Sobre o relatório em que a RTP "concede" ao PSD 18,6%
«(...) Começa pelo facto de o conceito de “pluralismo político-partidário” da ERC ser pouco mais do que um equilíbrio estatístico do tempo noticioso e do “tom” noticioso, uma avaliação puramente formal daquilo que se está a julgar e que, não esqueçamos, é o jornalismo da televisão pública, da televisão do Estado, da televisão paga pelos contribuintes e governada pelas escolhas governamentais. Como já tenho dito, é José Sócrates o último decisor da RTP, passando a cadeia de comando por Santos Silva, como antes era Durão Barroso-Morais Sarmento. O presidente da ERC, a quem já critiquei esta concepção de “pluralismo político-partidário” pobre, antecipa estas críticas na introdução, prometendo um novo relatório a apresentar à Assembleia da República e que versará outras “dimensões do pluralismo.” Bem terá que ser, porque por aqui não se chega a lado nenhum, só se confunde.
«O relatório tem cerca de 400 páginas e vou-me limitar apenas a um aspecto, o que penso ser mais crítico, da informação diária da RTP1. Ficarão de fora outros, como seja a informação não-diária, igualmente relevantes e que afectam o equilíbrio geral. E se o que já se conhecia da actividade da ERC era preocupante quanto à omissão face à governamentalização da RTP, agora fica confirmado. É como se houvesse duas realidades que se tocam mas não aderem nem interferem, nem se espelham: a ERC e a informação da RTP.
«Consultando quadros estatísticos sobre quadros estatísticos percebe-se como a parafernália dos números e a sua aparente cientificidade nada nos dizem sobre o real, porque, como toda a gente compreende, os casos mais graves de manipulação televisiva ou estão, como o Diabo, nos detalhes, ou estão lá brilhando como um farol, mas disfarçados por cem mil faróis menores que enchem as colunas de números. Pura e simplesmente, uma análise que é pouco mais que quantitativa, mesmo quando parece ser qualitativa, é completamente desadequada para analisar “conteúdos” e momentos. Direi mais: conteúdos cirúrgicos em momentos cirúrgicos, sobre um pano de fundo quotidiano de ausência de escrutínio da governação. A manipulação dificilmente apareceria nestas estatísticas.
«Comecemos pelo que aparece, pelo raio de verdade que atravessa as nuvens dos números enganadores. No “sumário executivo” do relatório retrata-se uma informação que minimiza o PSD (”presença do PSD encontra-se abaixo dos valores-referência (…) A situação repete-se analisando os valores obtidos no registo de presenças do PSD por canal - RTP1 e RTP2″). Em complemento, o PP e o BE estão sobrevalorizados, têm uma presença acima dos valores-referência. O PSD é também o partido que, embora esteja na oposição, é sujeito a maior número de peças hostis. No seu conjunto, este é o retrato claro daquilo que eu tenho chamado situacionismo: críticas preferenciais ao PSD, em detrimento dos outros partidos da oposição, visto que este é o único que pode ser alternativa de governo, sub-representação da sua voz, e valorização do PP e do BE, como alternativas. Avaliado no seu conjunto, o que a ERC nunca faz, isto é um programa político intencional.
«A ERC passa um atestado de imparcialidade à RTP (”operador público observou, em geral, uma posição de neutralidade”), porque existe um equílibrio estatístico entre a oposição e Governo+PS, mas não devem ter visto os mesmos noticiários que eu e muita gente. Porém, quando se observa com mais atenção, mesmo esta estatística mostra um resultado anómalo que revela a presença dos “momentos Chávez”, ou seja, a contínua exibição na RTP de sessões de propaganda governamental que nenhum jornalismo edita, com a estação a colocar o pé do microfone diante do poder: 54,1% das peças sobre a acção governativa não tem qualquer referência crítica. Estes valores mostram a forma sui generis do jornalismo da RTP. Desde quando é que o reporting jornalístico em qualquer democracia é assim tão “neutro”? É que a palavra “neutro” aqui significa deixar o Governo falar sem mediação.
«Não é também normal que áreas decisivas da governação quase não tenham escrutínio crítico da RTP. Se se compreende o predomínio da “educação” (18,5%), já é difícil de entender que na tabela dos temas das peças com crítica ou contestação à acção governativa, as políticas para a saúde sejam 4,2%, as da economia 2,2%, as da justiça 0,8% e uma categoria crucial, o “envolvimento de políticos em escândalos/irregularidades”, tenha apenas 0,6%. Embora o caso Freeport ainda surja pelo menos no último mês da análise, ele apareceu sempre na televisão pública mais tarde e com menos cobertura, o que será interessante de analisar no Relatório de 2009, se bem que a ausência de perspectivas comparativas com os outros noticiários das televisões impeçam muitas conclusões.
«Em muitos outros aspectos de detalhe, é onde mora o Diabo. Por exemplo, escolhe-se para análise as eleições internas do PSD, mas omite-se a dissidência de Alegre. Por exemplo, faz-se uma soma Governo+PS que é ilusória, porque na verdade cabe ao Governo a parte de leão dessa soma e, se houvesse uma dissociação, ver-se-ia mais claramente a omnipresença do Governo. Seria interessante também conhecer a presença do “discurso directo”, não editado, comparando entre Sócrates, Manuela Ferreira Leite, Portas e Louçã, que revelaria também distorções enormes que beneficiam Sócrates, Portas e Louçã, em detrimento de Manuela Ferreira Leite, mesmo descontando os meses em que não era líder. Claro que aqui também os números podem ser enganadores e esconder que Sócrates fala na RTP de palanque e sem edição, a Louçã é atribuído o papel privilegiado de comentador dos outros e Manuela Ferreira Leite é deixada para uma fala fragmentária que exclui o raciocínio e o argumento, mesmo quando está a apresentar documentos de fundo. Aí Sócrates é rei e senhor: fala sempre com princípio, meio e fim e diz o que quer na RTP. E, se acrescentássemos Santos Silva, os números seriam ainda mais reveladores.
«A estação de televisão que sai deste relatório não é a RTP que nós conhecemos. O exercício analítico e estatístico não é inútil, mas é demasiado escolástico para nos fornecer os resultados mais sensíveis que implicavam análises de caso que a ERC se recusa a fazer. Eu troco duzentas notícias inócuas “equilibradas” pelas que são manipuladas em casos particularmente sensíveis e isso nunca aparece nos relatórios da ERC, embora apareça nos ecrãs da RTP. Não me interessa saber que em x por cento das notícias da RTP aparece o contraditório, se isso for a tradicional e inócua - do ponto de vista informativo -, ronda dos partidos na Assembleia da República. O que me interessa é saber se, numa matéria de propaganda governamental, a notícia é dada “limpa” dois noticiários antes de ter resposta, ou se a RTP me enfia Santos Silva, entrevistado em casa se preciso for, para responder de imediato (e ter a última palavra) numa notícia particularmente crítica para o Governo.
«Ora nada disto aparece nas análises estatísticas da ERC, e isto é o quotidiano da informação da RTP. Como Camilo dizia de um seu adversário, “comi os seus miolos ao pequeno-almoço e encontro-me em jejum natural”. Li o Relatório da ERC e estou em “jejum natural”.»
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