28.12.04

televisão-drama ou o anestésico pós-laboral (III)

(conclusão)

A primeira grande conclusão que retiro desta observação de décadas de televisão generalista em Portugal é a seguinte: embora pareça uma missão impossível, importa continuar a lutar por subverter o modelo de prime time telenoveleiro e a actual ‘concursite’ da RTP1.

Tal pode fazer-se, por exemplo, através de um reposicionamento firme da estratégia do serviço público de televisão, enquanto TV de referência e em cumprimento efectivo do contrato de concessão com o Estado, procurando contribuir para a criação de um padrão de qualidade e de diversidade de géneros e programas na sua oferta de horário nobre.

Pode ser um esforço aparentemente inglório se o modo de aferição for exclusivamente a audimetria. Mas não deixará de ser um inestimável serviço aos portugueses, que a seu tempo serão inevitavelmente conquistados por programas que não são apenas anestésicos pós-laborais. Essa é a missão do serviço público. E só dessa forma se compreende que todos nós, contribuintes, paguemos a existência de uma televisão do Estado em Portugal.

Um segundo aspecto: Os ‘epifenómenos’ de cultura científica que aqui e ali – raramente – vamos encontrando nas programações televisivas são, de certa maneira, a excepção que confirma a regra.

Em termos de teledrama, onde Ciência e Conhecimento perpassam, dir-se-ia, sibilinamente, é em alguma ficção histórica e de época de produção nacional, difundidas pelo operador público, na maior parte dos casos, nestas três últimas décadas.

Ainda assim, algumas tentativas houve por parte dos privados – recorde-se ‘A Viúva do Enforcado’, da SIC, que não teve sequência dados os elevados custos destas produções. Mas é justo referir também alguns telefilmes produzidos com o apoio do ICAM, através de um protocolo existente com os operadores televisivos, onde se constata, pelo menos, uma narrativa anti-noveleira, uma narrativa digamos mais cinematográfica, que importa naturalmente reforçar e continuar a incentivar. Por algum motivo Jean-Marc Verney dizia que a Televisão era ‘pulsação’ e o Cinema era ‘pulsão’…

E se Karl Kraus dizia que o jornalismo era o serviço militar dos poetas, imaginemos o que ele poderia dizer da televisão de massa – talvez… uma qualquer comissão de serviço ‘embedded’ numa qualquer coluna militar, algures num qualquer deserto, debaixo de uma repentina tempestade de areia… cujos grãos, por fantástica obra e graça, se pixelizaram através de um tubo catódico…

Karl Kraus era exagerado, claro. Mas de um exagero quantas vezes inconfortável, quantas vezes reconfortante, ou, talvez melhor, exorcizante.

A Televisão tornou-se ao longo do século XX numa espécie de «maravilhoso» que, sob o véu da total transparência, exibe, em sessões contínuas, o mistério de ‘uma janela aberta sobre o Mundo’.

Uma janela que mais não faz, finalmente, do que nos fazer crer na ilusão das aparências, projectando no écran das nossas impressões um Mundo que ela própria constrói, um mundo que pouco tem a ver com o Mundo táctil de todos os dias, que nada tem a ver com o Mundo dos nossos sonhos, que tão pouco tem a ver, enfim, com a virtude da cidadania ou com a virtude civil, de que Pierre Bourdieu falava.

Não há dúvida, pois, que o Mundo está perigoso. Não há dúvida, pois, que a Televisão está perigosa. Resta saber, talvez pensar, quem é que abre a janela a quem.

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