, Paris, 1969, p. 50.
3 Op. cit., p. 61
5 Marc Ferro, «Fait-divers, fait d'histoire», Annales, Juillet-Août, 1983, pp.821-825.
6 Pierre Nora, «O acontecimento e o historiador do presente», A Nova História, Edições 70, Lisboa, 1983, p. 48.
7 Michel de Certeau, e outros, «A História, uma Paixão Nova», A Nova História, Edições 70, Lisboa, 1983, p. 21.
8 Fernando Gil, Provas, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, Lisboa, 1986.
9 Michel Foucault, op. cit., p. 170.
10 Op. cit., p. 18.
11 Michel Foucault, «La poussière et le nuage», L'impossible prison - Recherches sur le système
pénitentiaire au XIXe siècle, dir. Michelle Perrot, Paris, Éditions du Seuil, 1980, pp. 34-35, citado por Roger Chartier in «Le passé composé», Traverses, Théâtres de la Mémoire, nº 40, Avril 1987, Paris.
12 Roger Chartier, «Le passé composé», Traverses, Théâtres de Ia Mémoire, nº 40, Avril
1987, Paris.
13 Manuel Maria Carrilho, «Palomar, a essencial desarmonia do mundo», Expresso (Revista),
Dezembro de 1987, Lisboa, p. 69-R.
14 Michel de Certeau, Lécriture de l'histoire, Gallimard, Paris, 1984, p. 8
15 Roland Barthes, in Poétique, Février 1982, Paris.
16 Op. cit., p. 15.
17 Communications, nº 8, EHESS, Nov. 1966, Paris.
18 Paul Ricoeur, La Narrativité, CNRS, Paris, 1980.
19 Op. cit., p. 13.
20 Op. cit., p. 16.
21 Paul Ricoeur, Temps et Récit, Tome I, Éditions du Seuil, Paris, 1983, pp. 289-290.
22 Paul Ricoeur, La narrativité, p. 21.
23 Op. cit., p. 39
24 Op. cit., p. 41.
25 Op. cit., p. 67.
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