4.12.05

A televisão, a criança e a publicidade

(do livro: Estratégias e Discursos da Publicidade, de Francisco Rui Cádima, Lisboa, Vega, 1997.

A criança e a televisão encerram na sua complexa interacção o segredo do paradigma mais generalizado da televisão clássica no que concerne ao modelo de criação do vínculo e do «consenso» social imposto como norma de conduta, como referente cultural, social e comportamental. É fundamentalmente essa a questão que se deve colocar na abordagem da problemática entre a publicidade e a criança. De facto, como dizia Michel Souchon, «À travers la publicité, les objets s'animent, les mots se chantent, les gens mêmes sont mis à la portée des enfants et cherchent à satisfaire leurs désirs sur un ton fantaisiste et gai qui les amuse et les entraîne dans un monde merveilleux. Comment n'en seraient-ils comblés? 1 ».

A questão é esta: da mesma maneira que uma criança está desprotegida face à mensagem televisiva - dir-se-ia por um analfabetismo audiovisual natural - também o chamado «grande público» da televisão sofre da mesma imunodeficiência, por assim dizer, face às televisões «tablóides» e a todo o tipo de sensacionalismo.

De facto, a televisão e o mundo da criança cruzam-se muitas das vezes de forma não tão equilibrada quanto seria desejável. A questão prende-se essencialmente com a criação pela TV de expectativas, de modelos comportamentais e normas de conduta absolutamente desapropriados em relação ao universo dos mais jovens. De facto, uma coisa é, por exemplo, a realidade 'publicitária' que a televisão dá a ver, e outra coisa bem diferente é a realidade do mundo que nos rodeia.

Há que reconhecer que as relações da televisão com os telespectadores mais pequenos inserem-se num problema mais vasto que remete, no fundo, para a programação em geral e para as pequenas e grandes guerras de audiências que dominam a paisagem televisiva. Em particular tornam-se preocupantes as formas de violência, belicismo e sexismo que essa mesma programação assume frequentes vezes, designadamente na publicidade, na ficção televisiva, incluindo as novelas, e na informação.

No caso da publicidade porque, no fundo, através dessa mitologia de sonhos e miragens, tudo se passa como se as imagens da publicidade construíssem o melhor dos mundos a desfrutar. É toda uma nova ordem simbólica que se cria - autêntico jogo à revelia do verdadeiro e do falso - em que a publicidade força a interacção da criança com o mundo do adulto, mostrando-lhe os modelos da sociedade da abundância através de uma lógica consumista que estrutura, de alguma forma, as expectativas das crianças desde o período pré-escolar até à fase em que a criança é mais receptiva à publicidade, aos seus códigos, e aos seus processos de sedução.

Outra questão de enorme relevância - e que teima em manter-se - é o facto de os anúncios dirigidos às crianças continuarem a ser marcadamente sexistas, isto é, a publicidade destinada às crianças continua a separar os seus papéis por sexos, o que acaba por reprimir a partilha das experiências e dos diferentes papéis sociais tanto no processo de desenvolvimento da criança como do jovem.

Dados mais preocupantes referem inclusive que as crianças que vêem uma média de três horas e meia de televisão por dia, chegam a ver uma média de 100 spots publicitários por dia. Importa, portanto, dar mais atenção aos efeitos da televisão nas crianças e nos jovens. Sobretudo numa altura em que os estudos apontam, mesmo no caso português, para o facto de as crianças passarem mais tempo perante a televisão do que a falar com os pais ou nos bancos da escola.

Outra é a questão da violência real do meio, aquela que advém do próprio dispositivo televisivo. Por exemplo, dificilmente se poderá encontrar maior violência na programação televisiva do que na habituação a modelos narrativos não contraditórios, circulares e fechados. Trata-se aí da redução da experiência e do saber aos arquétipos das imagens protocolares, da serialidade, da modelização, por exemplo, da televisão generalista clássica a padrões e programas estereotipados, e da aculturação das audiências a mecanismos contratuais. Por isso mesmo, a violência televisiva que mais nos deve preocupar é a violência subliminar que apazigua de modo indolente o corpo social 2 .

Importa pois não iludir o problema essencial: a principal violência que a televisão cria está no próprio consumo televisivo, é o hábito e a fidelização, nomeadamente em relação ao stripping (fidelização horizontal - no nosso caso com as telenovelas a marcarem ao longo da semana o espaço nobre da programação, «ensanduichando» a informação e fidelizando horizontal e verticalmente a audiência, reduzindo a um género televisivo menor - ou mesmo ao menor dos géneros televisivos - a qualidade, a diversidade e o entretenimento televisivo. Ora, a publicidade está no cerne exactamente desse dispositivo - é, por assim dizer, o seu elemento charneira.

Complexa é também a violência explícita, embora não seja esse o tema que agora aqui nos traz. Vejamos então a questão da publicidade. Existe, por assim dizer, um pequeno mundo simbólico, constantemente recorrente na publicidade televisiva dirigida à criança. É nesse apertado círculo mitológico, mas também mágico e encantatório - alimentar, lúdico, familiar, securitário -, que, no fundo, se configura e se cristaliza um imaginário não referencial com o real.

De facto, «a publicidade é o reflexo da felicidade tal como a sociedade de consumo a propõe: se o forno está sujo, ou o fato de trabalho imundo, um produto miraculoso voltará a pôr rapidamente tudo na ordem e limpo» 3 .

No fundo tudo se passa como se a publicidade construísse o melhor dos mundos, no qual os bebés seriam sempre desejados, lourinhos e de olho azul, tivessem todos os brinquedos do mundo à sua disposição - incluindo os bélicos - e crescessem à custa do fast-food ou dos achocolatados, não faltando sequer um computador lá em casa para as brincadeiras pré-alfabéticas. Nesta exploração do vínculo entre a criança e o mundo, a publicidade elabora fundamentalmente o seu performativo - a sua função essencial -, isto é, nomeia para fazer existir.

Aqui emerge desde logo uma lógica consumista que modela de alguma forma as expectativas das crianças desde a sua idade de identificação – dois/três anos - até cerca dos oito anos, em que a criança é extremamente receptiva à publicidade - e não só aquela que lhe diz directamente respeito. A partir daí vai-se então desenvolvendo um sentido de questionamento e de observação sobre as qualidades formais da publicidade em si e eventualmente dos seus argumentos mais directamente perceptíveis pela criança.

A criança é assim orientada no sentido de explorar os verdadeiros «acontecimentos» consumistas que lhe são dirigidos através de uma retórica clássica - «descobre», «experimenta», «não percas», «telefona já» - associada às figuras do «novo» e do «necessário».

Em termos da linguagem publicitária, tudo parte do seu carácter esquemático e circular e da sua grande capacidade de sedução, o que nos conduz também à questão da própria forma - mais do que do conteúdo - da publicidade televisiva. É aí que está o primeiro nível icónico de captação da atenção da criança, no fascínio da forma.

Outra é a questão das mitologias televisivas do crescimento, para citar Jean-Paul Gourévitch 4 . Aqui desenvolve-se sobretudo um discurso de protecção do desenvolvimento e do crescimento da criança, enquadrado por uma pleiade de produtos já banalizados, o que permite justificar de algum modo a própria publicidade como uma espécie de conselheira em saúde - é o dentífrico anti-cárie, as vitaminas, os nutrientes, os sapatos não deformativos, o papel higiénico macio - etc., etc., mas que muitas das vezes desliza para o campo da gulodice e de outras excrescências, por vezes de forma mesmo exagerada, como é o caso quando as virtualidades do produto são representadas pelos excessos, pelos abusos, com a própria cumplicidade e/ou participação do adulto.

Neste jogo em que a publicidade provoca a interacção da criança com a mãe ou o pai, é toda uma nova ordem simbólica que se cria, assente sobretudo no modelo do lar feliz, e consumista, e através das figuras da posse, do afecto, etc.

No fundo, toda esta mitologização parte do pressuposto de base - a publicidade cria as suas figuras de facto a partir dos desejos latentes, e transfere os falsos desequilíbrios do real publicitário para a satisfação da aquisição do próprio produto - daí que a imagem publicitária crie um verdadeiro écran transparente entre o mundo que é figurado por ela e o universo quotidiano dos seu público-alvo. Essa é a sua maior perversão.

As mitologias «culturais» da pub, provenientes da intersecção com a canção infantil, com as narrativas em forma de conto, com a banda desenhada, etc., relevam de formas discursiva já de si um tanto assépticas. Mas no fundo também por aí se reconduz a publicidade para a figura do estereótipo, reforçando na mesma as correntes dominantes, e permitindo também - outra das suas consequências negativas -, uma fácil projecção e identificação nos «heróis» das narrativas publicitárias.

Daí que seja fundamental dar mais atenção aos efeitos da publicidade nas crianças. Tanto nas redes públicas como nas privadas, já que estas se assumem como redes com publicidade ao contrário do que sucede por exemplo na BBC, que neste caso devia ser uma referência para o serviço público de televisão na Europa. Nesta exigência é óbvio que a sociedade civil tem um papel crucial.

Não queremos dizer com isso que se proíba a publicidade para crianças. Há outras maneiras de resolver esta questão, designadamente em relação às imagens e mensagens eventualmente mais nocivas. Recordo por exemplo que na Holanda, nos anos 70 era obrigatório figurar uma escova de dentes em toda a publicidade aos açucarados. E nos Estados Unidos, uma associação criada por Peggy Charren, confrontada com o excesso de cáries dentárias provocadas pelo excesso de consumo de açúcar entre as crianças americanas obteve a redução da publicidade nos espaços de programas específicos para crianças.

A questão é exactamente essa, como dizia Michel Souchon 5 se se interdita aos pais as cirroses no fígado (pub ao álcool) e os cancros no pulmão porque e que se deixa às crianças terem cáries dentárias e problemas de estômago?

São múltiplos os estudos, já desde os anos 70, que mostram preocupação pelo facto de as crianças passarem mais tempo perante a televisão do que em casa ou na escola 6 . E já nessa altura também do que se tratava era de identificar situações relativamente perversas, que tinham a haver com o facto de as crianças verem mais programas de adultos do que emissões infantis 7 .

Esse é um dos tópicos pouco referidos, mas que é preocupante. Desse modo tende a desaparecer a fronteira entre o mundo cultural da criança e o do adulto, e isto precisamente numa altura em que a criança é mais vulnerável. Se nessa relação unívoca com a televisão a criança não tiver o acompanhamento dos pais as implicações são ainda mais graves na medida em que, por assim dizer, o real responde, mas a televisão não.

E de facto, a passividade do jovem telespectador torna-se mais evidente nos países onde a produção televisiva é financiada no todo ou em parte pelas receitas da publicidade. A questão da publicidade televisiva é também elucidativa - na relação com a criança, o problema essencial é a sedução que a publicidade exerce sobre os mais pequenos. As mensagens publicitárias são de um modo geral repetitivas, insistentes, e anunciam sempre «boas novas». Fala do méritos dos produtos e nunca das suas fraquezas - há como que excitar o desejo da criança por produtos provavelmente inúteis, dos doces às guloseimas.

Ainda a questão do sexismo na publicidade infantil. Um estudo realizado em Espanha pela Asociación de Usuarios de la Comunicación (realizado para a União Europeia sobre a aplicação da Directiva Televisão Sem Fronteiras) 8 refere que «os anúncios dirigidos às crianças espanholas continuam a ser marcadamente sexistas. A publicidade utiliza ideias de poder, força, acção e vitória. Pelo contrário, os anúncios destinados às meninas baseiam-se em conceitos como maternidade, beleza, e sonhos.»

O que quer dizer que, sobretudo na época das festas e dias festivos da família, a publicidade destinada às crianças continua a separar os seus papéis por sexos. As meninas continuam a brincar com as bonecas, a fazer o comer e a tratar da casa, enquanto os meninos brincam com kits, videojogos, puzzles, brinquedos bélicos, etc. Outro aspecto, no caso espanhol, prendia-se com a utilização de apresentadores de espaços infantis, para promover directamente produtos e dissimular publicidade sob forma de concurso, o que não é permitido na Directiva comunitária.

Quer, portanto, através do imaginário consumista que a publicidade cria, quer através dos modelos tradicionais atribuídos aos diferentes sexos, a publicidade continua a extremamente antiquada e retrógrada. A alternativa passa, também aqui, provavelmente, pela aplicação de um programa do género - «todos diferentes, todos iguais». Neste aspecto, a publicidade poderia assim contribuir fortemente para uma evolução clara no plano das normas de conduta e dos papéis sociais entre homens e mulheres.

Curiosamente, um outro estudo feito em Espanha no decorrer do mês de Dezembro de 1992, antes do período do Natal 9 , estudo da responsabilidade da revista de informação ao consumidor Ciudadano (número de Janeiro de 1993) assegurava que nesse mês de Dezembro, as crianças haviam visto uma média de três horas e meia de televisão por dia, tendo visto mais de 3000 spots de brinquedos, o que significa uma média de 100 spots por dia, e por criança. O relatório referia que em alguns canais se emitiu até 50 % de publicidade sobre a duração total do programa. Algumas dessas TV's - Tele 5 e Antena 3 TV - as redes privadas espanholas, para iludir a legislação sobre percentagens de emissão de anúncios, lançaram programas que converteram o plateau televisivo num suporte publicitário permanente, com produtos das firmas patrocinadoras presentes no décor, ou através de concursos em que as crianças tinham que imitar um anúncio de uma referida marca.

Em Portugal, de facto, não temos tido grande preocupação por este fenómeno, pela influência negativa da publicidade no comportamento da criança e no social de um modo geral.

É sobretudo importante que um organismo oficial, um Observatório do Audiovisual, ou um Instituto do Consumidor, ou inclusive uma Comissão na área da Saúde, como a que promoveu este encontro, prepare relatórios regulares sobre a publicidade televisiva e as crianças, nomeadamente em relação à publicidade enganosa, às informações traficadas, aos produtos nocivos, aos discursos miríficos.

É importante também introduzir ao nível do ensino secundário o estudo da linguagem televisiva e do sistema mediático, onde a questão da publicidade deve ter uma importância crescente.

Nesta vertente do problema é sem dúvida importante incentivar o trabalho do educador, dos pais, apoiar a formação, etc., no sentido de preparar criticamente os mais novos para descodificarem a mensagem da pub e resistirem mais facilmente aos seus processos de sedução e persuasão. Uma visão comparada da realidade 'publicitária' e da realidade do mundo pode ser inclusivamente um jogo entre pais e filhos que rapidamente os porá de sobreaviso em relação aos universos miríficos da publicidade - a condição da mulher, a representação das relações no interior da família, os excessos simbólicos das marcas e produtos, os sonhos e as ilusões, por sistema...

Notas

1 L'Enfant devant la Télévision, Michel Souchon et altri, Casterman, Paris, 1979
2 O Fenómeno Televisivo, Francisco Rui Cádima, Círculo de Leitores, Lisboa, 1996.
3 Michel Souchon et altri, op. cit., p. 147.
4 Jean- Paul Gourévitch, «L'Enfant et la Publicité», Des Images pour les Enfants, dir. Bernard Planque, Casterman, Paris, 1977, pp. 128-131.
5 Souchon, op. cit., p. 150.
6 Ver, por exemplo, James Halloran, «L' homme fait la télévision à son image», Correio da Unesco, Março de 1979.
7 Ver designadamente Kazuhiko Goto, «A droga electrónica», Correio da Unesco, Março de 1979. prof. da Universidade de Tóquio, na sua análise sobre uma das televisões mais violentas para as crianças - a televisão japonesa.
8 El Pais de 16 de Fevereiro de 1996.
9 El País, de 28 de Dezembro de 1991.

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