14.7.04

A origem da tipografia e da esfera pública burguesa

D. Quixote lê o mundo para demonstrar os livros (...). É o
jogador desregrado do Mesmo e do Outro. Toma as coisas por aquilo
que elas não são, e as pessoas umas pelas outras (...). É a primeira
das obras modernas pois nela se vê a razão cruel das identidades
e das diferenças zombar incessantemente dos signos
e similitudes (...).
Michel Foucault




Origem, e não tanto génese, ou genealogia, exactamente no sentido em que Walter Benjamim definia o "vir-a-ser" do objecto histórico, esse salto em direcção ao novo objecto, em direcção ao que emerge do próprio inacabamento da história fragmentária, objecto em devir, no qual residem as figuras do descontínuo na história.
Digamos que será desse modo que melhor se poderá definir, na abordagem do universo pós-tipográfico, questões sobretudo relacionadas com a teoria do espaço público onde, vimos já, um dos aspectos fundamentais a destacar neste período de transição da Renascença para a Idade Clássica é exactamente o da instauração de uma ordem disciplinar do olhar, constitutiva do dispositivo histórico-cultural que caracteriza o universo tipográfico.
Nesta passagem reside algo de fundamental para a caracterização da episteme clássica, no que concerne concretamente à emergência da tipografia e, enfim, da esfera pública burguesa. Vejamos então, ainda que, de início, numa abordagem genealógica, como se processou a transição do universo pré-tipográfico para a chamada galáxia Gutenberg.
Com a total desarticulação do Império Romano e o progressivo alargamento do poder bárbaro a todas as regiões que anteriormente estavam sob domínio romano verifica-se em toda a Europa meridional uma situação de profunda recessão global, conhecendo-se hoje, da fase pré-gutenberguiana, essencialmente obras copiadas pelos monges beneditinos a partir de textos fundamentais do cristianismo, alguns mesmo da cultura antiga e, muito em partícula, a Bíblia. A Igreja torna-se, aliás, a verdadeira continuadora do Império, conseguindo a unidade religiosa possível para a Europa.
Durante este período de desagregação social, política e cultural, a única força que permaneceu viva, como defendeu Regine Pernoud, foi precisamente o núcleo familiar, o que se viria a traduzir efectivamente numa preponderância muito marcada, na época medieval, da vida privada sobre a vida pública, aspecto a ter obviamente em conta na caracterização da genealogia da esfera pública burguesa. De facto, poder-se-á dizer que as duas grandes instituições que legitimam de igual modo uma hipotética identidade europeia latente perante o caos bárbaro são, portanto, por um lado a família e, por outro, a Igreja. Acima delas, a transcendência.
Poder-se-ia dizer em relação a este período, que o universo pré-tipográfico é fundamentalmente marcado, por um lado, pela constante transcendental, teocêntrica, e, por outro lado, pelo progressivo desenvolvimento - e aproximação - de dois tráfegos distintos: o tráfego da mercadoria e o tráfego da notícia. E a verdade é que com a civilização do livro tudo iria mudar ...
É pois no contexto da sociedade pré-capitalista emergente nos finais da Idade Média que surge esse tráfico paralelo onde mercadoria e notícia se complementam, para empregar uma expressão de Habermas1 «(...) Los cálculos del comerciante orientado en el mercado necesitaban, como consecuencia de la extensión del comercio, de información más frequente y más exacta sobre hechos y antecedentes especialmente lejanos. Por eso, desde el siglo XIV el viejo tráfico epistolar del comerciante da lugar a una especie de sistema profesional de correspondência. Los primeros trajectos de los emisarios, de los llamados correos ordinários - que partían en determinadas fechas -, fueron organizados por los comerciantes de acuerdo con sus proprios fines. Las grandes ciudades comerciales son al mismo tiempo centros de tráfico de noticias, cuya permanencia se hizo urgente en la medida en que el tráfico de mercancias y de papeles-valor se hizo también permanente. Casi al mismo tiempo que surgen las bolsas, institucionalizaron el correo y la prensa los contactos y la comunicación duraderos.»
Por seu lado, McLuhan ao tentar definir a própria estrutura historico-cultural da emergência da tipografia fá-lo, reconhecendo, nomeadamente, o primado da visualidade sobre o audiotáctil característico das sociedades orais e inclusive do período medieval, mas apontando também que é nesse contexto que se verifica, em simultâneo, o despontar das economias nacionais e dos governos centralizados dos Estados europeus emergentes, que se reviam, por assim dizer, na proposta do carismático condottiero, do Príncipe, de Maquiavel, o qual havia sido, no fundo, o resultado de uma concepção política de Estado unitário um pouco à imagem - e pela evocação - do passado grandioso da Roma imperial.
A este processo não é estranha, ainda, a questão da emergência das línguas vernáculas. A conquista romana havia divulgado por toda a Europa meridional o latim. De facto, se as estradas romanas haviam sido as estradas do papel, elas haviam sido também as estradas do latim, língua que era, mais do que um traço-de-união, um latim de casta, instrumento efectivamente mais de dominação do que de comunicação 2.
Essa homogeneidade quebrar-se-á inevitavelmente com as sucessivas invasões de que a Europa meridional é alvo. A pouco e pouco a especificidade dos dialectos locais tende a retomar o lugar outrora ocupado pelos latinismos. Não é de admirar que as primeiras regiões a afirmarem o seu próprio vernáculo fossem as dos dialectos germânicos, pouco atingidos pela romanização. «On peut estimer que les clivages qui se manifestèrent en cette occasion eurent des conséquences très durables sur l'attitude des populations européennes, en pénalisant celles qui restèrent le plus longtemps liées à une culture latine qui ne leur était désormais plus accessible que par l'intermédiaire des clercs. Peut-être même peut-on voir là l'une des raisons profondes du partage historique de l'Europe entre un Nord plus tôt alphabétisé et conquis par la Réforme, et un Sud plus latinisé, qui restera fidèle au catholicisme» 3 .
O processo de radicação das línguas vernáculas é aliás extremamente lento. Poder-se-á dizer que só no século XVII estabilizam definitivamente. Nas igrejas, porém, o latim continua distante desse processo de laicização, e só as abandonará já em pleno século XX, após o Concílio Vaticano II - não por ele, mas antes pela entrada do microfone nas igrejas, como bem notou McLuhan 4... Aliás, e para retomar agora a questão do dispositivo de dominação pós-medieval, McLuhan refere que a tipografia, ao estimular e promover os nacionalismos o faz precisamente na medida em que transforma as línguas vernáculas em meios de comunicação de massa 5 : «Se a palavra impressa transformou as línguas vernáculas em meios de comunicação de massa, elas, por sua vez, constituíram-se em instrumentos de autoridade governamental centralizada, infinitamente mais poderosos do que todos aqueles que os romanos haviam conhecido, como o papiro, o alfabeto e as estradas pavimentadas».
É pois dentro desta ordem político-cultural, em plena fase mercantil do capitalismo, que se desenvolverá o segundo elemento constitutivo desse tráfico prematuramente capitalista, isto é, a imprensa.
Ora, como bem viu Michel Foucault, no mercantilismo as relações entre riqueza e moeda estabelecem-se na circulação e na troca, e não já na preciosidade do metal. Mas assim como se procede a uma desqualificação do metal, procede-se a uma sobrevalorização da notícia: «El tráfico de noticias mismas se han convertido en mercancías. La información periodística profesional obedece, por tanto, a las mismas leyes del mercado, a cuyo surgimiento debe ella su propia existencial» 6 .
Não se pode pois desligar a emergência da tipografia da própria emergência da sociedade burguesa nos seus eixos económico e cultural - fundamentalmente esses.
Quer, de facto, como vimos, a transição do feudalismo para um pré-capitalismo mercantilista na sua vertente económica - criação das feiras, de novos mercados, de bancos, actividade seguradora, etc. (com tudo o que essa transição implicava ao nível da interacção entre um tráfico das mercadorias e um, por assim dizer, essencial tráfego da informação), quer, por outro lado, a própria emergência das Universidades, que exigiam uma produção de textos seriada, à qual as peaciae já não podiam responder, ambas as vertentes - económica e cultural, foram assim decisivas para a própria emergência dos caracteres móveis metálicos da prensa de um ex-ourives de seu nome Joahnnes Gutenberg.
Michel de Certeau já havia referido que a distância entre a Idade Média e o Renascimento poderia mesmo ser nomeada por aquilo que separa o copista antigo do tradutor moderno: na verdade, com a tipografia, o trabalho de reposição de toda uma cultura antiga cede progressivamente ao trabalho de tradução de todo um saber clássico. As universidades estão obviamente no cerne dessa ruptura.
Olhemos um pouco para trás, vejamos o que se passava com os manuscritos. Digamos que os séculos de ouro do manuscrito são concretamente os séculos XIII, XIV e XV. Até ao século XII temos essencialmente uma dominante monástica, de restabelecimento de todo um acervo da Antiguidade; a partir do século XII, com a emergência das universidades e o desenvolvimento da instrução laica, enfim, com o despontar da nova classe burguesa (legistas, conselheiros, altos funcionários, mercadores) assiste-se fundamentalmente à configuração de um período laico, tendo por centro intelectual a própria universidade, a partir da qual, através do novo sistema de produção artesanal em cadernos, se atingiu, digamos, um activo comércio de livros manuscritos, muitas vezes manuscritos por vários copistas - cada um com o seu peaciae.
Em paralelo com este novo regime de produção é fundamental referir a introdução da indústria do papel na Europa: o pergaminho é progressivamente substituído, embora o papel não trouxesse grandes vantagens a não ser ao nível da produção - que poderia ser praticamente ilimitada; mas era mais frágil, mais poroso à tinta, pior para a iluminura, por exemplo.
Nasce, portanto, como vimos, um novo público de leitores, exterior à vida religiosa, e, em simultâneo, em cada centro universitário, uma autêntica corporação de profissionais do livro, desde o copista laico ao organizador de bibliotecas.
A produção de cópias é então feita da seguinte maneira: existe o manuscrito de base - o exemplar - que a universidade empresta, contra o pagamento de uma taxa, já devidamente corrigido e revisto após cada nova utilização; no entanto, não se trata do empréstimo da obra na sua totalidade mas sim por cadernos separados - o que permitia obviamente uma circulação maior do que um só exemplar. Eram estes cadernos que recebiam a designação de peaciae.
Ainda que, por exemplo, em Paris, este sistema vigorasse no final da Idade Média, o certo é que as primeiras prensas parisienses, e de um modo geral todo o período que antecede a imprensa periódica - nomeadamente o período dos incunábulos -, tinham por principal objectivo a reprodução dos clássicos antigos e não os grandes textos universitários modernos. Esta era aliás a tendência que já se notava no período laico dos manuscritos: mais de dois mil exemplares copiados nos séculos XIII e XIV de obras de Aristóteles chegaram até nós... Mas, de facto, se essa produção acontecia ao nível do manuscrito medieval, ela vai voltar a verificar-se no período dos incunábulos. À medida que nos aproximamos de 1440, o copista é cada vez mais um produtor de série.
Não fazia sentido, entretanto, aproximarmo-nos da invenção da tipografia sem que o papel não viesse em seu auxílio, transformando-se por excelência no seu suporte. A Europa tinha-o descoberto no século XII, através dos árabes, que o tinham trazido da China, onde a xilografia era já prática corrente... Nos finais do século XIV o papel era já utilizado de uma forma geral em toda a Europa, tendo começado inicialmente por Itália, depois sul de França, Suíça, etc.
Chega pois o ano de 1440. Segundo as crónicas de Colónia de 1499 "a admirável arte da imprensa" tinha nascido em Mogúncia-sobre-o-Reno, na Alemanha, através das "formas férreas" - os caracteres móveis metálicos -, que Gutenberg havia criado. Jean Fust, que havia ajudado Gutenberg na sua investigação, leva-o em 1455 a tribunal pedindo-lhe o capital emprestado, e dele, Gutenberg, pouco mais se sabe a partir de então... Sabe-se no entanto que o primeiro livro impresso - a Bíblia de 42 linhas - é de sua lavra. É conhecida exactamente como a "Bíblia de Gutenberg".
Fecha-se assim o círculo: tal como Jean Fust, rico burguês que está por detrás dos trabalhos de Gutenberg, também os primeiros editores foram comerciantes: «Le bailleur de fonds - le capitaliste - intervient pour jouer un rôle essentiel. C'est lui qui supporte les risques des enterprises; c'est lui qui se charge d'écouler la production, et c'est bien souvent lui qui choisit les textes à editer. Parfois aussi, il est amené à fonder un grand atelier dans lequel on travaille selon les méthodes de la grande industrie - et non plus seulement sous simple artisanat» 7 .
A partir de então os textos passam a estar devidamente normalizados, assinados, apoiados em índices, colofons, notas, etc. Há uma clara oposição neste aspecto entre a cultura tipográfica e a manuscrita. Assim, para E. Eisenstein, o aparecimento do livro separa duas "renascenças" profundamente diferentes: "Un mouvement littéraire et artistique régional, italien, encore pris dans les contraintes et les limites de la culture manuscrite, et qui (contre Burckhardt et surtout contre Panofsky) n'est pas fondamentalement différent des éphémères renaissances carollingiennes ou du XIIè siècle. Puis, après l'invention de l'imprimerie, un mouvement européen qui affecte tous les domaines de la connaissance; le livre ne lui sert pas seulement de multiplicateur, mais bouleverse les conditions d'une évolution culturelle qu'il réoriente en profondeur. Alors commence vraiment la modernité» 8.
Como propõe Elísabeth Eisenstein, a tipografia não marca apenas uma evolução, mas sobretudo uma ruptura cultural profunda da qual resultam consequências comulativas. Não há dúvida pois que em causa está o repensar de toda a modernidade, desde a Renascença e Reforma à Revolução Científica dos séculos XVI-XVII, e enfim, até à Idade Clássica: "C'est l'imprimé qui est au coeur du processus de modernisation culturelle que connait l'Europe à partir de la fin du XVè siècle» 9 .
Ora, se os manuscritos e os pergaminhos estavam efectivamente ligados à distribuição feudal dos bens, a tipografia verá emergir o Estado moderno e um novo público leitor, laico, o qual viria a estar na origem das grandes mutações pós-Gutenberg.
Tal como refere Habermas, na medida em que a imprensa servia à burguesia dominante para dar a conhecer ordens e disposições, pela primeira vez os seus destinatários se converteram em "público".
É aliás exactamente a constituição de uma esfera em que as pessoas privadas se reúnem na qualidade de público, o que, segundo Habermas, melhor define a emergência da esfera pública burguesa, situando-se assim fundamentalmente nos séculos XV-XVI a génese da "publicidade burguesa", a emergência das suas redes de sociabilidade e dos seus jogos de teatralidade. Poder-se-ia dizer inclusive que a este nível, Sennett 10 e Habermas não distariam muito se, por esfera pública, se entendesse o «lugar onde se produzem violações toleradas da moral»... Mas a questão é bem mais complexa. Veremos que num segundo tempo a própria definição de esfera pública se torna mais problemática.
Retomando a questão do "novo público" veremos que Elisabeth Eisenstein introduz um novo elemento concedendo ao atelier do tipógrafo o estatuto de centro difusor de ideias, congregador de gente letrada, lugar de encontro público, esfera de sociabilidade: «Dans l'Europe déchirée du XVIè siècle se constitue ainsi à partir de l'atelier, autour du livre, une communauté intellectuelle qui va bien au-delà de l'idéalisation collective ou de la simple proclamation d'intention. Cette première République de lettres partage une même conception du savoir et du travail; elle a en commun des enjeux. En amont comme en aval du livre, nouveau vecteur culturel, sont ainsi réunis les conditions d'une circulation originale de l'intelligence et du savoir» 11. Os próprios ateliers dos tipógrafos eram uma espécie de velhos cenáculos de gente cultivada onde homens de ciências e letras mantinham reuniões frequentes. Rabelais chegou a ser o membro mais ilustre dos cenáculos de Lyon, por onde passaram parte das personalidades de primeiro plano da vida intelectual do tempo.
Mas foram os círculos parisienses que desde meados do século XVI, a partir da criação do primeiro círculo literário, mais se destacaram. É o caso do círculo dos Morel na residência de Jean de Morel, mordomo de Henrique II e aposentador-mor de Catarina de Médicis; é o caso também do salão do Palácio de Metz, grande centro de reuniões mundanas e literárias. Tratava-se portanto aqui da circulação de um saber diverso do dos antigos oradores das praças públicas. É nas ''plateias" de leitores, nos auditórios atomizados, nas bibliotecas, nos salões, e mais tarde nos cafés, que mergulham as raízes da Razão moderna, e da esfera pública literária emergente nos finais do século XVII.
A ideia de público, aliás, era já muito clara em pleno século XIV. Veja-se por exemplo Boccaccio, contemporâneo de Chaucer e de Fernão Lopes: convicto de que só seria lido se tomasse a iniciativa de difundir ele próprio a sua obra, escreve várias cartas ao seu amigo Maghinardo dei Cavalcanti enviando-lhe um exemplar de luxo, recopiado, de uma das suas obras mais recentes. A razão do envio da obra, segundo o próprio Boccaccio, residiria no facto do seu amigo desfrutar de excelentes relações e assim o poder melhor divulgar pelo público (emittat in publicum). De uma outra vez, ao dedicar o seu De Claris mulieribus a Andreina Acciagnoli, levanta a mesma questão: «Si vous jugez bon de donner à mon livre le courage de se produire en public (procedendi in publicum), une fois répandu (emissus) sous vos auspices, il échappera, je crois, aux insultes des malveillants» 12.
É portanto este novo público laico, culto, que está na origem do quadro conceptual do espaço público habermasiano, definido como o lugar onde se met-en-scène uma sociedade fundada sobre a comunicação racional em que o actor é, por assim dizer, um público esclarecido, fundador da própria esfera pública literária, anunciadora do iluminismo, e não propriamente como queria Sennett, o - apenas - "homem público" das condutas vulgares, jogador da teatralidade no espaço social.
Enquanto que para Habermas a esfera pública literária emerge a partir do século XVII, em paralelo à corte e contra ela, estando por isso na base da própria desintegração do Antigo Regime (veja-se, por exemplo, a importância da imprensa de opinião em todo esse processo), para Sennett o "homem público" emerge exclusivamente nas sociedades que continham já em si os germes do declínio do regime absolutista. Para além do desfazamento óbvio, na temporalidade, que se verifica entre os dois autores, uma outra dissimetria se poderá notar, em termos de conteúdo. Para Sennett o homem público é aquele que aceita o anonimato ou a impessoalidade da troca social, sendo o "espaço público" exactamente o lugar da teatralidade do jogo social, da mediação simbólica do relacionamento social, onde se comunica de forma anónima, sem declinar a identidade pessoal. Esta concepção não deixa, pois, de ser polémica. Para Louis Quéré, por exemplo, o interconhecimento, contrário ao anonimato, «não interdita a impessoalidade da mesma forma que a sociabilidade não exige o anonimato da grande urbe» 13. Mas a crítica mais importante que Quéré dirige a Sennett é de que se verifica em The Fall of Public Man um desconhecimento latente de que a interacção social se realiza por interposição do pólo fundador dos modelos culturais do campo comunicacional.
O espaço público de Habermas, ao contrário do de Sennett, não é o da interacção quotidiana e das condutas vulgares mas é o da «instituição». Corresponde à emergência de quadros institucionais de interacção social. O que o caracteriza não é pois tanto o homem público - agente da troca simbólica, mas quem incarna o interesse da razão e da emancipação. De qualquer modo, reconhecendo que ao espaço da instituição correspondem as estruturas normativas e cognitivas da esfera da interacção comunicativa, não evidencia, por outro lado, a dimensão conflitual que o modelo comporta. É exactamente nesse "desconhecimento" que toma forma a crítica de Louis Quéré: ele aponta a Habermas a subalternização da dimensão simbólica da instituição, facto que deriva concretamente do seu modelo jacobinista de criação de um consenso livre de toda a dominação, imbricado na sua definição de espaço público, a saber, o lugar onde emerge um sujeito abstracto, um "actor", que é o público esclarecido a que nos referimos, e não «os actores históricos que incarnam o pólo do poder e o pólo da discussão crítica» 14 .
Se o dispositivo de representação do real, na Idade Média, era o regime analógico, a similitude, onde uma lógica da revelação, da transparência, do transcendental, estava na dependência directa de uma ressonância mágica que instituía a unidade das coisas e do mundo, dos discursos e dos objectos, o dispositivo de representação da Idade Clássica acompanha necessariamente o processo de laicização do sujeito histórico, operando-se, por assim dizer, à própria laicização do signo. A linguagem torna-se pensamento, opera-se à dissolução do vinculo pré-clássico entre a palavra e o mundo. A linguagem passa então a desenvolver-se no interior da representação, através das convenções, de um regime de equivalência. Tudo se passa, aliás, como nas relações entre riqueza e moeda. Também na linguagem as palavras se confundem, isto é, entram num processo de degradação em relação à sua transparência essencial: «As palavras valem então mais como signos do que como marcas (de uma anterioridade)»15. Ou, como diria Foucault, se inicialmente a linguagem era um sinal das coisas absolutamente certo e transparente, já que se lhes assemelhava, com a Idade Clássica a palavra perde a sua natureza divina, inquestionável, e o seu 'acto de fundação' deixa de coincidir com o momento da instauração da verdade.
Em todo este processo o caracter tipográfico não deixou de desempenhar o seu papel, como bem notou Paul Heyer 16 : «Un autre élément relatif à l'imprimerie qui eut une influence directe sur la transformation linguistique qui, chez Foucault, caractérise l'épistémè classique, est la notion que la tipographie, par son emploi de caractères neutres distinctifs qui pouvaient être enfilés en des séquences significatives, se trouvait à révéler la nature arbitraire de l'alphabet. Les mots pouvaient perdre plus facilement leur pouvoir intrinsèque et être perçus comme de simples outils de représentation. La technologie - en l'occurrence l'imprimerie en donnait aux mots une permanence jusqu'alors inconnue (...). C'est là, peut-être, ce que laissait entendre Leibniz quand il suggérait qu'on substituat aux modes établis d'analyse un alphabet d'idées.»
Aliás, como vimos, McLuhan defendia que somente com a experiência da "produção em massa" de tipo exactamente uniforme e repetível é que a fissão dos sentidos poderia ter confinado e a visualidade se evidenciado no domínio da própria percepção. E Deleuze localizava na subordinação da expressão gráfica à fonética, na instauração do significante despótico, a emergência do primeiro fluxo desterritorializado de escrita. «Na Idade Clássica servir-se de sinais não é, como nos séculos precedentes, tentar encontrar, subjacente a eles, o texto primitivo de um discurso enunciado e fixado para todo o sempre, mas tentar descobrir a linguagem arbitrária que autorizará o desenrolar da natureza no seu espaço, os termos últimos da sua análise e as leis da sua composição. O saber já não tem de ir arrancar a Palavra aos lugares desconhecidos onde ela porventura esteja oculta; cumpre-lhe fabricar uma língua e fazer com que ela seja perfeita - isto é, que sendo analítica e combinatória, seja realmente a língua dos cálculos» 17.
Classificar é, pois, a palavra. Os séculos XVII e XVIII introduzem, como vimos, as ordens, as identidades e as diferenças. Por aqui se poderia referir as insuficiências do modelo mcluhaniano, expressas na nossa abordagem da emergência da ordem disciplinar do olhar. Mas por agora importará sobretudo ir ao encontro das consequências da própria revolução científica dos séculos XVI e XVII (que Elisabeth Eisenstein havia apontado terem sido já uma consequência da tipografia) e, nomeadamente, daquilo que se viria a delinear como uma "ciência geral da ordem". Aliás, Jack Goody já havia notado que a introdução da escrita nas civilizações que precederam a Renascença, entre outros efeitos, fez despontar um certo tipo de classificação sistemática tal como os signos do Zodíaco, por exemplo, ou as tábuas de interpretação dos signos mágicos do Médio Oriente, uma vez que a própria escrita fornecia à partida os quadros simplificados dos sistemas mais subtis de classificação, próprios das culturas orais.
Veja-se ainda no século XVI o exemplo da Tabula Generalis, de Peter Ramus, que surge na sequência da tentativa de reformar o sistema educativo tradicional e de substituir os velhos métodos de memorização pela "memória artificial" das tábuas e da taxinomia. Não há dúvida pois que a hipótese segundo a qual esta maneira esquemática de tratar as categorias do saber foi favorecido pelo modo escrito de comunicar, ganha uma indesmentível confirmação com o desenvolvimento da taxinomia no universo pós-tipográfico, constituindo-se a partir de então, como notou Foucault, um espaço de empiricidade que não existira até ao fim da Renascença e que é marcado nomeadamente pelos quadros ordenados e, de novo, pelas identidades e pelas diferenças. «O centro do saber, nos séculos XVII e XVIII é o quadro» 18.
Vejamos ainda como Foucault se refere à questão quando aborda a história natural: «Na Renascença a singularidade do animal era um espectáculo; ele figurava nas festas, nos torneios, nos combates fictícios ou reais, em reconstituições lendárias, onde quer que o bestiário desenrolasse as suas fábulas intemporais. O gabinete de história natural e o jardim, mais como se apresentam na época clássica, substituem o desfilar circular do "mostruário" pela exposição das coisas em "quadro". O que se nos depara ao passar daqueles teatros para este catálogo não é o desejo de saber mas uma nova maneira de vincular as coisas simultaneamente ao olhar e ao discurso. Uma nova maneira de fazer história. E sabe-se a importância metodológica que assumiram nos fins do século XVIII esses espaços e essas distribuições "naturais" para a classificação das palavras, das línguas, das raízes, dos documentos, dos arquivos, em suma, para a constituição de todo um meio histórico (...). A conservação cada vez mais completa do escrito, a instauração de arquivos, a sua classificação, a reorganização das bibliotecas, a introdução de catálogos, de repertórios, de inventários, representam, no fim da Idade Clássica, mais do que uma sensibilidade nova ao tempo, ao seu passado, à espessura da história, uma maneira de introduzir, na linguagem já fixada e nos traços que ela deixou, uma ordem que é do mesmo tipo que a que se estabeleceu entre os vivos. E é nesse tempo classificado, nesse devir quadriculado e especializado que os historiadores do século XIX tentarão escrever uma história enfim "verdadeira" - isto é, liberta da racionalidade clássica, da sua ordenação e da sua teodiceia, uma história restituída à violência irruptiva do tempo» 19 .
É, finalmente, do jogador desregrado do Mesmo e do Outro que aqui se fala, como observámos na epígrafe a este texto: «O herói de Cervantes, lendo as relações do mundo e da linguagem como o faziam no século XVI, descobrindo unicamente pelo jogo da semelhança castelos nas estalagens e damas nas camponesas, ficava prisioneiro sem o saber no mundo da pura representação; mas como essa representação só tinha por lei a similitude, não podia deixar de aparecer sob a forma derisória de delírio (...). D. Quixote, mau grado seu, é o objecto da representação que ele próprio é no seu ser profundo" 20 .
O Quixote marca pois o novo tempo dos sentidos enganadores, e como texto romanesco (inclusive, segundo alguns autores, como o primeiro dos romances modernos), marca a transição da prosa épica e do passado absoluto lendário para o discurso romanesco. Mas mesmo considerando que a língua literária medieval era no seu conjunto uma mise en forme do idioma vernacular 21, e que, portanto, a nova prosa medieval era em si um movimento de emancipação relativamente ao latim e à palavra sagrada, o certo é que essa transição de uma "mística" para uma "erótica", ou de uma presença para uma ausência, atestada exactamente pela literatura através de uma lenta transformação da cena religiosa em cena amorosa, realiza-se fundamentalmente pela nostalgia e pelo apagamento progressivo de Deus como único objecto de amor 22. Daí a emergência do romance 23 se prender com a rejeição da palavra sagrada e ser portanto o único género a poder traduzir as tendências evolutivas do mundo novo em devir: «C'est dans le roman seulement que le discours peut révéler toutes ses possibilités originales et atteindre à des profondeurs réelles.» 24
O romance é assim uma estrutura narrativa que depende do ideologema do signo, está intrinsecamente relacionada com a lógica do signo em oposição à lógica simbólica cosmogónica, simultaneamente plurívoca e restritiva, em oposição, finalmente, à poética transcendente: «o ideologema do signo significa uma infinitização do discurso que, relativamente liberto da sua dependência do "universal" (o conceito, a ideia em si), passa a ser uma possibilidade de mutação, uma constante transformação que, embora submetida a um significado, é capaz de múltiplas gerações e, portanto, de projecção para o que não é mas será, ou melhor, poderá ser. E o signo assume esse futuro já não como ocasionado por uma causa extrínseca, mas como uma transformação possível da combinatória da sua própria estrutura»25.
Finalmente, esta redefinição da transição do símbolo para o signo, em plena galáxia de Gutenberg, é sem dúvida um elemento entre muitos outros que nos levam a concluir pela configuração de um dispositivo único. Na verdade, o dispositivo histórico-cultural que marca claramente o universo pós-tipográfico não parece ser assim um novo dispositivo, relativamente ao que tínhamos visto para o caso da escrita, mas antes uma recontextualização e uma redefinição do dispositivo global que informa o universo comunicacional, nomeadamente os universos pós-alfabéticos, a partir de quando se começaram a estabelecer claramente os contornos culturais e políticos intrínsecos às novas mediações simbólicas e tecnológicas. São as nuances que se poderão verificar na transição de uma episteme para outra, e, portanto, no próprio dispositivo de dominação, o que nos parece ser esclarecedor quanto à própria redefinição histórico-cultural, económica, política, do modo de articulação destes diferentes factores no interior das macro-estruturas.
Veja-se por exemplo que o universo tipográfico vê constituir-se no seu seio o próprio Estado moderno, um Estado burocrático e taxinómico por excelência, não se podendo dizer portanto que se tenha operado uma ruptura clara relativamente ao dispositivo da galáxia do logos e à Antiguidade greco-romana, uma vez que é com ela que o próprio Estado emerge e com ele, como vimos, o próprio aparelho burocrático de dominação.
Inclusive, a ordem disciplinar do olhar não é de todo radicalmente nova. Ela é já explícita também no universo da escrita - e é exactamente por isso que Jean Franklin 26 se permite invocar a então emergente "aptidão de ver" para justificar de algum modo a aptidão de conhecer que desponta, e com ela, a faculdade da razão antiga. Esta, por sua vez, constituir-se-á no universo tipográfico em razão moderna, denunciando assim um outro reajustamento do dispositivo global.
A dominação intrínseca ao dispositivo histórico-cultural tipográfico não se inscreve apenas através da lei que a instituição Estado moderno consagra, ou da configuração de todo um relacionamento entre o público e o privado ou dos novos regimes de sociabilidade que passam exactamente pela emergência da esfera pública burguesa e da ordem disciplinar do olhar nela instituída, mas também, e ainda, pela utilização que o Poder passa a fazer daquilo a que já se chama os aparelhos ideológicos do Estado (absolutista) - no caso, a imprensa periódica emergente e, em particular, as gazetas.
Se o universo da escrita era com efeito um império do logos, cujos mecanismos de inscrição e veridicção eram assegurados por uma aristocracia da palavra, poder-se-ia dizer que, com a tipografia, ao poder da palavra, do logos, sucede-se a palavra do poder, veiculada agora não pela oralidade do discurso, pelos retóricos, mas sim pela sua mediatização através da nova tecnologia tipográfica e, por conseguinte, pela sua rápida reprodutibilidade pública. Assegurava assim o Estado também, mais rapidamente, a instituição da própria Lei, da normatividade do social e dos novos regimes do saber. Tal como Habermas referia, a imprensa servia à burguesia para dar a conhecer ordens e disposições assim se convertendo os seus destinatários em público, muito embora a noção de público não seja também aqui, aliás como vimos, nova. Repare-se na referência já feita a Boccaccio, ou ainda em Platão, que na República considerava a cidade ideal aquela que não deveria ter uma população maior do que a que seria possível reunir em torno de um orador por forma a que este se fizesse ouvir por todos. A verdade é que as monarquias absolutistas não se compadeciam com utopias: o "público" da sua palavra estendia-se agora por vastos territórios nacionais e a imprensa periódica tinha-se transformado claramente em instrumento de poder, em veículo da palavra do déspota, passadas que foram as curiosidades das primeiras folhas impressas. Veja-se por exemplo o caso da Gazette de France de Théophraste Renaudot que chegou a ter em Luis XIII e Richelieu os seus mais directos colaboradores. Veja-se o caso das Gazetas da Restauração de que se dizia, nalguns casos, infirmados segundo José Tengarrinha 27, que tinham sido redigidos por D. João IV... Veja-se ainda o caso da Gaceta de Madrid, fundada pela própria Casa Real.
Parece-nos portanto estar claramente configurada a recontextualização do dispositivo de dominação no universo tipográfico. Dos postulados expressos se infere não haver a registar uma ruptura epistémica que conduzisse à emergência de um novo dispositivo histórico-cultural de dominação, mas antes uma redefinição das principais vertentes que o compõem, surgindo-nos assim como dispositivo global pós-alfabético na diacronia histórica da comunicação e dos media.

Notas:

1 Jurgen Habermas, Historia y critica de la opinión publica, Barcelona, Gustavo Gili, 1981, pp. 53.
2 Jacques Legoff, La civilisation de l'Occident médiévale, Paris, 1965, p.341.
3 Henri-Jean Martin, «Pour une histoire de la lecture», Débat, Novembre de 1982, p. 166.
4 Cf. Marshall McLuhan e P. Babin, Era electrónica, um novo homem, um cristão diferente, Lisboa, Multinova, 1978.
5 Marshall McLuhan, A galáxia de Gutenberg, São Paulo, CEN, 1977.
6 Habermas, op. cit., pp. 53.
7 Lucien Febvre e Henri-Jean Martin, L'apparition du livre, Paris, Albin Michel, 1971, p. 175.
8 Elisabeth Eisenstein, «La culture de l'imprimé», Débat, Novembre de 1982. Trata-se de um texto apresentado por Jacques Revel a partir da obra de E. Eisenstein The printing press as an agent of change, Cambridge University Press, 1979.
9 Op. cit., pp. 178-192.
10 Richard Sennett, Les tyrannies de l'intimité, Paris, Éditions du Seuil, 1979.
11 Elisabeth Eisenstein, op. cit., p. 119.
12 Citado por L. Febvre/H-J Martin, op. cit., p. 30.
13 Louis Quéré, Des miroirs équivoques - aux origines de la communication moderne, Paris, Aubier-Montaigne, 1982, p.54.
14 Quéré, op. cit., p.79.
15 Fernando Guerreiro, «Da mimesis à metáfora e da metáfora à verdade», in Ensaio sobre a origem das línguas de Jean-Jacques Rousseau, Lisboa, Estampa, 1981, p. 11.
16 Paul Heyer, «Pour une histoire des communications», Communication/Information, Vol. V, nº 2/3, 1983.
17 Michel Foucault, As palavras e as coisas, Lisboa, Portugália, s/d., pp. 91-92.
18 Foucault, op. cit., p. 107.
19 Idem, p. 177.
20 Ibidem, p. 278.
21 Cf. Bernard Cerquiglini, La parole médiévale, Paris, Éditions de Minuit, 1981.
22 Michel de Certeau, La fable mystique, Paris, Gallimard, 1982.
23 Cf. Julia Kristeva, O texto do romance,Lisboa, Livros Horizonte, 1984.
24 Mikhail Bahktine, Esthétique et théorie du roman, Paris, Gallimard, 1978, p. 409.
25 Kristeva, op. cit., p. 36.
26 Franklin, Le discours du pouvoir, Paris, UGE, 1975, p. 16.
27 José Tengarrinha, História da imprensa periódica portuguesa, Lisboa, Portugália editora, pp. 31-32.
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