15.2.08

Concentração dos média e crise da ordem democrática (2)

Deve reconhecer-se à partida que os dispositivos regulamentares da concentração e da convergência, entre os média tradicionais e os novos média, estão fragilizados por uma teia normativa nem sempre coerente, resultante de complementaridades e de colisões entre regulação, co-regulação e auto-regulação sectorial e direito da concorrência e ainda pelas diferentes políticas nacionais e europeias aplicadas a estas actividades.

É óbvio que o novo contexto da economia digital virá alterar os modelos instituídos, sendo assim necessário reconsiderar não somente a estratégia regulatória do analógico, como, na actual migração, toda a filosofia que presidiu à mercantilização da própria regulação do sistema de média.

Imaginando desde já o novo modelo no quadro do digital as duas questões centrais são assim, a regulação centralizada - ou não - de redes, serviços e conteúdos, por um lado, e, por outro, a questão do estabelecimento de quadros normativos, a delimitar a priori o desenvolvimento dos novos média e todo um complexo declinado de ‘content’ (ao qual não será possível atribuir um suporte ou uma linguagem exclusiva) num contexto digital. Neste domínio, em particular, há que ponderar se, desde que ajustável e adequado, a monitorização ‘a posteriori’, tendo em conta a evolução dos modelos de concorrência no contexto da economia digital, não terá a sua utilidade face a modelos hiper-regulados e desadaptados.

Todos estes temas não têm doutrina feita, bem pelo contrário. E a que existe é demissionária face ao que urge. Dado que aparenta haver, no quadro europeu, pouca sintonia nas grandes opções estratégicas entre os diferentes Estados-membros, importa então que se trabalhe, pelo menos, no sentido da harmonização de políticas consequentes suficientemente abertas e descentradas (mas com uma monitorização eficaz) e com uma dimensão co-reguladora e auto-reguladora capaz.

Falar de concentração nos média leva-nos, então, a estabelecer um breve quadro das diferentes modalidades em que o fenómeno se apresenta. Podemos pensar na concentração horizontal de conglomerados, de redes de meios especializadas em determinadas áreas da comunicação; podemos pensar na concentração vertical, específica, por exemplo, das majors norte-americanas, com sistemas de produção cinematográfica de ciclo completo, desde a pré-produção à teledifusão e à distribuição (cobrindo as áreas do cinema, da televisão e do vídeo); podemos referir a concentração múltipla, específica das grandes companhias japonesas, com a electrónica de grande consumo, a produção de programas e software e ainda a propriedade de estúdios norte-americanos; pode-se referir ainda a propriedade cruzada nos média, e ainda o cross-sell da actividade publicitária, quando gerida através de um sistema de concentração ou de sinergias de centrais de compra. Aspecto que, no plano da concentração dos média, diz respeito às ligações entre os grandes grupos de comunicação e a área da publicidade, designadamente através da criação de grandes concessionárias de perfil vincadamente multinacional.

O risco, neste domínio, é não só a constituição de um paradigma da publicidade a configurar a estrutura profunda da comunicação social, como ainda a sua explicitação - e as diferentes contaminações -, no plano discursivo e dos conteúdos. O que originaria uma perversão, dada pela filiação das práticas jornalísticas aos ‘desígnios’ do paradigma publicitário. O pluralismo e a liberdade editorial já não ‘morariam’ aqui.

A questão que se coloca agora, tem, de facto, a ver, em particular, com o contínuo crescimento de fenómenos de fusões e de concentração em ambiente digital, muito embora em Portugal não seja esse ainda o caso.

Uma das perguntas que se tem vindo repetidamente a fazer, com alguma preocupação, releva exactamente do âmbito das liberdades: garantirão os meios de comunicação, na Europa (onde em boa parte os média são dominados por um número limitado de grandes grupos), a expressão da pluralidade das opiniões, sem constrangimentos? E sobretudo num contexto de convergência, média e novos média garantir-nos-ão essa abertura? As respostas não têm sido tranquilizadoras, sobretudo quando centradas no sistema industrial.

Na Europa, tem sido muito variável o tipo de enquadramento jurídico para limitar a concentração dos meios de comunicação. Países há que têm disposições legislativas anti-trust, como é o caso, designadamente, dos países nórdicos. Nos grandes mercados europeus, como a Grã-Bretanha, a Alemanha e a França, a legislação tende a limitar a concentração dos média, mas não aprofunda as matérias para além das grandes orientações que procuram evitar a apropriação, por um número limitado de grupos de comunicação, dos principais meios de comunicação de um determinado país ou região. É assim frequente encontrarem-se fenómenos de forte concentração através de estratégias horizontais, ou mesmo cruzadas.

Verifica-se depois, em geral, a limitação da concentração através das condições de atribuição de licenças de exploração de rádios, TV's, etc., condições que se articulam também ao nível do controlo do capital das sociedades e na limitação dos acordos e fusões estabelecidos entre si. Pode colocar-se a questão da falta de legislação específica, e também a inexistência de harmonização legal no plano europeu e em consequência, no limite, a possibilidade de se constituírem monopólios e oligopólios organizando a sua redistribuição multinacional de acordo com os vazios legais ou a permissividade de cada de cada Estado.

Em geral, portanto, os limites à concentração na atribuição de licenças encontram-se quer nos quadros legislativos globais, quer na legislação relativa em específico aos diferentes subsectores. Têm por objectivo, em regra, não conceder senão um número limitado de licenças a uma mesma sociedade ou a um mesmo grupo. Por exemplo, na Alemanha é conhecida legislação específica nas Länder, nas regiões, que prevê medidas especiais para situações de reduzida concorrência – por exemplo, quando existem menos de três operadores privados, deve haver um maior cuidado por parte dos detentores das licenças por forma a garantir a liberdade e a diversidade da opinião.
Para além da legislação genérica, há um outro aspecto muito importante. Existem também regras relativas à participação cruzada nos média. Estas limitações pretendem evitar que certas empresas ou grupos de comunicação cheguem a controlar, através de participações noutros órgãos de comunicação, o conjunto dos média de determinada zona geográfica.

Parece-nos importante, portanto, centrar esta reflexão em torno de três aspectos centrais: por um lado, sobre a oportunidade de criar uma harmonização das regras nacionais relativas à propriedade dos média e à concentração dos mercados, e ainda à criação de uma estrutura europeia de observação; em segundo lugar, sobre a limitação dos processos de integração entre o campo dos média e a publicidade; e finalmente em torno da defesa inequívoca do pluralismo e da liberdade de expressão, através de regras claras nesta matéria, ajustadas ainda à responsabilidade social dos média.

Uma das tendências que também se verifica, designadamente nos sistemas de mercados mais abertos, como nos EUA, é para uma avaliação "ex-post" do fenómeno da concentração, sendo o direito da concorrência privilegiado na análise criteriosa das situações que podem configurar abuso de posição dominante nos mercados locais ou nacionais. Emergem entretanto novos mecanismos que podem cercear o pluralismo, como, por exemplo, a detenção de direitos, bloqueios à entrada de novos operadores, bloqueios à acessibilidade à informação e à inclusão, estratégias comerciais que impedem práticas de diversidade e conteúdos culturais, etc.

No actual quadro de desenvolvimento dos média em Portugal, da convergência e da consolidação de uma Sociedade de Informação, importa ter bem presente um conjunto de princípios que enformam um desígnio imperativo nas jovens democracias, aberto a uma opinião pública cada vez mais forte tendo em vista a emergência uma sociedade civil cada vez mais interventora, participativa e dinâmica.

Entre esses princípios elementares estão, naturalmente, a concorrência, o pluralismo e a diversidade cultural.

Recorde-se, por exemplo, a iniciativa Convergência e Regulação[1], importante para a estruturação do pensamento estratégico nesta área, em Portugal, onde se dizia, nomeadamente: «a importância específica dos conteúdos enquanto forma de expressão legítima de indivíduos e organizações em sociedades plurais e democráticas e de desenvolvimento social equilibrado, por um lado, e, por outro, a subordinação crescente dos conteúdos a lógicas empresariais orientadas para o lucro, associadas a uma penetração cada vez maior destes em ambientes virtuais, coloca questões fundamentais para o desenvolvimento sócio-económico (...)», e também: «A necessidade de continuar a assegurar a liberdade de expressão, a diversidade e o pluralismo implica a tomada de medidas que controlem a influência do poder económico e do poder político na orientação e na selecção dos conteúdos pelos média, eliminando obstáculos a uma possibilidade de escolha tão alargada e diversa quanto possível».

Devendo ser o serviço público de Televisão, na Europa, um dos tradicionais bastiões da questão da diversidade cultural e linguística, não se pode perder de vista este conceito-charneira na reflexão que aqui propomos. Aliás, o mesmo é reconhecido no documento em apreço já citado: «O GR (Grupo de Reflexão da Iniciativa Convergência e Regulação) subscreve a importância dos objectivos tradicionais do serviço público de televisão - uma programação diversificada e de qualidade, a defesa da língua, identidade e coesão nacionais, a garantia de objectividade e pluralismo da informação - e considera, ainda, que o serviço público pode desempenhar um papel decisivo face à massificação do acesso à sociedade da informação, actuando como elemento catalisador da transição da televisão analógica para a digital.»

E se é um facto que «a crescente diversificação de conteúdos e serviços disponibilizados pelos novos meios de comunicação social poderá reforçar a importância da missão global do serviço público na preservação da democracia, do pluralismo, da coesão social e da diversidade cultural e linguística» (op. cit.), uma inquietante dúvida nos assalta quando, como sucede em Portugal, não se vê forma de suportar, política e culturalmente, esse necessário reforço das competências do serviço público num contexto digital

Para concluir ainda no âmbito do documento Convergência e Regulação, veja-se, em síntese, o que se propõe no domínio da promoção da concorrência, concentração da propriedade e salvaguarda do pluralismo: «A convergência potencia a integração horizontal de operadores, bem como a existência de grupos multimédia que controlam toda a cadeia de valor de conteúdos e serviços audiovisuais, desde a titularidade de direitos sobre as obras, passando pelos meios de produção e até os meios de difusão/distribuição (integração vertical).» (...) «A concentração da propriedade é frequentemente condição indispensável para a própria sustentabilidade económica de projectos empresariais inovadores no domínio dos média. Esta tendência não deixa de suscitar o aparecimento de questões em diversos planos, requerendo uma intervenção das instâncias de regulação que concilie os objectivos de promoção e desenvolvimento do mercado, por um lado, com a salvaguarda de determinados princípios de interesse geral».

[1] Iniciativa «Convergência e Regulação - Recomendações de actuação estratégica». Ver o documento em: http://www.anacom.pt/template15.jsp?categoryId=36586

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