Para um debate em torno do dispositivo televisivo (*)
Compreender, por exemplo, os mecanismos de apropriação dos media por parte dos diversos campos de dominação, transformando-os, por vezes em máquinas de propaganda, ou em aparelhos ideológicos de poder, através da imposição de lógicas de consenso social, cultural e político. Explicitar os contextos mass-mediáticos, quer enquanto processo de enunciação subsumido num fluxo unívoco de comunicação, quer enquanto fluxo bidireccional em transição para um dispositivo matricial ponto-a-ponto, interactivo.
Pensar, enfim, as relações entre a televisão e a sociedade, sistema complexo ao qual a investigação científica não tem dado a devida importância, apesar de se tratar de uma complexa temática, porventura decisiva para uma percepção mais clara da contemporaneidade.
Ora é sabido que um meio de comunicação, isto é, os seus principais actores, organizam e enunciam o seu discurso em função das relações de poder e das representações que se configuram num determinado campo social e num contexto epocal. No sentido de se poder pensar o modo como se constitui o sentido dessa dinâmica discursiva, importa conhecer e compreender a noção de dispositivo mediático, nas suas diferentes dimensões, que do ponto de vista do emissor – através das dimensões técnica, instrumental e performativa –, quer do ponto de vista da recepção, percebendo-se a lógica de inflexão de modelos comunicacionais e dos respectivos campos de mediação a partir da emergência do conceito de audimetria e das práticas da recepção específicas atinentes ao campo do telespectador.
Repare-se que as práticas culturais dos portugueses, nomeadamente no que diz respeito ao consumo de televisão têm vindo a mudar nos últimos anos. Desde a chegada da televisão por cabo, foram conquistados cerca de três milhões de telespectadores à televisão hertziana, boa parte dos quais tornaram-se progressivamente telespectadores de canais temáticos, nas suas diferentes tipologias.
Claro que uma visão actualizada do dispositivo televisivo implica problematizar a própria inflexão tecnológica do presente e nessa perspectiva implica Introduzir as problemáticas da evolução das linguagens e dos conteúdos específicos da transição do ambiente analógico para o novo contexto digital.
Vejamos para já a anterior lógica de difusão ponto-multiponto, específica do modelo tradicional de televisão generalista, que ainda se mantém, apesar da cada vez maior fragmentação do audiovisual. Neste modelo de ‘pirâmide’ a comunicação é unívoca, integra uma complexa rede discursiva vinculante, legitimadora, uma nova ordem simbólica, de certa forma dissuasora, unilateral, estabelecendo-se assim um modelo contratual, no fundo, uma ordem política e um quadro normativo-cultural, com impacto também no plano dos comportamentos e das condutas.
Poder-se-ia referir aqui o texto clássico de Casetti e Odin, onde se problematiza a oposição entre Paleo e Neo televisão. Para estes autores, a televisão foi desde logo apropriada por uma experiência de comunicação pedagógica, processo que se configurou, nas primeiras décadas da sua história, num ‘contrato’ com o telespectador, transformando-se assim, claramente a televisão como uma ‘empresa’ de escolarização alargada o todo o social.
A televisão prolongava assim a família e a escola, era uma sua extensão, sendo que nessa altura ‘ver TV’ era como que um respeitável ‘acto social’ em que todos queriam estar comprometidos. Nesta fase a emissão é segmentada de forma muito óbvia nos diferentes géneros tradicionais e a grelha, o velho «mapa-tipo» tem de facto um papel estruturante na emissão.
Mas a esta lógica específica do início da televisão, designadamente na Europa, rompe com o anterior modelo relacional, ao qual sucede um modelo de ‘contacto’, caracterizado por um novo modo de estruturação do fluxo e pelo esbatimento do fluxo contínuo clássico, configurado no estereótipo dos fluxos de programação, dos alinhamentos, das formas de representação do real. É como se o mundo se tornasse fábula. O discurso televisivo conduz ao espectáculo de ritualização do acontecimento e à efabulação sempre violenta do real. Um modelo que se manifesta através da criação de uma cultura‑mosaico e de um contrato de visibilidade e de legitimação com o telespectador.
Mas é também o tempo da emergência de processos de interactividade entre o emissor e o receptor. A relação com o telespectador torna-se mais próxima, mais familiar e mais convivial. Apesar disso, é claro que o tipo de representação do mundo que a televisão dá a ver é ainda assim limitada pelo dispositivo clássico, sendo, em geral, mais conservadora do que as próprias possibilidades técnico-discursivas do meio permitem.
A televisão generalista confronta-se agora com os seus híbridos interactivos, sendo este claramente um sintoma de um novo ciclo em relação ao qual, aliás, quer os produtores de conteúdos, quer o campo da recepção, se estão a adaptar progressivamente, ainda que a formatação de conteúdos no domínio do multimédia interactivo tenha aqui uma dificuldade maior. De facto, a era digital e a pós-televisão assentam num novo modelo de comunicação audiovisual que nos fará progressivamente esquecer esse primeiro modelo unívoco e, de certa maneira, autista, da era analógica.
Nesta mesa procurar-se-á então, nas diferentes investigações, dar um enquadramento crítico, reflexivo, epistemológico e ainda jurídico-político às práticas, discursos e procedimentos específicos do objecto televisivo, quer em referência aos conteúdos, quer no plano histórico e jurídico, configurando e problematizando as tecnodiscursividades, a instrumentalidade, a performatividade, as estratégias e os contextos de enunciação, e, enfim, as políticas públicas.
Pretende-se assim aprofundar neste debate e nas intervenções da mesa de Comunicação Audiovisual algumas questões em torno de dispositivos de informação de programação da era da televisão clássica, das respectivas mediações simbólicas, discursivas, tecnológicas, históricas e jurídico-políticas. Do mesmo modo se procurará fazer a análise de contextos, práticas e regularidades discursivas e das condições de produção histórica do real comunicacional, não só no plano de agenciamento ‘televisivo’ do mundo, como também da lei dos sistemas que orientam o aparecimento de enunciados como acontecimentos singulares no campo da videocultura televisiva.
A analítica destes ‘fragmentos’ do fluxo televisivo, claramente mais específicos da neo-televisão, é extensiva à questão dos modelos televisivos, do serviço público de televisão, passa pelo âmbito sociológico, onde se podem evidenciar designadamente tópicos relativos a uma estética e uma política da recepção, sendo que aqui importa cuidar da interpretação de dados quantitativos através de uma estratégia de investigação onde os estudos qualitativos possam esclarecer o que a audimetria esconde, na sua lógica determinada pelas dinâmicas de mercado e comercial.
Na abordagem das diferentes séries e «acontecimentos-monumentos», específicos da narrativa televisiva e bem assim das modalidades enunciativas e fluxos que se estruturam na emissão de ar, procurar-se-á problematizar a emergência de lógicas de mediação do dispositivo, designadamente a partir da configuração de campos, simbólicos, culturais e políticos criados a partir da interacção entre a televisão e a sua recepção.
Por fim, refira-se que a análise acima referida das relações complexas entre televisão e sociedade só poderá ter as suas consequências através de uma analítica porfiada, arqueológica, do contexto, discursos, modo de recepção e condições de produção do sentido do objecto televisivo. Essa analítica é naturalmente enquadrada também pelas lógicas públicas e privadas e ainda pela questão da regulação sectorial, no âmbito da actual dualidade entre serviço público e mercado, para além naturalmente da fragmentação do modelo audiovisual e da multiplicidade da oferta, com base nos novos dispositivos tecnológicos interactivos.
(*) Texto de Francisco Rui Cádima apresentado na abertura da mesa de Comunicação Audiovisual no III Congresso da SOPCOM - Congresso Ibérico, Universidade da Beira Interior, Covilhã, Abril de 2004.
Referências Bibliográficas
CÁDIMA, Francisco Rui
- «Televisão, serviço público e qualidade», Observatório, nº 6, Obercom, Lisboa, Novembro de 2002.
-,«Proto e pós-televisão. Adorno, Bourdieu e os outros – ou na pista da ‘Qualimetria’», Revista de Comunicação e Linguagens, nº 30, CECL e Relógio de Água, Lisboa, 2001.
-, O Fenómeno Televisivo, Círculo de Leitores, Lisboa, 1995.
CASETTI, Francesco e ODIN, Roger,
«De la Paléo à la néo-télévision. Approche sémio-pragmatique», Communications, nº 51, Paris,1990.
CASETTI, Francesco e CHIO, Federico di
Análisis de la Televisión - Instrumentos, Métodos y Prácticas de Investigación, Paidós, Barcelona, 1999.
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