25.10.04

Televisão-drama ou o Anestésico Pós-laboral

Sendo certo que o dispositivo da TV generalista, na sua lógica de interacção com as grandes audiências e a sua subserviência aos people-meters, não é compaginável nem com a Ciência nem com a virtude civil, importará pensar quais as modalidades e as acções que poderão contribuir para que a TV generalista seja mais um apelo à Vida e à experiência da Cidadania e menos uma concessão aos anestésicos pós-laborais. E se aproxime mais da Ciência, da Cultura e do Conhecimento e menos dos desvarios do infotainment, da violência gratuita, do sensacionalismo e do fait-divers.

Naturalmente, em Portugal, desde meados dos anos 90, alguma coisa mudou em termos de Televisão, nomeadamente com a chegada do Cabo.

No contexto dos conteúdos televisivos, pode dizer-se que a recepção de canais como o Discovery, o Odisseia, o História e o Arte (agora infelizmente retirado do pacote básico da TV Cabo) introduziram uma mutação qualitativa muito significativa. E pode dizer-se também que, em relação à RTP2, estão de algum modo criadas as condições para um reforço da programação científica e cultural, muito embora isso possa vir a acontecer - e nalguns casos está mesmo a acontecer - mais na área do documentário do que em matéria de ficção televisiva.

Mas voltando à televisão generalista e designadamente à questão específica da ficção e dos teledramáticos - também enquanto «janela singular sobre a Vida na Ciência» (a propósito do recente Festival Europeu de Teledrama Científico realizado no Auditório do Pavilhão do Conhecimento – Ciência Viva – no Parque das Nações em Lisboa), importa centrar a atenção sobre as práticas efectivas dos três canais de maior audiência – RTP1, SIC e TVI.

O primeiro, público. Os outros, privados. Um com obrigações de serviço público, os outros não.

É conhecida uma velha pecha da televisão portuguesa – pública e privada – , no domínio da produção de ficção de época e histórica.

É conhecido também que, designadamente a TVI, desde 2000 inovou na área de ficção de grande público, conseguindo um feito significativo, ao fazer da novela e da série produzida em Portugal líderes de audiência, justamente contra uma produtora mundial de referência – a Rede Globo.

É sabido, também, que em resultado da boa receptividade do público às novelas (portuguesas e brasileiras), a televisão portuguesa tem desde praticamente 1977 (vai para 3 décadas…) um prime-time que não encontra paralelo na Europa e que na sua lógica de fidelização vertical e horizontal dos públicos é semelhante ao das TV’s sul-americanas.

Por muito que a ficção possa trazer segmentos, episódios, que tenham alguma piscadela de olho à Ciência e à Vida (e algumas delas têm um apelo à vida, quanto mais não seja pelo prazer de ver e por um certo hedonismo ou mesmo erotismo que sobretudo as novelas brasileiras há muito integram), o certo é que a fidelização em si mesma dos públicos a um prime time de ‘informação-enchido’, com telejornais que chegam a ter 2 horas de duração, ensanduichados por novelas e concursos (no antes e no depois) é o primeiro impedimento ao desabrochar de uma cultura de Conhecimento nas faixas horárias de maior audiência.

Com excepção da RTP2, todos os canais generalistas estão comprometidos neste sistema perverso.No fundo, a telenovela está para a televisão de referência, tal como a literatura de cordel está para a própria literatura…

Tão grave quanto isto, é o facto de se ter instalado ao longo destas últimas décadas, na RTP – operador que se deveria pautar por uma lógica inequívoca de serviço público –, uma cultura do mimetismo, primeiro de um modelo «para-Globo», depois do modelo comercial da TV’s privadas, não tendo ainda hoje encontrado o seu caminho inequívoco de referência e de não-mimetismo face às privadas.

A primeira grande conclusão que retiro desta observação de décadas de televisão generalista em Portugal é a seguinte: embora pareça uma missão impossível, importa continuar a lutar por subverter o modelo de prime time telenoveleiro e a actual ‘concursite’ da RTP1.

Tal pode fazer-se, por exemplo, através de um reposicionamento firme da estratégia do serviço público de televisão, enquanto TV de referência e em cumprimento efectivo do contrato de concessão com o Estado, procurando contribuir para a criação de um padrão de qualidade e de diversidade de géneros e programas na sua oferta de horário nobre.

Pode ser um esforço aparentemente inglório se o modo de aferição for exclusivamente a audimetria. Mas não deixará de ser um inestimável serviço aos portugueses, que a seu tempo serão inevitavelmente conquistados por programas que não são apenas anestésicos pós-laborais.
Essa é a missão do serviço público. E só dessa forma se compreende que todos nós, contribuintes, paguemos a existência de uma televisão do Estado em Portugal.Um segundo aspecto: Os ‘epifenómenos’ de cultura científica que aqui e ali – raramente – vamos encontrando nas programações televisivas são, de certa maneira, a excepção que confirma a regra.

Em termos de teledrama, onde Ciência e Conhecimento perpassam, dir-se-ia, sibilinamente, é em alguma ficção histórica e de época de produção nacional, difundidas pelo operador público, na maior parte dos casos, nestas três últimas décadas.

Ainda assim, algumas tentativas houve por parte dos privados – recorde-se ‘A Viúva do Enforcado’, da SIC, que não teve sequência dados os elevados custos destas produções. Mas é justo referir também alguns telefilmes produzidos com o apoio do ICAM, através de um protocolo existente com os operadores televisivos, onde se constata, pelo menos, uma narrativa anti-noveleira, uma narrativa digamos mais cinematográfica, que importa naturalmente reforçar e continuar a incentivar.

Por algum motivo Jean-Marc Verney dizia que a Televisão era ‘pulsação’ e o Cinema era ‘pulsão’…

E se Karl Kraus dizia que o jornalismo era o serviço militar dos poetas, imaginemos o que ele poderia dizer da televisão de massa – talvez… uma qualquer comissão de serviço ‘embedded’ numa qualquer coluna militar, algures num qualquer deserto, debaixo de uma repentina tempestade de areia… cujos grãos, por fantástica obra e graça, se pixelizaram através de um tubo catódico…

Karl Kraus era exagerado, claro. Mas de um exagero quantas vezes inconfortável, quantas vezes reconfortante, ou, talvez melhor, exorcizante.

A Televisão tornou-se ao longo do século XX numa espécie de «maravilhoso» que, sob o véu da total transparência, exibe, em sessões contínuas, o mistério de ‘uma janela aberta sobre o Mundo’.

Uma janela que mais não faz, finalmente, do que nos fazer crer na ilusão das aparências, projectando no écran das nossas impressões um Mundo que ela própria constrói, um mundo que pouco tem a ver com o Mundo táctil de todos os dias, que nada tem a ver com o Mundo dos nossos sonhos, que tão pouco tem a ver, enfim, com a virtude da cidadania ou com a virtude civil, de que Pierre Bourdieu falava.

Não há dúvida, pois, que o Mundo está perigoso. Não há dúvida, pois, que a Televisão está perigosa. Resta saber, talvez pensar, quem é que abre a janela a quem.

14.10.04

A informação televisiva, a opinião e o pluralismo – o caso MRS

O fim da coluna de opinião de MRS na TVI, ainda não cabalmente esclarecido, levanta um conjunto de questões, muitas delas não devidamente tratadas, apesar dos rios de tinta entretanto derramados nos media.

Para já, sabe-se que o ministro dos Assuntos Parlamentares teceu considerações inadequadas sobre o conteúdo da ‘coluna de opinião’ de MRS (o que não se ajusta claramente ao cargo que ocupa) não tendo assim evitado as acusações de ‘censor’ do camarada de partido, entretanto surgidas.

Sabe-se que MRS, num primeiro momento, se preparava para responder ao ministro nessa mesma ‘coluna’, mas que, entretanto, e após uma conversa com o presidente da TVI, decidia abandonar essa colaboração.

Conhecem-se as consequências: os líderes de opinião, alguns políticos sociais-democratas, as oposições, o cidadão comum, todos, de uma forma geral, vieram a terreiro, dizendo de alguma forma: ‘aqui-d’el rei, que a liberdade não está a passar por aqui’...

E não estava, claramente.

Importará talvez questionarmo-nos de forma um pouco mais profunda sobre o tema, no sentido de se salvaguardar que o caso MRS e todo o ruído à sua volta não pode acabar por esconder, ou iludir mesmo, a grande ferida que os media têm em permanência aberta.

Ou, dito de outro modo, e citando Lyotard, importa sobretudo questionarmo-nos sobre algo mais complexo, algo que está contido no seu aforismo que alerta para o facto de a transparência dos media ser, hoje, o novo cárcere.

Esta será a discussão que porventura os media não poderão ter, não poderão fazer.


E este é, sim, um motivo maior de preocupação.

Sem este debate ser feito, liberdade e cidadania não deixarão porventura de ser palavras vãs.
Site Meter