De quinta-feira (16.11.06) para sexta-feira (17.11.06), tal como sucede em geral nos outros dias, de segunda a sexta, contabilizámos 16 programas (!) que a RTP1 repete (não no sentido de redifusão), de um dia para o outro, na sua grelha de programas.
Entre day-time e prime-time, na quinta-feira, apenas aparece um programa de título diferente (Grande Entrevista) e na sexta-feira aparecem dois: Cuidado com a Língua e Gato Fedorento (que, aliás, passou em redifusão).
Existem, em regra, de segunda a sexta, na RTP1, 12 programas que constituem um bloco fechado de fidelização dos públicos, sendo 2 de estúdio, 3 concursos, 4 blocos informativos, 1 novela e 2 filmes. Este modelo televisivo configura uma estratégia de programação de características fortemente discriminantes, na medida em que impede à partida a diversidade de géneros televisivos a que o canal está obrigado perante a Lei da Televisão e o Contrato de Concessão.
Uma grelha que surge assim organizada estruturalmente numa lógica de tipo terceiro-mundista, de pendor ultra-comercial, em que a opção essencial é organizar a oferta televisiva em função da fidelização dos públicos, vertical e horizontalmente, ao longo do dia.
Uma grelha que tanto pela habituação que tem criado à inanição como pela diversidade de géneros e conteúdos que deixa de fora, é um verdadeiro torpor, uma espécie de analgésico social em ondas hertzianas.
Verifica-se assim, genericamente, um transversal desrespeito pelos princípios inscritos na Lei e no Contrato de Concessão da RTP para com o Estado português, designadamente nos desvios à sua ‘missão’, que se podem atestar na descolagem da programação e da grelha face às obrigações específicas essenciais de ‘serviço público’, conforme se retira do clausulado dos referidos documentos que balizam a sua acção, a saber:
1- Os operadores que actuem ao abrigo de concessão do serviço público de televisão devem assegurar uma programação de qualidade, equilibrada e diversificada, que contribua para a formação cultural e cívica dos telespectadores, promovendo o pluralismo político, religioso, social e cultural, e o acesso de todos os telespectadores à informação, à cultura, à educação e ao entretenimento de qualidade, bem como garantir a produção e transmissão de programas destinados ao público jovem e infantil, contribuindo para a sua formação (Lei da Televisão, artº 47).
2 - Aos operadores referidos no número anterior incumbe, designadamente (pelo Contrato de Concessão): fornecer uma programação pluralista e que tenha em conta os interesses das minorias e a promoção da diversidade cultural e, designadamente: a Concessionária - a RTP - obriga-se ao cumprimento, em geral, da missão de Serviço Público enunciada na cláusula 5ª e, em particular, a transmitir uma programação que respeite os seguintes objectivos:
a) Contrariar a tendência para a uniformização e massificação da oferta televisiva, proporcionando programas não directamente ditados pelos objectivos da exploração comercial;
b) Manter referenciais de qualidade numa programação diversificada – cultural, educativa, documental, e informativa e recreativa;
h) Assegurar a produção e emissão de programas infantis e juvenis, educativos e de divertimento, a horas apropriadas de programação (...) entre várias outras obrigações e missões essenciais...
As questões que aqui enunciamos derivam, nomeadamente, de uma análise suportada na ética de antena, na responsabilidade social e cultural do canal e na estrutura, e expectável qualidade e diversidade da grelha da RTP1, designadamente nos domínios descurados no canal, que estão à vista de todos. Em particular, de segunda a sexta-feira, essa ausência verifica-se sobretudo em matéria de programação infantil e juvenil, cultural e educativa, programação musical, de divulgação e documental, económica, em matéria de inovação e tecnologia, em matérias que abordem o desenvolvimento no país, no domínio da ciência, da história, do património e da língua (esta, agora remediada), sobre as questões de cultura e política europeia, enfim, genericamente em matéria de cidadania e de formação cultural e cívica dos telespectadores, tal como a Lei e o Contrato de Concessão referem.
Designadamente, no horário nobre, a RTP1 não ‘inscreve’ (no sentido utilizado pelo filósofo José Gil no livro Portugal Hoje, o Medo de Existir), ou melhor, não emite conteúdos fundamentais que a possam legitimar enquanto projecto de Serviço Público face ao essencial que a Lei e o Contrato de Concessão, esses sim, ‘inscrevem’ de modo absolutamente inequívoco.
Para os espaços (horários) onde há maior disponibilidade por parte dos portugueses para ver televisão, enfim, para o acesso ao horário nobre e para o horário nobre, a RTP1 não tem conteúdos regulares, não programa de forma coerente e consistente os conteúdos que são justamente uma obrigação do serviço público de televisão, nomeadamente matérias em que intervenham:
- Programação infantil e juvenil, nomeadamente no acesso ao prime-time e mesmo módulos de programação que pudessem ser alternativos à ‘novelização’ juvenil das grelhas dos privados.
- Os autores, criadores, homens de cultura e criativos portugueses, a arte e a cultura portuguesa – da pintura à literatura; da escultura à poesia; do design à arquitectura; da arte popular às artes experimentais, etc., etc.
- Autores, compositores e intérpretes, a música portuguesa em geral, da música erudita ao Jazz, do heavy-metal ao hip-op, do tradicional ao pop/rock.
- Projectos e produtos dos actores, encenadores, bailarinos, realizadores, as artes do palco portuguesas (Teatro, Bailado, Ópera, etc,) e o cinema português em geral.
- Ficção portuguesa de qualidade.
- Documentários portugueses – a história, a cultura ancestral, o património, os homens, as terras, a paisagem, as gentes, o turismo cultural, Portugal no Mundo, etc., etc.
- Outros programas de divulgação e actualidade, na área económica e em geral sobre o desenvolvimento do país e dos seus ‘clusters’, sobre as fortes dinâmicas das suas indústrias de ponta que felizmente existem, em matéria de inovação e tecnologia, no domínio da ciência, da investigação, etc, etc.
- No contexto de Portugal no mundo e face aos seus mundos futuros possíveis, a absolutamente essencial regularidade de programas sobre a Ideia de Europa o sobre as questões de cultura e política europeia. E sobre a Ideia de Atlântico (relações África/Brasil). E, naturalmente, uma inevitável ponte a Oriente: Macau/China…
- Em matéria de cidadania e de formação cultural e cívica dos telespectadores, torna-se essencial rever a questão do pluralismo dos protagonistas do pensamento político, social e cultural do tempo, isto é, rever o carácter muito pouco plural das opções em presença e isso sim, passar a ter na RTP1 um areópago do grande pensamento português, livre, testemunho da virtude civil, dos grandes debates desassombrados com os melhores pensadores e polemistas.
- Em matéria de cidadania e de formação cultural e cívica dos telespectadores é imperioso que fundamentalmente a RTP1 possa transmitir aos portugueses, através das suas opções e da sua estratégia de grelha de programas, para além, naturalmente, das opções cuidadas de entretenimento genérico, uma Ideia de Educação e uma Ideia de Conhecimento ancoradas, naturalmente, no desígnio maior de prestar um serviço público de excelência aos cidadãos deste país, um serviço que tem elevadas e acrescidas responsabilidades enquanto ‘mediador’, para tanto fortemente financiado pelo erário público.
Face a uma grelha altamente repetitiva e fidelizadora da audiência, de fortes traços monotemáticos e monoculturais, cuja consequência primeira é a discriminação de géneros e programas que contribuem para difundir importantes e decisivas dimensões da realidade artística, histórica e cultural, económica, científica deste País (e do estrangeiro, naturalmente) designadamente no horário nobre da RTP1, inibindo assim, nessa área em particular, a "formação cultural e cívica dos telespectadores", não vemos, portanto, como se possa defender e justificar que a RTP1 cumpre o exposto na Lei da TV e o Contrato de Concessão que a obriga perante o Estado e os cidadãos deste país.
Etiquetas: Controlo dos Media, Regulação, Serviço Público