10.2.08

Concentração e crise da ordem democrática

A questão da concentração das empresas de comunicação é uma questão central para o campo dos média. Há que reconhecer, à partida, que a elevada complexidade do tema não se coaduna, nem tão pouco se pode circunscrever e resolver num quadro legal constituído por matéria de concorrência genérica, complementada por duas ou três cláusulas aplicadas à especificidade sectorial.

Convenhamos que a ficar por aí, um mundo de problematizações fica por pensar e decidir, o que significa que a regulação ficaria ao livre-arbítrio da indústria, mais à mercê dos mercados do que do legislador sectorial e, portanto, mais distante do cidadão ou mesmo do consumidor. Não é esse, seguramente, o melhor quadro para sopesar e avaliar a concentração de empresas e grupos de comunicação social.

A premência de um quadro forte e estruturado, que, no âmbito do sector de media, permita a consolidação empresarial e operações de concentração de forma a que, ao contrário de reduzir, antes ampliem a diversidade de opiniões e a liberdade de expressão e editorial, é cada vez mais instante. Isto devido não só ao contexto da migração para o digital, mas também às novas exigências, no novo quadro das comunicações em rede, do desempenho da Cidadania, quer por parte de jornalistas, editores, produtores, etc., como por parte dos receptores, que querem ver salvaguardada, em primeira instância, a transparência e o desassombro da comunicação social e, consequentemente, o pluralismo e a liberdade de expressão.

Se é um facto que, teoricamente, alguma concentração dos média é necessária, por forma a que empresas e grupos criem mecanismos de consolidação industrial, tecnológica e de inovação, a verdade é que, na prática, alguns sinais de alerta têm sido dados pelo velho sistema industrial dos média, demonstrando que mesmo em situações de pré-consolidação, com fracos índices de concentração, algumas empresas e grupos se têm vindo a colocar em posições críticas face à liberdade editorial e à autonomia redactorial, evidenciando-se assim que a independência dos média e o pluralismo necessitam de tanto maior monitorização, quanto maior for o índice de concentração.

Tal facto, anula, só por si, qualquer veleidade do legislador em condescender face à tendência, fabricada pelos próprios média, para maior concentração sectorial e intersectorial sem garantias de reforço da liberdade editorial, da independência e do pluralismo, face aos próprios grupos editoriais, grupos económicos, grupos de interesses, sistema político-partidário, jurídico-administrativo, estratégias corporativas, tráfico de influências, etc.

De facto, só alguns conteúdos (só ‘algum’ real, só alguns acontecimentos) é que, por vezes, parecem interessantes para os negócios. Desses, estão os média cheios. Uma análise regular das categorias de conteúdo que abundam nos média, rapidamente concluiria pela existência de um sistema muito fechado e restrito de tópicos e pelo mimetismo, circularidade e redundância da selecção editorial e das agendas dos média.

Este modelo mediático inscreve-se claramente numa lógica que contém perigos para a ordem democrática. Não sendo muitas das vezes evidentes, estes perigos traduzem-se em bloqueios ao pluralismo e à liberdade de expressão e editorial e, portanto, em opacidades do discurso dos media, o mesmo é dizer, em zonas de sombra das práticas e da ordem democrática.

Donde, ou o campo dos média dá sinais claros de erradicar o ‘sistema’ submetido à ‘notícia-mercadoria’, aos porta vozes oficiais, aos gabinetes institucionais e corporativos e aos mimetismos de agenda e de agência, dando sinais de desassombramento e de liberdade, de pesquisa e de investigação pela cidadania, ou, no actual estado regulatório, a tendência para a concentração pode torna-se num ‘sistema-negócio’ ainda mais evidente do que já é, tímida e veladamente.

Assim, a responsabilidade social dos média é metamorfoseada em instrumento da baixa-política e do sound-byte, em écrã das catástrofes, curiosidades e monstruosidades do mundo e outros fait-divers, onde a notícia se faz para ‘vender’. Não esqueçamos que a história dos média tem sido, sobretudo na era pós-industrial, a história de um fluxo unívoco de comunicação e de dominação político-comunicacional.

Para se ter uma pequena ideia do que isto significa, veja-se, por exemplo, a história de um jornal que todos consideramos no dia-a-dia uma ‘referência’ – o caso do Diário de Notícias – que, ao longo do Século XX, ao longo de cem anos de história, foi, sucessivamente, pela monarquia reaccionária, foi republicano e republicano radical, depois virou para a ditadura militar, foi pelo Estado Novo, foi salazarista, colonialista, caetanista, para logo a seguir defender os cravos de Abril, passando depois a comunista, seguindo pela antítese, à época, socialista, para se disponibilizar depois, em regra, às políticas editoriais mais convenientes ao poder político reinante. Que ‘referência’ podemos nós retirar desta história editorial do Diário de Notícias ao longo de cem anos de história?

A concentração dos média, é, portanto, um tema de grande importância que urge debater em Portugal por forma a que, num contexto regulatório que se desejaria inequivocamente independente do sistema político-partidário e dos regulados, se evolua para uma regulação sectorial que saiba e queira ler a contaminação do campo dos média pelas novas censuras, pela promiscuidade entre jornalismo e assessorias e pela crise mais geral da actual ordem democrática.

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