21.2.08

Concentração dos média e crise da ordem democrática (3)

Convirá fazer aqui alguma breve arqueologia sobre o tema, tendo como referentes instituições centrais como a União Europeia e o Conselho da Europa.

Data de 1992 uma importante iniciativa europeia, que, embora não tenha tido consequência, importa não esquecer. Até porque se poderá mostrar ainda de significativa relevância no contexto presente e futuro próximo.

Referimo-nos ao documento da Comissão Euro­peia, também designado por Livro Verde sobre o «Pluralismo e concentração dos média no mercado interior – Avaliação da necessidade de uma acção comunitária»
[1]. Este Livro Verde tinha por objectivo apresentar uma primeira avaliação da necessidade de propor uma acção, no plano comunitário, em matéria de concentração dos média. Tinha sido desenvolvido na sequência de solicitações do Parlamento Europeu, designadamente em resposta às resoluções de 15 de Janeiro de 1990 e de 16 de Setembro de 1992, que pretendiam limitar as concentrações dos média a fim de salvaguardar o pluralismo.

Sabemos hoje que o Livro Verde sobre o pluralismo e a concentração não produziu resultados. O que significa que, de certa forma, no quadro comunitário predominou uma estratégia de não interferência e as operações de concentração ficaram assim a ser reguladas mais propriamente pelos mercados e pelo direito da concorrência do que por uma Directiva específica.

Foi assim seguida a «Opção I», que considerava que a solução final poderia ser a não intervenção no plano comunitário, muito embora existissem outras opções, por assim dizer ‘activas’, previstas no documento, a saber as Opções, II e III, sendo uma relativa à transparência e outra relativa à harmonização das diferentes legislações:

Option II: Une recommandation relative à la transparence: «La position de la Commission pourrait être de proposer une action de coopération entre Etats membres ayant pour objectif d' assurer une plus grande transparence de la propriété et du contrôle des médias dans la Communauté. Cette action porterait uniquement sur la transparence et serait indépendante d'une éventuelle action d'harmonisation des restrictions nationales à la propriété das médias. Il a'agirait d'une recommendation qui faciliterait la divulgation et l'échange entre autorités de certaines informations relatives à la propriété das médias. Si cette recommandation ne produit pas las effets recherchés un instrument juridique pourrait être également envisagé.»

Option III. Une harmonisation des législations: «La position de la Commission pourrait être de proposer une action ayant pour objectif de supprimer la disparité des restrictions nationales à la propriété des médias. A cette fin trois approches sont envisageables: i) Une coordination des législations par une directive du Conseil; ii) Un rapprochement des legislations par un règlement du Conseil; iii) Un rapprochement des législations accompagné de la création d’un comité independent.

De uma maneira geral, a Comissão Europeia pretende não prejudicar a lógica concorrencial e de alargamento de mercados à entrada, embora não deixe de estar atenta às grandes operações de concentração em matéria de média, como foi o caso da AOL / Time Warner ou da Vivendi/Universal, tendo imposto restrições às participações de Murdoch e do grupo Bertelsemann, respectivamente.

Veja-se, por exemplo, a análise de Elsa Costa e Silva
[2]: «(…) A tendência é para a não proibição, a não ser que haja um perigo demasiado real de posição dominante. O ‘XXX Relatório sobre a Política de Concorrência’ assinala que ‘nos últimos 12 meses assistiu-se a um incremento da actividade de concentrações no sector dos meios de comu­nicação social’ (2000: 53). No entanto, não fala em proibição. (…) A presença de grupos de comunicação social, através de participações no capital social, nos seus concorrentes pode vir a limitar a concorrência, desen­volvendo também a interdependência mútua entre grupos. O tipo de condi­ções impostas pela Comissão para aceitar determinados processos tem como objectivo reduzir os efeitos dessa situação, já que tem insistido na eliminação de participações minoritárias ou ligações entre concorrentes que ameacem entravar uma concorrência efectiva em certos mercados.»

Outra importante iniciativa da União Europeia neste âmbito, veio a público em Dezembro de 1997. Refiro-me ao Livro Verde da Convergência, em particular «relativo à convergência dos sectores das telecomunicações, dos meios de comunicação social e das tecnologias da informação e às suas implicações na regulamentação». Começa por considerar que os operadores dos média clássicos e em geral dos sectores afectados pela convergência devem aproveitar as oportunidades oferecidas pelos progressos tecnológicos optimizando serviços e conteúdos e diversificando negócios, dando exemplo de novos serviços e conteúdos: homebanking, netshopping, voz na Net, dados através de plataformas digitais, intercast, webcast e Web-TV.

A convergência é, no fundo, de acordo com o documento, «a capacidade de diferentes plataformas de rede servirem de veículo a serviços essencialmente semelhantes, ou a junção de dispositivos do consumidor, como o telefone, a televisão e o computador pessoal»
[3] integrados em plataformas que têm como objectivo a aplicação comum das tecnologias digitais aos sistemas e redes associados à entrega dos serviços.

Os desafios para a sociedade europeia destes novos serviços e conteúdos são de enorme relevância, nomeadamente porque a integram mais rapidamente num processo global da economia e do comércio electrónico, mas, necessariamente, também da informação e do conhecimento. A Europa deve assim estar aberta a esta mudança, sob pena de perder o comboio da economia digital e da revolução da informação. Perdendo-o, perde «um poderoso motor para a criação de emprego e o crescimento», na perspectiva da UE, que permite aumentar «a escolha do consumidor» e promover «a diversidade cultural». Nesse sentido impõe-se qualificar a força de trabalho europeia, quer através da I&D, quer através das tecnologias da convergência.

A sociedade da informação origina portanto novos desafios, designadamente pela crescente capacidade das redes existentes e futuras de servirem de suporte a serviços tanto de telecomunicações como de radiodifusão. Trata-se, portanto, de toda uma nova filosofia no que concerne à distribuição de produtos de consumo cultural, que implicarão novas oportunidades para aumentar a escolha dos consumidores, «facilitando o acesso aos benefícios da sociedade da informação e promovendo a diversidade cultural».
4 É, sem dúvida, uma posição polémica, tanto mais que é aqui sobretudo a perspectiva do consumidor e do «cliente» e não do cidadão que está presente: «uma concorrência vigorosa nestas áreas encorajará o desenvolvimento de novos serviços inovadores que irão beneficiar os consumidores da Comunidade».5 Desse modo, o documento encoraja, sobretudo, políticas que impeçam o surgimento de «posições proteccionistas» ou «estrangulamentos anti-concorrenciais».

O Livro Verde, por fim, analisa o fenómeno da convergência tal como se revela no mercado e reconhece que a convergência pode conduzir a uma menor regulamentação nos sectores das telecomunicações e dos meios de comunicação social e não deve conduzir a uma maior regulamentação em domínios de Tecnologias de Informação, o que vai ao encontro das estratégias mais recentes no domínio da regulação.

O Livro Verde aborda essencialmente tendências para o futuro e não tenta definir mercados para efeitos da aplicação da legislação comunitária da concorrência. No fundo, os serviços estão aí: operadores de cabo europeus integram já broadcast, telefonia e serviços de natureza endereçada, no fundo, como plataformas com elementos da cadeia de oferta ou de valor que vão da criação de conteúdos à entrega aos clientes, passando pela organização do conteúdo e pela oferta dos serviços. Mas, como se diz, a preocupação central do documento não é «tecnológica». Pretende estudar fenómenos empresariais e de mercado, que estão a alterar as relações tradicionais entre fornecedores e consumidores, sobretudo numa era de convergência de redes fixas e móveis, e em que, além do mais, os conteúdos são «moduláveis», isto é, podem ser utilizados em diferentes ambientes e distribuídos em múltiplos suportes.

No âmbito deste Livro Verde foram apresentados princípios para uma base comum nas futuras abordagens nos sectores da convergência. A Comissão propunha assim cinco princípios para discussão: i) A regulamentação deve limitar-se ao estritamente necessário para conseguir realizar objectivos claramente identificados; ii) As futuras abordagens regula­mentares devem responder às necessidades dos utilizadores; iii) As decisões regulamentares devem guiar-se pela necessidade de um quadro claro e previsível; iv) Garantir a plena participação num ambiente de convergência e v) Num ambiente de convergência será crucial a existência de regulamentadores independentes e eficazes. E termina: «Embora a tendência geral seja para um abrandamento da regulamentação, o aumento da concorrência provocado pela convergência acentua a necessidade de regulamentadores eficazes e independentes, A independência na regulamentação é particularmente importante nos casos em que o Estado detém uma participação interveniente num dado no mercado»
6.

Este tipo de decisões da Comissão, que na sua filosofia de base se tem mantido desde então, tem por vezes sido contraditada por posições que regularmente são assumidas pelo Conselho da Europa – recorde-se, por exemplo a Recomendação R (99)1, de 19 de Janeiro de 1999, onde o Conselho pretendia que fossem adoptadas medidas face ao contínuo crescimento de posições dominantes cruzadas no sector de média, com naturais implicações no domínio do pluralismo.

Recorde-se, na mesma linha, algumas conclusões e recomendações do relatório «Concentrations Transnationales des Médias en Europe», de 2004
7. Considerando, designadamente, que a diversidade de conteúdos dos média comerciais é cada vez menor e que o «lien traditionnel entre les propriétaires des médias et leur public n’existe plus lorsque les propriétaires sont d’une nationalité étrangère, ce qui a pour conséquence que le niveau de transparence et de responsabilité des médias s’affaiblit.» (…) e que «le droit de la concurrence, tant au niveau national qu’européen est en général insuffisant pour traiter l’impact que la concentration transnationale des médias a sur la liberté d’expression, le pluralisme et la diversité culturelle dans un pays donné», o documento considera ainda que é da mais alta importância que uma «réglementation de la propriété des médias soit adoptée avant que la concentration transnationale des médias n’ait atteint un niveau inacceptable» e recomendava, designadamente:

Le Conseil de l’Europe devrait mettre en place un contrôle permanent de la concentration transnationale des médias, en surveillant l’évolution du paysage médiatique et la façon dont le public utilise les médias. Les conclusions de ce suivi devraient être publiées dans un rapport annuel et rendues aisément accessibles au public.

Etant donné l’accélération de la concentration transnationale des médias, des mesures s’imposent au niveau international. Le Conseil de l’Europe devrait examiner d’urgence les moyens, y compris une convention, qui permettraient de faire obstacle aux effets néfastes que ce phénomène pourrait avoir sur la liberté d’expression, le pluralisme et la diversité.

Les Etats membres du Conseil de l’Europe devraient soutenir les radiodiffuseurs de service public, en tant que fournisseurs particuliers de contenus diversifiés, y compris dans leur fonction de production de contenus sur les nouvelles plateformes technologiques.

Les Etats membres devraient encourager le développement des médias communautaires et le renforcement de leur contribution au pluralisme du paysage médiatique.

Les Etats membres devraient faire de la contribution à la liberté d’expression et d’information et au pluralisme des opinions un objectif obligatoire lors de l’octroi des autorisations d’émettre.

Les Etats membres devraient renforcer leur action pour garantir le pluralisme et l’indépendance éditoriale des médias par des lois ou d’autres moyens.

Les Etats membres devraient veiller à une séparation nette du pouvoir politique et dês médias et à la transparence de toutes les décisions prises par les autorités publiques à l’égard des médias.

En complément, les entreprises du secteur des médias devraient mettre en place des mécanismes efficaces d’autorégulation afin de préserver l’indépendance éditoriale.


Notas

[1] «Pluralismo e concentração dos média no mercado interior – Avaliação da necessidade de uma acção comunitária» (doc.COM (92) 480 final, de 23 de Dezembro de 1992)
[2] Elsa Costa e Silva, «Os Donos da Notícia – Concentração da Propriedade dos Média em Portugal», Porto, Porto Editora, 2004, p. 65.
[3] Livro Verde Relativo à Convergência dos Sectores das Telecomunicações, dos Meios de Comunicação Social e das Tecnologias da Informação e às suas Implicações na Regulamentação, Comissão Europeia, COM (97) 623, Bruxelas 3 de Dezembro de 1997, p.1.
[4] Op. cit., p. vii
[5] Op. cit., p. viii.
[6] Op. cit., p. 45.
[7] «Concentrations transnationales des médias en Europe - Rapport préparé par le AP-MD (Painel consultivo do CDMM sobre concentração, pluralismo e diversidade), Conselho da Europa, Direction Générale des Droits de l’Homme, Strasbourg, Novembre 2004.

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