Sobre o novo critério editorial vigente: 'isto vende ou isto não vende?'
por Mário Verino Rosado
As crónicas e os prefácios, reunidos ao longo dos anos, vão apontando os sintomas de uma estação em falência financeira, cultural e ideológica. Não será, pois, uma actualidade factual a “morte” da RTP, será antes, segundo o autor, um fim anunciado ao longo de anos de más políticas e de concorrência, por vezes, desleal.
No entanto, outros temas de relevância atravessam este conjunto de textos. É fulcral compreender as noções de Serviço Público, sintomas de mau jornalismo, violência e dependência estatal, propostos pelo autor. Um outro factor que confere pertinência e interesse à obra são as “estórias” vividas ou as polémicas suscitadas pelo autor, que, numa escrita muito acessível e sem tabus preenchem a obra com o sentido de dignidade e objectividade tão caros a Barata-Feyo.
Dividida em quatro secções (1.RTP, 2.Uma Das Excepções à Regra RTP, 3.Jornalismo e Jornalistas, 4.Televisão), a obra faz um retrato real do estado a que a RTP chegou. Má Política e Concorrência serão os chavões que atravessam a obra e procuram explicar o porquê do assassínio/suicídio dos canais de Serviço Público.
Para uma melhor sistematização, procuraremos analisar individualmente cada uma das secções da obra, dando relevância, no contexto do trabalho proposto pela disciplina de História e Teoria da Televisão, às questões da concorrência televisiva na Paisagem Audiovisual Portuguesa (PAP) e às deficiências estruturais que terão levado a esta crise do Serviço Público.
José Manuel Barata-Feyo refere, na Introdução da sua obra, que a morte da RTP é de responsabilidade eminentemente política. Para corroborar a sua afirmação, o autor descreve as decisões políticas, que, a partir de 1991, contribuíram para o estado de degradação a que a estação televisiva chegou.
«Cavaco Silva e o PSD acabaram com a taxa de televisão, que existia desde os tempos da ditadura salazarista (!) (…) Enquanto mutilavam financeira e empresarialmente o Serviço Público e sabotavam a área dos seus recursos humanos «fazedores» de televisão, as administrações, escolhidas a dedo pelo Governo, trataram nessa altura de nomear as Direcções de Informação e Programas que, no plano dos conteúdos, melhor podiam complementar o processo de asfixia, privatizando as mentalidades na RTP e nos seus conteúdos, e as apetências e os instintos nos telespectadores, mesmo antes do aparecimento dos operadores privados.»[2]
Barata-Feyo defende, no entanto, que com a chegada do Governo PS, em 1995, a RTP viveu, até Março de 1998 (altura em que Joaquim Furtado assumiu o cargo de director de Informação e Programas dos dois canais públicos) um período em que conseguiu, pela primeira vez desde do aparecimento dos operadores privados, reconquistar audiências. Todavia, a limitação à publicidade no Canal 1 e a proibição da mesma na TV2, bem como a criação da RTP África e dos centros de Emissão Regional, decretados pelo PS sufocaram financeiramente a RTP. Existia, segundo as leis de mercado, mais custos e menos receitas para fazer face às despesas. O autor defende que a culpa não será totalmente imputável à estação. «A culpa foi e é de quem sempre nela mandou – os governos de Portugal, por interpostas administrações.»[3]. Na década de 80, já Vítor Cunha Rego havia considerado a RTP um «prolongamento do aparelho ideológico do Estado». Para todos os efeitos, a dependência política que sempre esteve presente nas administrações da RTP, terá sido fatal para a diluição do seu carácter de Serviço Público. Os «boys» partidários, das direcções da RTP, sempre confundiram o carácter público da estação com as ideologias estatais.
Face a estes factores políticos, a eclosão dos canais privados só contribuiu para piorar a situação da RTP. A Concorrência, muitas vezes desleal, das estações privadas em muito ajudou ao «naufrágio» dos canais do suposto Serviço Público.
A RTP, mutilada em termos de receitas publicitárias no Canal 1, viu a sua TV2 como um «peso morto» financiado em deficientemente pelo primeiro.
1.RTP
«Em 1993, tive a oportunidade de ver aplicar, na RTP, o novo critério editorial vigente: 'isto vende ou isto não vende?'»[4]
Os textos reunidos neste capítulo respondem, na sua generalidade a uma questão: O porquê do declínio da RTP.
No entanto, outros temas são abordados de forma sistemática. Falamos, naturalmente, das questões, transversais a toda a obra: do Serviço Público, das más práticas jornalísticas, da censura, da concorrência e das más políticas governamentais.
Por um lado, o facto de a SIC se ter tornado a bússola dos critérios editoriais da RTP não foi necessariamente positivo. O que isso provocou foi o declínio majestoso do Serviço Público, promovendo o excesso de violência e uma enorme quantidade de «telelixo».
Por outro lado, o espaço publicitário nacional torna-se deveras diminuto para corresponder às necessidades de quatro canais. Chega-se a uma conclusão inadiável: Existem demasiadas estações televisivas em Portugal.
Neste contexto, apenas a TV2 presta serviços de cariz público. Os restantes canais competem o «share» com uma programação nivelada por baixo, em termos de qualidade. «É o espaço da primazia da cultura sobre os instintos, exactamente o mesmo onde se estabelece a diferença entre os povos civilizados e aqueles que o não são.»[5], refere o autor em relação à TV2.
Barata-Feyo tece uma dura crítica aquilo que define como «sistema governamental» de gestão televisiva, considerando que esta originalidade da mente portuguesa apenas facilitou o desnorte da RTP em relação a uma noção de Serviço Público, bem como cimentou uma prejudicial dependência política, personificada nas sucessivas direcções da estação.
Um outro tema discutido, neste capítulo, é a censura que foi dirigida à equipa da Grande Reportagem em 1983. Segundo o autor, «no seguimento da Grande Reportagem sobre a guerra civil em Angola, filmada nas matas angolanas entre meados de Dezembro de 1983 e meados de Fevereiro de 1984, a administração nomeada para a RTP pelo governo do Bloco Central, presidido por Mário Soares, censurou a emissão, acabou com o programa, desfez a redacção e, enquanto me instalava um processo disciplinar com vista a despedimento, suspendeu-me do exercício de jornalismo e proibiu-me o acesso às instalações da televisão pública durante dezanove meses.»[6].
Em causa estaria uma peça sobre a UNITA. Este regime de censura parece impensável no pós-25 de Abril. No entanto, foi uma dura realidade para toda uma equipa de reportagem. Mais tarde a equipa havia de tecer reivindicações para uma melhor prática do jornalismo: «Pedimos também ao Ministério dos Negócios Estrangeiros uma lista dos países onde não podemos fazer reportagens; pedimos ao Ministério da Administração Interna uma outra lista de temas proibidos em Portugal e pedimos ao conjunto do Governo que faça uma estátua à memória da Liberdade de Imprensa.»[7].
2. Uma Das Excepções à Regra RTP
«Tema nacional, de eminente seriedade, que exigia um rigor exemplar à Informação do Serviço Público, Camarate ficou assim reduzido, na RTP, a um espectáculo de ficção publicitária…»[8]
Este capítulo funciona como exemplo prático daquilo que se afirma como um verdadeiro Serviço Público no domínio da Informação. O autor refere-se ao tão badalado caso de Camarate, acidente que, entre outras, ceifou a vida de Sá Carneiro.
No Espaço Público existe a dúvida de se Camarate terá sido um acidente ou um atentado. No entanto, uma reportagem realizada pela Grande Reportagem (1981/82) efectuou um levantamento exaustivo e sério de dados, que corroboraram a tese do acidente.
Conforme refere Barata-Feyo, «a RTP disponibilizou todos os meios que lhe foram solicitados pelos jornalistas encarregues pela investigação. Neles se incluiu o pedido de exumação dos cadáveres e a contratação de dois peritos estrangeiros, independentes e de reputação mundial.»[9]
Após um brilhante trabalho de investigação jornalística, o «follow-up» do tema não terá sido alvo dos mesmos escrúpulos. A tese da sabotagem promovida em debate moderado por Judite de Sousa (4 de Dezembro de 2000) pareceu instalar-se nas mentalidades dos portugueses e o documentário, um dos raros exemplos de bom trabalho jornalístico da RTP, permaneceu, tal incómodo, no arquivo da Estação.
Para o autor «o 4 de Dezembro de 1980 está para a sabotagem em Camarate como o Pai Natal para as crianças»[10], para o espectador a própria excepção se transforma rapidamente em regra.
3. Jornalismo e Jornalistas
«Em nome e pela causa sacrossanta do princípio da concorrência, empolaram-se factos, inventaram-se situações, manipularam-se povos inteiros, mentiu-se deliberadamente. Fizemos o contrário do que a Informação manda que se faça.»[11]
Capítulo crítico essencialmente dedicado às «estórias» da profissão jornalística. Tecem-se, todavia, duras críticas à guerra das audiências, vector fundamental da degradação do papel e do trabalho dos jornalistas. Este começam a entender que só devem «responder perante a Opinião pública que os próprios se encarregam de controlar, manipular e até calar, quando tal é o seu interesse»[12].
Será essencial para o jornalismo que a sua deontologia seja revista. O facto de o jornalista se vender e de pensar só no seu bem pessoal não está consagrado nos ideais da profissão. Por outro lado, caberá aos Governos a não distorção e manipulação dos factos apresentados pelos profissionais da Informação. Este fenómeno observou-se em larga escala com a política norte americana de contra-informação, durante os conflitos com o Iraque e durante a crise do 11 de Setembro. Segundo o autor, «em todas estas guerras, as opiniões públicas não foram minimamente informadas. Porque não nos deixaram informar. Mas foram adequadamente intoxicadas com a propaganda que lhe oferecemos. Na melhor tradição das ditaduras.»[13].
Em Portugal, o já referido caso Camarate será um bom exemplo do que se entende por manipulação governamental do trabalho jornalístico.
Neste capítulo existe ainda espaço para uma mordaz crítica lançada a uma reportagem da SIC. José Manuel Barata-Feyo considera «Impensável» a entrevista realizada a Xanana Gusmão, aquando este se encontrava numa prisão indonésia. Segundo o autor, «entrevistá-lo é abjecto. É criminoso. Ultrapassa a vertigem inaceitável do sensacionalismo.».[14].
Serão estes tipos de atrocidade jornalística e humana que se desencadeiam num processo marcadamente concorrencial. O mau gosto da entrevista da SIC infelizmente não terá sido um caso isolado no decurso das guerras da audiência. Semelhantes atentados às boas práticas jornalísticas assombraram os noticiários das três estações (RTP, SIC, TVI).
4.Televisão
«Este vazio só foi possível porque nós, jornalistas, abdicámos da nossa função crítica para melhor nos podermos identificar com a ideologia dominante: a autopromoção, as audiências e o dinheiro.»[15]
Este capítulo assume-se como o mais importante para um estudo dos efeitos da concorrência televisiva, em Portugal, na década de 90. O texto central deste capítulo dá pelo título de PAP. Originalmente serviu de Prefácio à segunda edição de Informação, Manipulação, obra de Alain Woodrow, mas será fundamental enquanto retrato fidedigno do Panorama Audiovisual Português aquando o aparecimento dos emissores televisivos privados.
Assim, em 1996, a RTP, concessionária do Serviço Público mantém os dois canais, mas perdeu o monopólio das audiências para a SIC, o «recém-nascido» dos canais privados. O cálculo do share denota precisamente essa realidade (Canal 1:30% de share, SIC:50%, TVI:12%, TV2:8%).
Canal1, SIC e TVI assumem-se como canais generalistas, com produções e programação de sentido comercial. A TV2 representa o canal das minorias culturais e intelectuais, com uma programação que privilegia a cultura e o saber, mas com índices de audiência extremamente reduzidos. Se bem que o panorama financeiro dos quatro canais seja preocupante, a TV2, proibida de passar publicidade comercial, sustenta-se com as receitas publicitárias do Canal 1. Mas como terá sido possível chegar a este panorama? Barata-Feyo considera que, para além da concorrência, a sentença de morte da RTP terá sido atestada pela sua administração. «Apesar de alguns alertas lançados no seio da empresa, o Canal 1 optou nessa altura por uma estratégia que de pronto se revelou suicida: a Informação do Serviço Público, característica dominante da personalidade e de credibilidade de qualquer televisão, adoptou de um dia para o outro o conteúdo e a forma próprios dos canais privados.»[16]
Todavia, terá sido apanágio da SIC arriscar numa programação polémica e arrojada, aumentando o seu nível de audiências. Numa fase seguinte, a RTP, completamente destituída de personalidade, começou a orientar a sua programação em função da SIC, copiando-lhe em muitos casos a estrutura televisiva. Este factor originou a aridez dos horários nobres do panorama televisivo nacional.
Para Barata-Feyo, «tinha chegado a hora da RTP pagar a falta de uma credibilidade que ela própria destruíra ao destruir os seus programas credíveis, a hora de se ver abandonada por uma Opinião pública que nunca se preocupou em formar.»[17]
O autor refere que durante os anos da democracia a RTP viveu uma situação de dependência ultrajante com os sucessivos governos do país. As administrações da estação, autênticos braços políticos do estado, «privatizaram» a mentalidade do canal. As más políticas que começaram com a extinção da taxa da televisão, em 1991, bem como o financiamento de um Serviço Público com fundos privados, oriundos da publicidade, foram desmembrando a RTP.
«Dir-se-á que a RTP podia e devia ter feito a aposta na qualidade contra a vulgaridade, morrendo de pé ou obrigando o governo a assumir as responsabilidades políticas que eram as suas. Mas só morre de pé quem vive de pé e, na RTP, a tendência do pé era fugir para o chinelo.»[18], refere Barata-Feyo.
Outro factor essencial para a crise na RTP foi a fuga do seu capital humano para a concorrência, que sempre melhor o soube tratar.
Mas, na visão de José Manuel Barata-Feyo, a data oficial da morte da RTP foi a 1 de Outubro de 1995, quando a SIC antecipou, em meia hora antes do fecho das urnas, as projecções dos resultados eleitorais, garantido para o resto da emissão o dobro do share do CANAL 1. «Mas um gigante só cai de um golpe e ainda que baixo, quando já está muito doente.»[19], acrescenta o autor.
Para os próximos anos, resta à RTP ressuscitar e definir as necessidades de um Serviço realmente Público que estabeleça uma interacção fundamental com o seu telespectador. Porque, nas palavras de Barata-Feyo: «No que respeita à Opinião Pública, último suporte da democracia, a interactividade só é possível quando o telespectador, com exigências culturais e de qualidade, puxa pela programação, por seu turno geradora de telespectadores com novas e ainda maiores exigências.»[20]
Considerações finais
Perante tal contexto, a emergência de medidas que regulem a PAP, de forma a não permitir que hajam deficiências no Serviço Público e que não exista concorrência desleal entre as diferentes estações televisivas, é fundamental.
Por outro lado, medidas de carácter político deveriam ser tomadas de forma a quebrar a dependência política da RTP face ao Governo. Barata-Feyo propõe para esse efeito algumas soluções: «A RTP seria confiada a um Director Geral, eleito por dois terços do parlamento ou, melhor ainda, por um colégio eleitoral com uma composição semelhante à do defunto Conselho de Imprensa.»[21], o Director Geral, nunca eleito por um período inferior a cinco anos, prestaria apenas contas a esse órgão e só poderia ser demitido pelo mesmo. Quanto às verbas necessárias para custear o Serviço Público, deveriam ser contempladas no Orçamento Geral do Estado e escrupulosamente fiscalizadas pelo Tribunal de Contas.
A ideia da criação de uma Alta Autoridade exclusiva para o Audiovisual, defendida por teóricos como Francisco Rui Cádima, parece ser a opção fundamental para a PAP nacional. A par desta medida, será essencial promover estudos qualitativos em televisão, aquilo que Cádima define como «possuir os dados sobre o agrado do público, quer em relação às grelhas de programação, quer em relação aos géneros televisivos e à filosofia do canal, independentemente da grelha que possa estar no ar, procurando definir os modelos de programação que encontrem o equilíbrio entre o agrado dos telespectadores - sem conceder ao «comercial» e à guerra de audiências - e a responsabilidade de fornecer um serviço público. Aqui, há sobretudo que ter em conta que o telespectador estatístico é muito diferente do telespectador reflexivo, do cidadão.»[22].
Tudo isto em nome da não diluição do Serviço Público televisivo e do consequente empobrecimento da Opinião Pública. No contexto actual, o panorama televisivo nacional remete-nos para as palavras de José Gil: «A televisão portuguesa é como toda a gente sabe (e com raríssimas excepções, que toda a gente também conhece) uma pura miséria, uma máquina de fabricação e sedimentação de iliteracia.»[23] . Será, portanto, este triste cenário que será urgente repensar.
Notas:
[1] Barata-Feyo, José Manuel, RTP: O Fim Anunciado, Lisboa, Oficina do Livro, 2002, p.19
[2] Ibidem:20-21
[3] Ibidem:23
[4] Ibidem:29
[5] Ibidem:42
[6] Ibidem:78
[7] Ibidem:.70
[8] Ibidem:.103
[9] Ibidem.:101
[10] Ibidem: 110
[11] Ibidem: 119
[12] Ibidem: 118
[13] Ibidem:147
[14] Ibidem:129
[15] Ibidem:154
[16] Ibdiem:157
[17] Ibidem: 160
[18] Ibidem:162
[19] Ibidem:169
[20] Ibidem:162
[21] Ibidem:166
[22] Cádima, Francisco Rui, Desafios dos Novos Media, Editorial Notícias, Lisboa, 1999.
[23] Gil, José, Portugal Hoje: O Medo de Existir, Lisboa, Relógio D’Água Editores, 2004, pp. 33-34.
Barata-Feyo, José Manuel, RTP: O Fim Anunciado, Lisboa, Oficina do Livro, 2002.
Cádima, Francisco Rui, Desafios dos Novos Media, Editorial Notícias, Lisboa, 1999.
Gil, José, Portugal Hoje: O Medo de Existir, Lisboa, Relógio D’Água Editores, 2004.
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