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A Televisão e a Ditadura (1957-1974) *


Ao longo dos cerca de dezassete anos de estreitas relações entre o salazarismo, o caetanismo e a RTP, a televisão revelou-se inquestionavelmente um aparelho - técnico e discursivo - e um instrumento, determinante para a legitimação e a longevidade da ditadura.
E curiosamente a RTP foi mais marcadamente instrumentalizada por Marcello Caetano do que por Salazar. Com Salazar, o regime «político-televisivo» é expectante e sobretudo provinciano face ao desenvolvimento do novo e poderoso meio de comunicação, ­provavelmente temendo uma mais ampla publicidade às coisas da vida e do mundo. E cria, nessa media, um imobilismo informativo através do modelo protocolar e oficioso determinado pelas estruturas censórias e persecutórias do regime.
A censura era naturalmente um modelo estruturante da política de informação de Salazar e Caetano, mas na televisão foi algo mais do que isso: na sua dimensão dissuasora, no plano da criação de uma estratégia dos consensos e enquanto «organismo ético», como Moreira Baptista definia o próprio sistema tecnodiscursivo da televisão, a censura foi um modelo repressivo e normativo essencial e determinante na manutenção do regime a do seu aparelho. Para além disso, os telejornais eram submetidos a uma outra fiscalização (para além do controlo diário do próprio «chefe de Divisão»), isto é, obedeciam a regras de produção e selecção extremamente rigorosas e os seus responsáveis, tanto no caso da rádio como da televisão, deveriam antecipar‑se a qualquer intervenção da Direcção dos Serviços de Censura. Veja‑se, por exemplo, a «ordem de serviço nº 1», da referida Direcção, que apenas vinha confirmar uma situação de facto já real. Com data de 14 de Janeiro de 1960, no seu artigo 7º, alíneas a) e e), dizia‑se: «São sempre de submeter à decisão da Direcção, devidamente datados, os seguintes casos: Críticas ou comentários à acção do Chefe de Estado, Presidente do Conselho e membros do Governo; Artigos ou noticiário visando a forma de estrutura política do Estado ou do Regime: Críticas à política económica financeira e externa do Governo; Movimento de embarques, ataques e críticas à acção das Forças Armadas e de Segurança ou das Polícias» 1 .
Se Salazar era refractário aos «teatrais efeitos» mediáticos, Marcello não o será. Ele próprio, aliás, se há‑de vangloriar do facto de ter sido não só o fundador, mas também o primeiro membro do governo a utilizar a TV. Salazar permanecia imóvel no esquadrinhar lento de uma complexa teia política e social, na montagem do seu pequeno mundo administrativo e burocrático. O isolacionismo, a censura, o homem anti‑carisma, são sobretudo determinados por fenómenos de identidade e mentalidade a que a sua experiência política e filosófica não era totalmente alheia.
A gestão administrativa ‑ e oficiosa ‑ da televisão, ao tempo de Salazar, enquadra‑se nas estruturas censórias do aparelho de Estado, rege‑se pelos seus princípios, mas parece não ambicionar ir mais além: a propaganda acabará por encontrar os seus limites no próprio modelo pedagógico e orgânico do «mestrado» de Salazar, como Manuel Maria Múrias gostava de dizer.
O discurso, designadamente da informação televisiva, mediava assim entre a legitimação de um regime «indiscutível» e de um homem «insubstituível», e a crise dessa legitimação pela incapacidade de representação e desempenho mediático da principal figura do regime, Oliveira Salazar. Essa demissão do campo de representação, ou, melhor, a privacidade a que o próprio Salazar auto‑subtrai o corpo jurídico do ditador, sobrepondo‑o ao seu próprio corpo físico, mas elidindo‑o, confere‑lhe com alguma preversidade a talvez tão procurada dimensão de «eternidade» de um projecto que as mais de quatro décadas da sua permanência no governo e na liderança administrativa do país bem atestam.
O pensamento de Salazar, o seu misantropismo e refracção aos media, associado ao facto de o salazarismo ter tido no controlo policial e administrativo das liberdades de expressão e associação um dos principais esteios de manutenção do Poder, e associado ainda ao facto do monopartidarismo autoritário não adquirir funções de controlo no âmbito do sistema politico, tendo ficado sempre subordinado ao Estado, conduziram à natural diluição da capacidade do regime se auto‑promover através da propaganda inflamada. O dispositivo da informação televisiva do salazarismo e do marcelismo, assentava assim, essencialmente, numa prática monológica constante, definida pela omissão das opiniões discordantes do regime e das suas estratégias, ou tão somente pela sua exclusão.
Outros parâmetros específicos da estrutura e agenciamento dos TJ's do tempo de Múrias e Valadão foram decisivos para o objectivo propagandístico do regime: referimo‑nos em concreto aos comentários e editoriais, que são a grande formação discursiva, o grande conjunto temático, aliás, quase sempre editados na abertura do principal bloco noticioso. São centenas, ao longo de 17 anos de informação, e por eles passa a opinião e a representação de uma acção política estrita. É através desses textos que se produz a auto‑celebração do regime e se concretiza a estratégia discursiva que faz emergir o carácter monumental da realidade histórica de então.
Os meta‑acontecimentos faziam também a actualidade televisiva do salazarismo. Emergem com o arranque das campanhas de «imagem» turística das colónias logo após o início da guerra, com as Comemorações Henriquinas, no início do ano de 1960, bem como de todo o noticiário sobre o contencioso com a União Indiana, ou ainda com as críticas interpostas à comissão de Curadorias da ONU, ainda nos finais dos anos 50, quando em Nova Iorque o Império começa a ser posto em causa pelos próprios países africanos então emergentes enquanto novos Estados independentes.
Mas, de facto, após as sucessivas independências africanas do ano de 1960, nova estratégia de produção de meta‑acontecimentos emerge no telejornal: aumentam significativamente os filmes enviados pelos correspondentes de RTP nas diferentes colónias, ou mesmo realizados por enviados‑especiais. A esmagadora maioria das vezes eram peças sem qualquer importância jornalística. À medida que a situação se vai agravando para Portugal, com o endurecimento das críticas dos países africanos e do bloco de Leste contra a presença portuguesa em África, o regime faz avançar os seus media para combater aquilo a que passa a chamar os «agravos dirigidos contra Portugal». A televisão e a comunicação social em geral, adquirem assim o estatuto de porta‑vozes do regime, aceitando colocar‑se oficialmente ao serviço da ditadura, funcionando como um seu prolongamento, tornando‑se assim claramente em aparelho ideológico.
Era, no fundo, um tempo de crise que antecipava o início da guerra colonial. Salazar fazia sobre o caso o mais profundo silêncio nesses meses finais de 1960. Em Novembro desse ano vêem‑se os primeiros efeitos da radicalização da estratégia televisiva: o telejornal inicia então o que viria a ser o longo requisitório de opinião produzida ao longo dos anos do salazarismo e do caetanismo. A primeira nota dessa longa série, que é anónima, intitulava‑se «A Nação Portuguesa e o momento internacional», e marca de facto o princípio da instrumentalização do telejornal no plano editorial, configurando‑o como um dos canais privilegiados de doutrina e propaganda. O próprio Salazar quebra o silêncio sobre a campanha «anti‑colonialista» e fala em directo (e em telegravação), na RTP, a 30 de Novembro de 1960.
E o facto é que a partir do início de 1961, nada voltaria a ser como dantes. Se o caso da operação de Henrique Galvão no Santa Maria é seguido desde início, inclusivamente com reportagens de enviados especiais da RTP, como uma espécie de folhetim de pirataria, o Programa para a Democratização da República, lançado pelo oposição em Lisboa, é omitido pela informação televisiva. O maior golpe para o regime seria dado, no entanto, em Luanda, com os acontecimentos do 4 de Fevereiro de 1961, noticiados pelo enviado a Luanda, Henrique Mendes, como se tratando de «banditismo em Angola».
Quando, porém, Américo Tomás recebe um grupo de oposicionistas liderados por Manuel Azevedo Gomes, os quais na sequência dessa audiência divulgam o «Comunicado aos democratas», em 8 de Fevereiro de 1961, a RTP reage condenando o comunicado, chamando‑lhe um «deplorável documento», e eximindo‑se, explicitamente, de divulgá‑lo, ­coisa que o próprio gabinete da presidência da República não havia feito... Este episódio constitui, por assim dizer, a metáfora de toda a história da informação televisiva durante a ditadura.
A partir de 15 de Março de 1961, com o incremento das acções dos guerrilheiros nacionalistas no norte de Angola, e paralelamente à aprovação, contra o governo português, pelos Estados Unidos e pela Uniao Soviética, da admissão à discussão na ONU dos recentes acontecimentos ocorridos em território angolano, a informação da RTP passa a apresentar reportagens realizadas nos locais em guerra, introduzindo inclusivamente edições especiais sobre os acontecimentos, e, depois, abrindo uma «campanha de auxílio às vítimas do terrorismo», a qual constituiria um novo e importante elemento do dispositivo instrumental dos telejornais. A RTP, por outro lado, estabelecia um contraponto estratégico relativamente à «frente» de combate. Os seus editorialistas, com frequência, consideravam estar num dos bastiões da «retaguarda».
Poder‑se‑ia dizer, seguindo uma ideia de Fernando Rosas, que da mesma forma que o império colonial desempenhou um papel historicamente decisivo na perpetuação da estrutura económica e social metropolitana e no retardamento das suas mudanças ate à descolonização 2 , assim a estrutura «mole» da informação televisiva, como meio privilegiado de fazer opinião viria a contribuir claramente ao longo da guerra colonial não só para a manutenção do statu quo, mas também para o adiamento, quer da liberalização do regime, quer da possível introdução de soluções flexíveis na política administrativa das colónias.
No período inicial da guerra colonial, é em torno de quatro vectores que emergem, com uma identidade e uma unidade específica, os alinhamentos que marcam o desenvolvimento da informação. Referimo‑nos designadamente, no que concerne à recorrência e regularidade do texto jornalístico propriamente dito, às suas práticas e temáticas sobre a guerra colonial. Isto fundamentalmente nos telejornais de inícios dos anos 60, uma vez que o período imediatamente anterior é caracterizado pela delegação da intervenção marcadamente política nas revistas de imprensa e por uma estratégia de alinhamento da informação de acordo com a hierarquia politica.
Um segundo vector constantemente presente era o relevo dado ao campo institucional, à agenda e ao protocolo oficial, aos comunicados e notas oficiosas, enfim, às actividades ministeriais e oficiais em geral, e de comando militar, nomeadamente sobre os «acontecimentos em Angola». Complementarmente, as crónicas sobre este mesmo tema, agora assinadas pelos jornalistas responsáveis pela informação e pela propaganda oficial, exteriores ao TJ, designadamente Ramiro Valadão (na altura Director dos Serviços de Informação do SNI), Barradas de Oliveira (director do Diário da Manhã), e também por João Coito, com a Letra de Imprensa. Mais tarde, pelos próprios jornalistas da RTP, designadamente Manuel Figueira, Manuel Maria Múrias, Vasco Teves e José Mensurado, todos eles responsáveis máximos ‑ a nivel de direcção ‑ pela informação televisiva.
Um terceiro aspecto não menos importante tinha a ver com a promoção das campanhas de «donativos» e de «benemerência», ­o vinho e as madrinhas para os expedicionários da Guerra (campanhas da Cruz Vermelha Portuguesa e do Movimento Nacional Feminino) a que a RTP dá largo tempo de antena.
Sendo as temáticas estruturantes do discurso jornalístico ­e as suas modalidades de enunciação um elemento fulcral do dispositivo intrumental da televisão, há que reconhecer que elementos laterais, como por exemplo louvores e condecorações governamentais e militares (também provenientes da própria administração da RTP) aos profissionais da televisão enviados para o cenário de guerra, eram ainda parâmetros relevantes da estratégia politico‑discursiva. E bem assim as múltiplas referências no interior da própria redacção do telejornal ao trabalho político na «retaguarda», como se de um «soldado chamado Televisão» se tratasse ‑ na concludente asserção de João Coito.
As diferentes modalidades de instrumentalização do dispositivo de enunciação da informação televisiva e a estratégia propagandistica do regime em período de guerra colonial viriam a atingir o seu ponto mais alto através da «neutralização» eleitoral da Emissora Nacional e da RTP na campanha Novembro de 1961. Idêntica medida seria tomada nas eleições para as Juntas de Freguesia em 1964.
Para as aberturas ficavam sempre as noticias protocolares e a agenda, designadamente reuniões, almoços, inaugurações, as múltiplas e intermináveis viagens ‑ e os directos da partida e da chegada, como aconteceu com a viagem de barco de Américo Tomás a Angola e S. Tomé, em Agosto de 1963. E todos os aniversários do regime, portanto, mas também obviamente os aniversários de Salazar (os vários aniversários de nomeações como ministro, da entrada para o governo, natalício, etc.) as entrevistas de Salazar à imprensa estrangeira, os reflexos dos seus discursos, as notas oficiosas que não levantavam melindre para o regime relativamente à opinião pública, mais raramente os comunicados do Conselho de Ministros, diversos comunicados e discursos ministeriais, as referências aos trabalhos da Assembleia Nacional, as efemérides do regime (como o «plebiscito da Constituição de 33», no TJ 19/3/63), etc. Mais raramente também os aniversários de Américo Tomás e de Cerejeira (TJ's de 19/11 e 18/11/67). E, claro, os Comentários, as Notas do dia, os Editoriais com origem na própria redacção do TJ.
Vejamos então a questão editorialista. Em 19 Abril de 1962 começam por aparecer os primeiros Comentários assinados, primeiro por João Coito, e depois, a 24/5/62, pelo próprio Manuel Figueira. Uma nova etapa se iniciava então na informação televisiva: doravante a redacção era «livre» de opinar sobre os factos e os acontecimentos, e sobretudo tinha uma linha editorialista apologética do mais refinado salazarismo. Daí até ao final do regime, apenas com alguns interregnos, seriam os comentários e os editoriais que marcariam o posicionamento do telejornal perante as grandes linhas de acção de Salazar e Caetano.
É a assinatura de Manuel Maria Múrias que marca a transição da informação televisiva de 1963 para 1964 ‑ e que assim continuará até que Ramiro Valadão entre na RTP, já em 1970, pela mão do «fundador» e «supremo inspirador» da televisão oficial, Marcello Caetano. Esta mudança não foi apenas uma mudança de pessoas, ou de liderança na redacção, mas significa também, uma importante alteração no quadro do próprio discurso televisivo e, nessa medida, no quadro da estratégia propagandística do regime, que encontrava agora neste novo responsável um profissional dado a militâncias e à defesa das grandes causas da extrema‑direita.
E para isso nada melhor do que a RTP, como aliás o próprio Múrias reconhecerá. Salazaristas indefectiveis ascendem a lugares da administração da RTP, como é o caso de Eduardo Freitas da Costa, em representação do Estado. Este, cedo ultrapassará as suas competências específicas no quadro da gestão da televisão para se tornar comentador do Telejornal, exactamente no início do ano de 1965.
Sempre que se tratasse da política para as colónias, Múrias invocava o «apelo de Salazar» (TJ 15/4/66), exercitava a melhor argumentação, e admitia ser «inflexível»: «Estamos onde estamos e ninguém será capaz de nos fazer arredar pé». Mas, acima de tudo, Salazar. Era a ele que, finalmente, era devida «a glória do futuro que se aproxima» (TJ 27/4/64). Nos diferentes editoriais, nas aberturas e na estrutura dos alinhamentos, pairava sempre, portanto, o espectro da presença do salazarismo e de Salazar enquanto modelo omnisciente e enquanto dogma. A idolatria a Salazar atingia as raias do absurdo quando, por exemplo, no TJ de 29/1/65, Manuel Maria Múrias resolve assinar um editorial em que dava como «vencida», por Salazar, a guerra colonial: ­«ganhámos com as armas na mão e ganhámos junto da opinião internacional (...).»
Mais tarde, apesar da nomeação de Marcello Caetano, o telejornal continuava crente na recuperaçäo do «Presidente Salazar». No final de Outubro volta‑se a falar de novas «melhoras espectaculares», e Múrias afirma mesmo que «qualquer coisa de sobrenatural se evola» da luta «titânica» de Salazar contra a morte (TJ 25/10/68). Antes de abandonar a tribuna que ao longo de cerca de seis anos chefiou, enuncia aquilo que é aparentemente uma colagem a Marcello Caetano: «(...) O facho não se apagou. Mudou de mão. Apenas» (TJ 6/11/68). Mas era tarde. Marcello Caetano preparava agora a entrada de Ramiro Valadão para a Presidência da RTP.
O episódio Delgado 3 e o episódio da SPE, referente a Luandino Vieira, constituíu também um dos momentos em que o discurso da intolerância foi mais longe na informação televisiva, chegando ao ponto de serem lidos telegramas de um telespectador que exigia castigo «exemplar» para a «traição». O racismo era outra das dimensões do dispositivo instrumental, sobretudo no período de Múrias. Expunha mais a intolerância e a virulência ‑ bem como uma estratégia de dominação colonial xenófoba. Em geral, o discurso de características racistas, ainda que de forma velada, estava sempre implícito nos comentários políticos dirigidos aos grupos de «bandoleiros» e «terroristas» que actuavam nas «províncias ultramarinas», ou ao grupo de países «afro‑asiáticos» que na ONU se opunham à «política africana de Portugal». Outras vezes era mais directo: no TJ de 29/11/64, aludindo a desacatos em Nairóbi, Múrias refere implicitamente o pretenso «canibalismo» dos africanos... Quando a 30 de Agosto de 1966 os líderes dos movimentos de libertação das colónias portuguesas se reúnem em Brazaville, Múrias chamar‑lhe‑á «reunião de criminosos» e considerará, em conclusão ao seu comentário, que assim «estaria desfeito o mito racista da negritude» e que assim «a selva voltava a ser senhora da maior parte de África»: «Pobre África onde o canibalismo voltou a ser oficializado e a lei da selva está institucionalizada» (TJ 15/9/67).
O dispositivo de enunciação da máquina de dissuasão do salazarismo respondeu assim a esse vazio do desempenho simbólico do regime, à inexistência do chefe carismático e panfletário. A alternativa era, de facto, gerir essa ausência através da máxima contenção informativa, tendo os responsáveis pela informação televisiva encontrado na estratégia de propaganda protocolar e no editorialismo doutrinário e militante, o antídoto para o défice de representatividade e protagonismo político de Salazar. Finalmente, nessa estratégia, também a encenação brutal, dita «viril», de um Império, que embora em fase terminal, em desagregação, chegava ao écran televisivo glorificado.
Uma glorificação, no fundo, dos efeitos de verdade disciplinarmente encenados, que não fizeram esquecer, porém, a «dessalarização» ‑ um documento que ao pretender dar a ver o corpo físico do ditador, expõe sobretudo a sua finitude jurídico‑política. Um «cadáver empalhado» ‑ um «espectáculo abominável» na expressão de um dos indefectíveis salazaristas 4 . Marcello Caetano ascende portanto a figura cimeira Governo a 26 de Setembro de 1968, após a recaída de Salazar. Com ele é pois toda uma nova estratégia de comunicação, e nomeadamente da informação televisiva que é relançada. Dir‑se‑ia que ao espírito de militância de Múrias sucede uma política de instrumentalização racionalizada, de propaganda reflectida, protagonizada agora por Ramiro Valadão.
O facto é que Marcello Caetano era o político que melhor poderia contribuir para uma nova estratégia de imagem do regime, uma vez que já havia demonstrado como ministro da Presidência que, ao contrário de Salazar, recorria frequentemente à televisão como forma de fazer chegar à opinião pública a legitimação do regime. Ele próprio o enuncia no seu discurso de 27 de Setembro de 1968: «Não me falta ânimo para enfrentar os ciclópicos trabalhos que antevejo. Mas seria estulta pretensão de os levar a cabo sem o apoio do País». (...) Esse apoio (...) será solicitado através da informação tão completa e frequente quanto possível procurando‑se estabelecer comunicação desejável entre o Governo e a Nação». E é fundamentalmente isso que depois fará, já como Presidente do Conselho de ministros, através das Conversas em Família.
E aquilo que Salazar havia feito quase sempre impelido pelo limite das situações, Marcello passará a fazer com regularidade e com profundo empenho: referimo‑nos às suas «conversas», a primeira das quais ia para o ar a 8 de Janeiro de 1969, dias depois de ter sido nomeado um novo secretário de Estado da agora secretaria de Estado da Informação e Turismo ‑ no caso, César Moreira Baptista -, a quem coube, mais tarde, nos primeiros meses de 1973, assumir funções de comentador nas aberturas do telejornal. O facto viria a configurar‑se como um dos momentos, ao tempo de Valadão, em que a lógica propagandística do regime para a televisão mais extravasou o limite dos seus próprios objectivos e também dos seus habituais procedimentos.
O ano de 1969 traria ao pequeno écran novas e significativas operações de propaganda do regime, dadas como grandes acontecimentos nacionais, designadamente as eleições para a Assembleia de deputados, e as viagens de Marcello Caetano ao Brasil e a África ‑ viagem esta, que se tornava tanto mais importante quanto Salazar a tinha tornado incontornável. Afinal, ao longo de mais de quarenta anos no governo, o anterior Presidente do Conselho nunca havia visitado o «Ultramar».
Além do «espectáculo abominável» que havia constituído a passagem do filme sobre o aniversário de Salazar, em 1969 outro acontecimento poderia merecer esse epíteto. A maior operação de propaganda de toda a história da informação de RTP terá então lugar, a propósito das eleições para a Assembleia Nacional. As referências ao acto começarão a ser divulgadas cerca de dois meses antes da data da sua realização, marcada para 28 de Outubro desse ano. Mas a montagem da estratégia política propagandística, na RTP, para as eleições de Outubro, acaba por planificar o arranque do primeiro de uma longa série de editoriais precisamente, a 26 de Setembro de 1969. São esses editoriais que constituirão, no seu conjunto, diariamente, ao longo de um mês, uma das armas mais poderosas da propaganda marcelista, procurando, um tanto desesperadamente, inculcar na maioria dos portugueses a ideia de que «só uma política é possível» (TJ 30/9/69), e assim legitimar a evolução na continuidade protagonizada pelo sucessor.
No seu conjunto, desde o final do mês de Setembro até à véspera das eleições, a redacção do telejornal produziu nada mais nada menos do que 20 editoriais para outras tantas aberturas do telejornal, actuando como uma perfeita máquina de propaganda ao serviço do poder instalado, participando na montagem do próprio discurso marcelista, na encenação dos seus efeitos simbólicos, sendo peça decisiva da sua estratégia, permitindo assim a instrumentalização da televisão de uma forma absolutamente inédita - num primeiro tempo «neutralizando-se» para a campanha e acabando por ter, finalmente, um comportamento de autêntica secretaria de Estado da Propaganda, como inclusivamente a própria SEIT não chegaria a ter.
A agenda política continuava a fazer a actualidade nas semanas subsequentes, com uma particularidade relevante por ocasião do 13º aniversário da RTP, em que o editorial do telejornal manifestava a «deferência» e «admiração» da RTP a Américo Tomás, «nosso primeiro espectador», e a Marcello Caetano designado como «o fundador, primeiro trabalhador desta casa e seu supremo inspirador». Para trás havia ficado aquele "histórico" alinhamento do telejornal de 20/7/69 em que esse extraordinário - a todos os títulos - acontecimento da chegada do homem à Lua era relegado para segundo plano face a notícias como uma visita de Américo Tomás a uma fábrica de cimento, e outras idênticas, do protocolo oficial.
«Todos - como um só» - o final do discurso de Marcello Caetano aos membros da ANP (TJ 21/6/71), alertando para o perigo da «revolução socialista» e para a necessidade de opor uma «barreira eficaz ao comunismo», era a chamada de primeira página desse telejornal. Dez anos depois do início da guerra colonial o regime expunha assim, através do telejornal, as feridas em aberto nas múltiplas «frentes», sinal de que, pelo menos no plano da propaganda televisiva e da «retaguarda», não haveriam concessões ao «ínimigo, insidioso e cobarde», como então se dizia (TJ 10/6/71).
A grande questão, para o regime, era a de sempre: ou Marcello Caetano ou «a revolução, a guerra e caos» (TJ 22/7/71). Um reduzido leque de séries temáticas - o ultramar, a subversão, o monopartidarismo -, integram a maioria das quase três centenas de editoriais ao longo dos 17 anos de informação televisiva. A explicitação através dessa rede reticular de formações discursivas de um projecto impositivo, não contraditório, dá a homogeneização das condutas políticas e culturais do regime.
Nas datas passíveis de comemoração, como é o caso do aniversário da própria RTP, e noutras efemérides, discursos de circunstância e editoriais retomavam a doutrina de intransigência do regime e a sua lógica monologal. César Moreira Baptista, que foi, aliás, o protagonista de uma das mais insólitas campanhas de propaganda do telejornal, com os seus Comentários de abertura ao longo de 1973, introduzia relativamente à RTP o conceito de «organismo ético», referindo que a televisão deveria estar submetida, «para além de todas as razões», ao «interesse nacional».
A Acta nº 395 do Conselho de Gerência da RTP, de 7/10/1972, dava conta entretanto da proposta de Ramiro Valadão referente a um «Prémio Marcello Caetano», «a conceder anualmente (...) àquele que de entre os Portugueses - e que como tal nos seja indicado pelo Ministro da Defesa - melhor tenha sido o intérprete da grandeza do Povo do meu País».
Muito perto já do 25 de Abril, o ano de 1973 começava com Mensurado a defender um seu editorial «ao encontro dos bravos que no Ultramar defendem a integridade da Pátria»... E surge então a primeira «palestra» do secretário de Estado da Informação e Turismo, César Moreira Baptista, emitida na abertura do TJ de 25/1/73, comentário que se tornaria habitual ao longo dos meses seguintes, com uma periodicidade ora quinzenal, ora mensal. O facto de um secretário de Estado ter acesso, de forma periódica, e com comentário pessoal, às aberturas do telejornal, era, com efeito, prática inédita na RTP. Nunca a propaganda, através do texto de opinião oficial, havia ido tão longe.
Seis meses antes do 25 de Abril, a RTP e o regime têm de novo uma campanha eleitoral para «gerir». Desta vez a tarefa estará mais facilitada, apesar da inexistência de editoriais nas aberturas, como em 1969: a oposição havia desistido de ir às urnas e o espaço designado «momento eleitoral» será preenchido apenas com a ANP. Na antevéspera da votação - a 26/10/73 -, a RTP anuncia uma «homenagem» ao «pensamento viril» de Marcello Caetano e aos cinco anos de governo - tratava-se da edição de um livro produzido pela RTP e com autoria de um redactor do TJ - Horácio Caio. O livro em questão havia sido proposto em reunião do Conselho de Gerência da RTP por Ramiro Valadão e reconhecido pelo administrador em representação do Estado como «uma homenagem da RTP ao seu fundador» 5 .
A coerência instrumental e monológica do modelo informativo, a sua estrutura de agenciamento protocolar e oficioso, e a lógica de produção - constante - de pseudo-acontecimentos e meta-acontecimentos, valorizando as diferentes modalidades de enunciação propagandísticas -, caracterizavam, em linhas gerais, a estratégia, o modo de produção e as práticas editoriais dos blocos noticiosos da RTP, desde o seu início até ao 25 de Abril de 1974. E da mesma forma que o sistema de monopartidarismo político se subordinava ao Estado, assim o monopólio da informação televisiva e a sua estrutura protocolar se subordinavam, na sua prática, ao sistema político e aos seus protagonistas. Uma prática que se diria impositiva de uma ideia obstinada e intransigente para Portugal. Prática registada, sobretudo, nas aberturas do TJ, através de uma espiral de redundâncias que encenava, por assim dizer, a amnésia do tempo.
Ao tempo de Ramiro Valadão são de facto diversos os documentos que nos permitem uma melhor compreensão da forma como todo este sistema havia sido gerado. Veja-se o caso do Conselho de Programas da RTP, que a certa altura se debruça, em exclusivo, sobre o telejornal. Na sua 45ª reunião, de 7 de Janeiro de 1971, da ordem do dia constava apenas a apreciação do TJ. O então presidente do Conselho de Programas, Pedro Geraldes Cardoso, procedia nessa mesma reunião à leitura de um relatório sobre o serviço noticioso da RTP. Ramiro Valadão, comentando as suas observações, enquadrava a questão do ponto de vista político, do seguinte modo: «(...) Entende-se superiormente que o Telejornal pode contribuir, dada a sua excepcional difusão, para que sejam atingidos os objectivos do Governo da Nação» 6 .
Marcello Caetano, por seu lado, não perdia as «boas» ocasiões para intervir... Nas mensagens por si enviadas ao presidente do Conselho de Administração da RTP, evidenciava uma despudorada intenção de controle deste meio por parte do Governo a que presidia. Em carta datada de 28/12/1970 não podia ser mais claro: «Conto com o apoio fiel, dedicado e inteligente dos amigos, sobretudo daqueles a quem estão confiadas posições-chave, como sucede consigo. A televisão é nos tempos correntes um instrumento essencial de acção política e nós não podemos hesitar na sua utilização - nem em vedar aos adversários da ordem social essa arma de propaganda. Sei que está atento, mas nos tempos que correm toda a vigilância é pouca, toda a inteligência e argúcia na acção são insuficientes: há que pôr em jogo todas as nossas faculdades de combate» 7 . Numa outra situação, a 3 de Abril de 1972, dirigindo-se mais uma vez a Valadão, Marcello repetiria o seu «nos tempos que vão correndo o controlo efectivo da TV é essencial para o Governo» 8 ...
César Moreira Baptista, aliás, havia definido na própria RTP toda esta estratégia, do seguinte modo: «Creio, que em nenhuma outra época os governantes portugueses tiveram tanto a preocupação de informar, justificar, fornecer dados e razões que permitam um exacto juízo dos fundamentos das orientações seguidas e das decisões tomadas. E ninguém melhor e com mais autoridade e esclarecido juízo o tem feito que o próprio Presidente Marcello Caetano que tantas vezes aqui vem para conversar com o povo (...)» (abertura do TJ de 25/1/73).
No ano de 1972, o Anuário da RTP refere-se ao telejornal do seguinte modo: «Sendo o primeiro órgão de informação, por isso mesmo são enormes as responsabilidades que lhe cabem. Uma notícia qualquer no Telejornal transforma-se num grande acontecimento; o escândalo, o sensacionalismo, a cultura dos menos grados interesses do público, estão-lhe deste modo vedados. O Telejornal é, pela sua própria natureza, um instrumento de informação frio e objectivo, um instrumento na acepção literal do termo». O telejornal continuava então a ser considerado pela própria RTP como «o primeiro órgão português da informação», com uma audiência «na sua edição maior de cerca de dois milhões de telespectadores» 9 . Era, por isso, o canal de Informação preferido do fundador da RTP.
Lógica criadora também de um complexo normativo, que, de facto, obliterava a emergência das singularidades, das subjectividades dissidentes, impondo assim a globalização do seu pequeno universo político como matriz normativa. Tratar-se-ia, no fundo, não de um registo, ou de uma dimensão espectacular, alimentada por uma cena dialogal, conflitual, mas, antes, insuflada pelo princípio da dramaturgia monológica, no sentido da palavra exclusiva e inquestionável
Mais não pretendia este discurso moralista senão legitimar através do pretenso didactismo a figura paternal do pedagogo, mimando a competência (o «poder», o «dever fazer») procurando criar a simulação do consenso que em última instãncia permitiria a atribuição de um poder ao enunciador e a imposição de um dever ao enunciatário. Repare-se que no plano interaccional 10 a argumentação é uma pressão exercida sobre o destinatário para o convencer (fazer crer) e o levar a agir (fazer fazer). Este é, por assim dizer, o princípio de organização de uma estratégia e de uma conduta comunicacional que era articulada com a coerência do dispositivo tecno-discursivo por forma a gerir a eficácia do modelo não-contraditório, monológico No fundo, provocar a subordinação das práticas do jornalismo às práticas da propaganda e manter a estratégia manipulatória e o «fazer persuasivo» como o eixo fundamental da rede reticular do sistema político e da sua perpetuação, ao longo dos consulados de Salazar e Caetano.
Estratégia que finalmente se concretiza através dos pseudo-acontecimentos e da sua performatividade. Instala-se assim uma nova ordem remitificadora do mundo, efeito de real que foi produto de uma estrutura e de um regime, teve uma intencionalidade política - foi dado como sendo a «raridade» da matéria noticiosa, embora não passe de um discurso manifesto, que apenas reprime a totalidade da experiência.
A TV foi (é) um dos dispositivos fundadores da ordem securizante do Estado-providência e da perpetuação da sua classe política em crise de representatividade. A predominância e a inflação do sistema político no conjunto das práticas, discursos - e categorias - na informação televisiva é de facto um sintoma do défice de legitimação do sistema político, quer pela sua macrocefalia, e inevitável alheamento do mundo da vida, quer pela sua pouca sensibilidade, ou mesmo pela incapacidade mais genérica de integrar a experiência social. O que é dado a ver no dispositivo inscreve-se na ordem do discurso protocolar, do fait-divers e do meta-acontecimento. De forma recorrente, repetida, através também de um efeito-série que joga como factor de naturalização, como ilusão naturalista, como actualidade-sintoma onde o acontecimento-problema ou o jornalismo investigativo são métodos e práticas não reconhecidas.
A história da informação televisiva em Portugal entre 1957 e 1974 é modelar nesse aspecto, sobretudo pelo carácter totalitário do regime e da sua máquina censurante. Mas práticas «democráticas» por assim dizer, como no caso francês, ao tempo de De Gaulle, ou mesmo depois 11 , não alteram substancialmente os pressupostos em causa. Aliás, a incapacidade de dar a ver a experiência social radica efectivamente na crise do político e por conseguinte na sua estratégia de representação mediática. O contrato de visibilidade que deriva da instrumentalização do dispositivo televisivo pela ordem política impõe assim a opacidade e o segredo do acontecimento-problema para deixar emergir a performance do político.
A TV cumpre, de algum modo, mercê do seu dispositivo de visibilidade específico, uma função precisa - fática, identitária, vinculante. Fragmenta e recompõe o plano do real num novo universo simbólico: dir-se-ia que em vez de põr em cena as evidências, o dispositivo televisivo materializa-as nos seus «pixels» electrónicos. De facto, a elaboração da informação audiovisual é potencialmente desreística em confronto com a realidade manifesta, fechando-se por isso num universo de abstração das modalidades de enunciação do real. Emerge assim uma mega impressão de realidade, uma visão compósita do mundo, através de uma concepção publicitária do divertimento, ou da transmutação do real em espectáculo, ou ainda através dos efeitos de real dramatizados em directo, confluindo para uma remitologização, em última instância, uma experiência «catódica» do quotidiano.
É claro, finalmente, que a dimensão tecnodiscursiva da máquina de organização protocolar televisiva, ao tempo de Salazar e Caetano, foi estruturada e orientada segundo um modelo jurídico-administrativo que tinha como estratégia fundamental a subordinação do mundo da vida aos imperativos do sistema político monopartidário e, enfim, a subordinação e repressão da virtude civil e da experiência social ao sistema político-televisivo autocrático - como meio para a sua perpetuação e para a sua auto-celebração.


*Este texto segue de perto a investigação desenvolvida pelo autor no âmbito da tese de doutoramento defendida em 1993, na Universidade Nova de Lisboa (FCSH), subordinada ao tema «O Telejornal e o Sistema Político em Portugal ao Tempo de Salazar e Caetano (1957-1974)», posteriormente editada, parcialmente, pela Editorial Presença, em 1996, sob o título Salazar, Caetano e a Televisão Portuguesa.

1 A política de informação do regime fascista, Comissão do Livro Negro Sobre o Regime Fascista, Lisboa, 1980, pp. 166-168.

2 Fernando Rosas, «Salazar e o Salazarismo: Um Caso de Longevidade Política», Salazar e o Salazarismo, Lisboa, D. Quixote, p. 17.

3 Ver, sobre o caso Delgado e a RTP, o nosso artigo «História de Uma Perseguição», História, nº5, Fevereiro de 1995, pp. 16-23.

4 Portugal - Os Anos do Fim, Jaime Nogueira Pinto, Lisboa, Sociedade de Publicações Economia e Finanças, 1977.

5 Acta nº 428 do Conselho de Administração da RTP, de 17 de Outubro de 1973.

6 "Projecto de Acta da 45ª reunião do Conselho de Programas" da RTP, de 7/1/1971, A Política de Informação
no Regime Fascista , Comissão do Livro Negro, Lisboa, 1980 pp. 240-242.

7 Op. cit., p. 239

8 Op. cit., p. 263.

9 Anuário da RTP de 1972, edição da RTP, Lisboa, 1973, p. 19.

10 Noel Nel, Le débat télévisé, Paris, Armand Colin, 1990, p. 192.

11 Ver, a este propósito os nossos trabalhos O Fenómeno Televisivo, Lisboa, Círculo de Leitores, 1996, e «O Sistema Político e a Informação Televisiva, Ou a Ilusão Naturalista das Notícias do Mundo», História e Crítica da Comunicação, Lisboa, Século XXI, pp.90-114.
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