14.12.06

A RTP2 ou a 2: como álibi (para se perceber as práticas da RTP1)

Miguel Sousa Tavares, na sua coluna do último Expresso (8.12.06) sob o título "Portugal Habitual" escreveu sobre a RTP2 como "arquivo morto da 'qualidade'" da televisão pública:

"Aqui há uns quatro anos (Governo Durão Barroso), aceitei fazer parte de uma daquelas inúteis comissões que se nomeiam para se fingir que se quer fazer alguma coisa que depois não se faz. No caso, tratava-se de arranjar objectivos claros para a RTP. A ideia do Governo era a de extinguir o Canal2 da RTP, para o que, e face à contestação logo desencadeada na empresa, precisava do aval e da concordância de uma comissão de 'independentes'. Acontece que há muitos anos que a minha ideia era também a de que, não só o Canal 2 não tinha razão de existir, como ainda existindo, servia de arquivo morto da 'qualidade', permitindo ao Canal1 estar dispensado de se preocupar com isso."

Concordo em pleno com Miguel Sousa Tavares e é isso mesmo que penso há quase trinta anos, desde que comecei a escrever sobre televisão e a estudar o fenómeno televisivo em Portugal e a pugnar por um serviço público de televisão ao serviço do país e dos cidadãos e não do sistema político-partidário. Sem grandes resultados, infelizmente, pelo que me parece ser essa uma contribuição nociva e perversa do sistema político e mediático (público) para o reforço das práticas de cidadania, da identidade cultural e da opinião pública em Portugal.

Ao longo de décadas, mas sobretudo a partir dos anos 80, a RTP/2 sempre foi de facto um álibi para o Estado e para o sistema político-partidário justificarem o financiamento de um canal de tipo comercial (RTP1), que, na prática, sempre foi mais um aparelho ideológico do Estado do que um 'serviço público', e que dessa maneira ficava aparentemente "livre", aos olhos do sistema político e perante a opinião pública e os media, de prestar, estritamente, um serviço público de televisão aos portugueses.


Não por acaso, nunca houve uma monitorização regular por parte do Estado e do regulador sectorial, sobre a boa aplicação, em consonância com o cumprimento rigoroso de uma programação de serviço público, das centenas de milhões de contos que sobretudo desde 1992 o erário público destinou à RTP.

A proposta de Lei da TV de 2006 vem manter e reforçar este álibi da RTP2 face à RTP1, que, estranhamente, os media e a sociedade portuguesa parece que aceitam pacificamente, a ver pelo debate praticamente nulo sobre esta Lei de TV, sobretudo nos media. Mas se, porventura, essas opções fossem baseadas em critérios rigorosos de cidadania e de identidade cultural e legitimadas por estudos qualitativos, porventura não seria exactamente assim.

Veja-se, neste sentido, Gustavo Cardoso em "Os Media e a Sociedade em Rede", FCG, Lisboa, 2006, nomeadamente o capítulo "O encerramento da RTP/2: a Televisão vista da Internet", pp. 513-540: " Em Maio de 2002 após o anúncio de alterações substanciais, gerou-se na opinião pública um espaço alargado de debate sobre o futuro da RTP. (...) Fazemos esta introdução pois, para além do interesse que há em estudar o movimento de cidadãos enquanto movimento social que se opôs às alterações na RTP e da singularidade do facto de o agente de mediação televisão se ter tornado ele próprio notícia, há no registo escrito dos protestos matéria que nos permite tentar enunciar uma proposta de entendimento sobre o que é serviço público (...)". E mais à frente: "(...) no quadro de referência para as discussões mantidas online é de salientar que a RTP2 é o canal mais defendido, apresentado inclusive como modelo de serviço público a seguir."

Pergunta depois Gustavo Cardoso: "O que é então serviço público para as audiências? Segundo os telespectadores da RTP, serviço público é informação como a apresentada na RTP1 e uma programação como a da RTP2". "(...) Trata-se também de um modelo de televisão que (...) deixe de copiar modelos de entretenimento já existentes nas televisões privadas. A ideia apresentada é a de que ao contrário do serviço privado de televisão, que ainda que muito visto é percepcionado como de fraca qualidade, o serviço público necessita de apostar na qualidade".

Vem então a propósito um texto por nós escrito no final dos anos 80 (1989), publicado na revista de Comunicação e Linguagens do CECL/FCSH (nº9), pp. 11-22, onde parte destas questões críticas do sistema televisivo e da cidadania eram já antecipadas (intitulava-se o texto "O serviço público de televisão na perspectiva dos anos 90"):

" (...) Poder-se-ia pensar a desregulamentação como uma espécie de pseudoliberalização e, necessariamente, a reactualização da noção de serviço público (...) como um reposicionamento e simultaneamente um eufemismo da sua estratégia de consolidação enquanto referente central das práticas sociais, políticas e culturais (...). A questão da desregulamentação torna-se assim um novo discurso de legitimação, com todas as consequências que daí resultam em termos de uma utilização do sistema televisivo (Kristen, 1985).

"Neste caso, em nenhuma circunstância é crível que, nomeadamente as propostas da UER, da UNESCO e do Conselho da Europa, quanto às orientações que devem presidir à gestão de um serviço público de televisão, venham a ser seguidas no essencial. E os novos serviços públicos de televisão transformar-se-ão inevitavelmente em poderosos complexos concorrenciais disputando ferozmente o mercado publicitário e optando por conteúdos e por uma estratégia de programação de tipo sensacionalista subserviente à “ditadura das audiências”.

"Mas se, por um lado, o Estado não vai alienar uma prática e a sua função de 'vínculo social', e de meio de instrumentalização e de poder, essencial à sua manutenção, essencial à continuidade dos processos de regulação que instituiu como norma, procurando por isso preservar o modelo de serviço público de televisão, por outro lado, ele cede neste mesmo campo quando responde com iguais argumentos (leia-se: programas, conteúdos, modelos) à estratégia concorrencial dos grupos económicos, a quem acaba por delegar a tarefa de legitimação “civil” da ordem do mundo que quer neutralmente perpetuar - e aí não cumprirá a sua missão tradicional de Estado, isto é, não só sucumbe por não apresentar um modelo alternativo, como se demite de regular o que naturalmente tem tendência a transformar-se na antítese de um “serviço público”."

Hoje pode então dizer-se que, quer através de estratégias de 'desregulamentação' (liberalização dos anos 90), quer através das estratégias de regulação e re-regulamentação supervenientes que chegam agora a esta Lei de TV de 2006, o que se verifica é ainda uma e uma só coisa: o reforço de práticas políticas, jurídicas e mediáticas, cujo efeito no sistema público de media concorre prioritariamente para a perpetuação e auto-legitimação de uma ideia limitada de 'política' (na melhor das hipóteses a ideia do partido do 'centrão' que governa na altura), cujo garante assenta então, muito em particular, em débitos de audiências convenientes à 'mensagem' televisiva da agenda protocolar do governo e do partido do governo, da burocracia telejornalística e dos mimetismos do quotidiano, da actualidade trágica e do fait-divers. E é à RTP1 que cabe e tem cabido, justamente, este 'serviço' pouco 'público', de certa maneira consensualizado entre as (más) práticas políticas (mediáticas) dominantes.

Num recente Clube dos Jornalistas (salvo erro de 4.10.06), sobre o tema dos Provedores da RDP e RTP, Correia da Fonseca, um verdadeiro senhor da crítica televisiva em Portugal (neste momento é mesmo o seu 'decano'), na sua intervenção, falou como sábio na matéria que é. E disse: "a superficialidade ocupa a RTP1 e a cultura é desterrada para a 2:" Ora é isso mesmo, sem tirar nem pôr.

Ver a propósito: Nova Lei de TV: a institucionalização do “apartheid” cultural na RTP

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