7.11.08

O perfil dos jornalistas e a claustrofobia reinante

Como por diversas vezes aqui temos referido, o problema mais grave do jornalismo em Portugal é a promiscuidade entre as assessorias de comunicação, o jornalismo e as redacções, num país em que a política se está a tornar cada vez mais "comunicação" e infotainment e algumas redacções as retaguardas de ex-assessores e outros "public relations" de gabinetes governamentais.

Hoje, em Portugal, as estratégias de comunicação institucional e governamental funcionam no quadro do sistema de media como uma espécie de "lobbying" local, com toda a sua "artilharia" apontada ao suposto ingénuo cidadão, sobretudo através da comunicação social mais submissa, a começar pela do próprio Estado. Esta questão é hoje um dos mais graves problemas da democracia portuguesa e está na origem das suas múltiplas claustrofobias.

Recentemente, nos EUA, Barack Obama identificou claramente alguns dos maiores problemas da corrupção da administração Bush: a acção perversa do lobbying; a falta de transparência nas acções do governo face ao escrutínio público; o abuso de poder em contratualizações sem concurso (ver Ethics, change.gov).

Obama
prepara agora políticas de comunicação que vão exigir uma maior responsabilidade dos media face às comunidades locais onde actuam e face aos cidadãos. Mais, Obama quer mesmo mais: "We must use all available technologies and methods to open up the federal government, creating a new level of transparency to change the way business is conducted in Washington and giving Americans the chance to participate in government deliberations and decision-making in ways that were not possible only a few years ago.

Na Europa, é o Conselho da Europa que de certa forma assume esses valores enunciados agora também por Barack Obama. Os seus “Indicadores para os média numa democracia” (2008), que pretendem aferir o grau de liberdade dos média, alertam sobretudo para a necessária independência dos jornalistas e a independência editorial dos média face aos seus proprietários e ao poder político e económico. Segundo esta instituição:

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“Os radiodifusores de serviço público devem ser protegidos de ingerências políticas na sua administração e trabalho quotidiano. Os postos de direcção deveriam ser recusados a pessoas com uma filiação política clara”.

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“Os radiodifusores de serviço público deveriam elaborar códigos internos de conduta dos jornalistas e de independência editorial face às influências políticas”.

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“Os jornalistas deveriam (…) declarar aos seus telespectadores ou leitores os seus interesses políticos ou financeiros bem como toda e qualquer colaboração com órgãos do Estado”.

O enviesamento cultural e cívico da pequena política do tempo não pode de facto perdurar, sob pena de estarmos a pactuar com a condução de um projecto democrático para um modelo de capitalismo de Estado subordinado à lógica da eficácia, auto-comemorativo, auto-ensandecido, crente numa auto-legitimação fundada em estratégias de comunicação e de persuasão, construídas sobre o secretismo, negando a partilha da convicção e da veridicção com a esfera da cidadania, auto-excluindo-se assim, não só de uma parte cada vez mais significativa da sua própria base de apoio, mas sobretudo dos novos campos deliberativos, da opinião pública crítica, das comunidades virtuais jovens e das redes sociais.

A solução para o declínio da experiência democrática está bem identificada e resume-se em duas ou três palavras: relançar a Escola e reorientar os Media no sentido de uma inalienável responsabilidade social e também no sentido do respeito absoluto pelo princípio da Cidadania e da dignidade do humano, tal como, aliás, George Steiner (A Ideia de Europa, 2005) defendeu: “Se os jovens ingleses escolhem classificar David Beckham acima de Shakespeare e Darwin na lista de tesouros nacionais, se as instituições culturais, as livrarias e as salas de concertos e teatro lutam pela sobrevivência numa Europa que é fundamentalmente próspera e onde a riqueza nunca falou tão alto, a culpa é muito simplesmente nossa. Assim como o poderia ser a reorientação do ensino secundário e dos meios de comunicação social, por forma a corrigir esse erro."

Pelo lado da interpretação do sistema de media, em Portugal, dois dos principais intelectuais do pensamento português contemporâneo estão perfeitamente em sintonia com este grau de exigência, concordando tratar-se de uma questão decisiva para a defesa do regime democrático. Refiro-me a José Pacheco Pereira e a Manuel Maria Carrilho.

Pacheco Pereira é muito claro: "(...) Muitas redacções estão mergulhadas até ao pescoço em relações próximas com os gabinetes ministeriais, onde muitos dos seus ex-colegas trabalham e de onde muitos deles também regressaram vindos de assessorias de imprensa de volta às redacções.

"Ajudava muito à clarificação da vida política portuguesa que se conhecessem estas transumâncias passadas e actuais, porque elas reflectem reais conflitos de interesse numa parte sensível da nossa democracia, a formação da opinião pública. Ou seja, é importante sabermos quem, na redacção do jornal ou do canal televisivo X ou Y, foi assessor de Marques Mendes, Mário Lino, Sócrates, Santos Silva, Pedro Silva Pereira, Barroso ou Lopes. E, igualmente importante, saber quem exerceu este mesmo tipo de funções nas empresas públicas, ou em qualquer outro cargo cuja nomeação implique confiança política. Convém não esquecer que a função de assessor na área da comunicação social é das mais sensíveis que existe hoje e de inteira confiança política"

Manuel Maria Carrilho não é menos claro, concordando em: "(...) obrigar os jornalistas e comentadores remunerados a fazer um registo público de interesses, declarando os rendimentos e património; criar mecanismos sancionatórios efectivos das más práticas jornalísticas; estabelecer um código de conduta que regulamente a actividade das agências de Comunicação e sancione a sua transgressão".

Em função dos argumentos aduzidos, parece-nos assim uma evidência que a relegitimação do projecto democrático e da experiência democrática, neste início do Século XXI, exige uma reorientação da actual tendência submissa do sistema de media e dos seus actores vitais - os jornalistas.

O recente Retrato sociológico dos jornalistas portugueses (SJ, 6/11/08) dá um importante contributo para a caracterização da profissão. Importa agora continuar essa pesquisa e aprofundar as práticas da profissão no plano justamente que põe em perigo a própria ordem democrática - o plano das promiscuidades entre as estratégias de comunicação corporativa e institucional, as assessorias de comunicação e o jornalismo.

De forma a que haja total transparência para a cidadania sobre esta matéria, importa, de facto, que haja uma base de dados actualizada disponível na página da Internet do regulador - da ERC -, sobre as idas e vindas de jornalistas das redacções para os gabinetes ministeriais, e destes (e assessorias afins) para as redacções. É um pequeno mas importante passo para um princípio de transparência do sistema de media e para um cabal conhecimento dos obscuros vasos comunicantes entre o sistema político e de governo e as práticas jornalísticas em Portugal. Sendo certo, enfim, que esse sistema não funciona de modo igual em todos os meios de comunicação social em Portugal. Há exemplos no grupo Renascença e no Público, por exemplo, de recusa do funcionamento desse vai-e-vem altamente negativo, quer para a transparência e credibilidade do sistema de media, quer para a democracia portuguesa.

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