25.3.08

Este mundo não é para velhos

Este mundo (o jornalismo) não é para velhos. Não é para cínicos. Nome mítico da história do jornalismo no Século XX, Ryszard Kapuściński (1932-2007) vê agora publicado em Portugal o livro Os Cínicos Não Servem Para Este Ofício – Conversas Sobre o Bom Jornalismo (Relógio d'Água, 2008), editado em Itália nas Edizione e/o (2002) com org. de Maria Nadotti.

Kapuściński, jornalista à prova de fogo, figurará na “capa” da História do Jornalismo provavelmente associado a um dos seus muitos e nobres aforismos. Por exemplo: “Um homem não pega num machado para proteger o seu porta-moedas, mas sim para defender a sua dignidade”. Ele que é feito da massa de que são feitos os grandes jornalistas. Uma vida de total entrega, como dádiva, às causas das coisas do mundo da vida. Desse mundo – desse jornalismo – que não é para cínicos, como ele hoje certamente continuaria a dizer.

Alguns sublinhados da minha leitura do livro:

O verdadeiro jornalismo é o intencional, ou seja, o que tem uma finalidade e que visa produzir algum tipo de mudança. Não é possível haver outro jornalismo. Falo obviamente do bom jornalismo. Se lerem os artigos dos melhores jornalistas - as obras de Mark Twain, de Emest Hemingway, de Gabriel García Márquez -, verão que se trata sempre de jornalismo intencional. Estão a lutar por algo. Relatam para alcançar, para obter algo. Isto é muito importante na nossa profissão. (p.30)

No nosso ofício, muitas vezes, temos de prestar mais atenção ao que se passa simplesmente à nossa volta - que faz, exactamente, parte dos imponderabilia -, do que ao que se diz na rádio, na televisão ou nas conferências de imprensa. (p. 36)

A nossa profissão não pode ser perfeitamente exercida por alguém que seja cínico. Há que distinguir o seguinte: uma coisa é sermos cépticos, realistas e prudentes, que é absolutamente necessário, senão não poderíamos fazer jornalismo; outra coisa completamente diferente é sermos cínicos, uma atitude incompatível com a profissão de jornalista. O cinismo é uma atitude desumana que nos afasta automaticamente do nosso ofício, pelo menos se o levarmos a sério. Claro que aqui só estamos a falar de grande jornalismo, o único de que vale a pena ocuparmo-nos, e não daquela sua má interpretação que se vê frequentemente por aí. (p.39)

A nossa profissão é uma luta constante entre o nosso sonho, a nossa vontade de sermos completamente independentes e as circunstâncias reais em que nos encontramos, que nos. obrigam a ser, ao invés, dependentes dos interesses, dos pontos de vista e expectativas dos nossos editores.
Há países onde existe censura e, como tal, é necessário lutar para evitá-la e para escrever, na medida do possível, tudo o que se pretende, não obstante as circunstâncias. Há países onde há liberdade de expressão, onde não existe uma censura oficial, mas a liberdade do jornalista é limitada pelos interesses do grupo para o qual trabalha. Em muitos casos, o jornalista, especialmente se é jovem, tem de se sujeitar a muitos compromissos e utilizar várias estratégias para evitar o confronto directo e assim por diante. Mas nem sempre é possível, pelo que há muitos casos de perseguição. São técnicas de perseguição obviamente diferentes das técnicas violentas de que falava há pouco: assumem a forma de despedimento, de marginalização efectiva na vida profissional, de ameaça de natureza económica. Em geral, trata-se de uma profissão que exige uma luta contínua e um estado de alerta constante. (p. 41)

Há centenas de formas de manipular notícias na imprensa. E outras centenas na rádio e na televisão. E sem dizer mentiras. O problema da rádio e da televisão é que não é necessário mentir: podem limitar-se a não reflectir a verdade. O sistema é muito simples: omitir o assunto. A maior parte dos espectadores da televisão recebem de modo muito passivo o que lhes é dado. Os patrões das cadeias televisivas decidem por eles o que devem pensar. Determinam a lista de coisas em que se deve pensar e o que se deve pensar sobre elas. Não podemos estar à espera de que o telespectador médio realize estudos independentes sobre a situação do mundo, seria impossível, inclusive para os especialistas. O homem médio, que trabalha, regressa a casa cansado e quer simplesmente estar um pouco com a família, só recebe o que chega até ele naqueles cinco minutos de telejornal. Os assuntos principais que dão vida às «notícias do dia» decidem o que pensamos do mundo e o modo como o pensamos. (p. 43)

O problema das televisões e dos meios de comunicação em geral é que são tão grandes, influentes e importantes que começaram a criar um mundo só deles. Um mundo que tem muito pouco a ver com a realidade. De resto, esses meios de comunicação não estão interessados em reflectir a realidade do mundo, mas sim em competir entre si. Uma estação televisiva, ou um jornal, não pode permitir-se não ter a notícia que o seu concorrente directo tem. De modo que acabam por observar os seus concorrentes em vez de observar a vida real. (p. 43)

Pela primeira vez na história da humanidade, na segunda metade do século XX, começamos a viver não uma, mas duas histórias. Durante os 5 000 ou 7 000 anos de história escrita vivemos uma única história, que criámos e na qual participámos. Mas desde o desenvolvimento dos meios de comunicação, na segunda metade do século XX, estamos a viver duas histórias diferentes: a verdadeira e aquela criada pelos meios de comunicação. O paradoxo, o drama, o perigo, residem no facto de que conhecemos cada vez mais a história criada pelos meios de comunicação e não a verdadeira. Por isso, o nosso conhecimento da história não se refere à história real, antes à história criada pelos meios de comunicação. (pp.75-76)

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