10.3.07

ERC 'executa' a TVI, que 'executou' Saddam, que executou...

É um facto que as imagens da morte devem atender à salvaguarda da dignidade da pessoa humana e dos públicos sensíveis. O assassínio em directo/diferido, ou a morte no cadafalso, são à partida imagens ‘obscenas’, i e., literalmente, devem ficar fora de cena. Mas como compatibilizar as imagens de Saddam na forca com o direito à informação e a ser informado? Aqui, vencem, sem dúvida, os critérios da ponderação e do equilíbrio editorial, que a profissão, o jornalista, o editor, devem saber auto-regular.

Saddam, débil "cordeiro de Deus", foi morto e logo sepultado em pleno Dia do Cordeiro de todo o Islão... Este sacrifício televisivo de um filho de Deus (Abraão tê-lo-ia poupado, mas Bush, como se viu, não), teve dois epílogos para a mundovisão: um institucional, com a chegada ao patíbulo e a colocação da venda negra e da corda no pescoço (primeiro a ser transmitido pelas TV’s); outro, captado por telemóvel, que acrescenta a queda do corpo e o cadáver prostrado.

No primeiro caso, o “acto de enforcamento” está, por assim dizer, subentendido. No segundo caso, é por demais evidente. Quando a ERC diz na sua recente Deliberação “destacar pela positiva a decisão editorial da RTP e da SIC de não transmissão das imagens do acto de enforcamento do ex-líder iraquiano”, estará a referir-se ao segundo vídeo, considerando que o primeiro não teria problema, uma vez que foi emitido tanto pela RTP como pela SIC.

De qualquer modo, sabe-se, hoje, que deu origem a várias experiências trágicas experimentadas por crianças um pouco por todo o mundo, tendo havido relatos de pelo menos sete crianças mortas nos dias seguintes por imitação da morte de Saddam. O que reforça a ideia de que deve haver o máximo de contenção e de reflexão editorial perante este género de imagens. Qualquer abuso que sobre elas seja feito é também obsceno (e por isso deve, portanto, ficar fora de cena).

Contenção, neste caso, significará assim a utilização da imagem, por exemplo (outras soluções são possíveis) num sistema “PIP”, picture in picture, ou de inserção multimédia num canto do écran, em que a imagem vídeo/fotográfica surgirá por momentos sob a enunciação da notícia, dada pelo pivot, de forma a que se preserve ao máximo a possibilidade de vir a produzir efeitos secundários dramáticos, sobretudo em crianças, como desta vez sabemos que sucedeu.

Quanto às 33 páginas da deliberação da ERC - e não desfazendo a porfiada laboração ali presente -, preferiria esperar por uma crítica do Gato Fedorento numa próxima edição. A verdade é há ali material bastante para uma reflexão, ou talvez melhor para um sketch, sobre as relações entre aquilo que poderá ser uma espécie de “regtainment” (regulação/entretenimento) e o chamado “infotainment”. No fundo, é verdadeiramente espantoso que sobre as diferentes peças emitidas pela RTP, SIC e TVI, a ERC só consiga ver aquilo a que chama “violação grave de deveres jornalísticos” na parte que refere como de “violência gratuita” (a queda, o balouçar do corpo, o sangue, etc.) que a TVI transmitiu e que tudo o resto tenha sido como que a subida ao céu de um anjo... Não deixa também de ser estranho que face a uma queixa concreta de um antigo membro da AACS, Jorge Pegado Liz, na deliberação não seja referido mais do que o seu nome, esquecendo-se os seus argumentos.

Revisão da matéria:

TVI arrisca multa de 375 mil euros por difundir imagens da morte de Saddam (Público, 10.3.07, só assinantes)

ERC delibera sobre imagens do enforcamento de Saddam Hussein (ERC, 9.3.07)

Séquences sur l'exécution de Saddam Hussein

"Mas o que eu (J. Bénard da Costa) nunca vira..."

Violence? Connais pas...

Filme: "Saddam, ou o sacrifício televisivo do Carneiro"; Realização: George Bush

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