24.7.07

A “televisão-nómada”

O novo contexto de migração progressiva da televisão clássica, ou generalista, para o digital, originará um complexo mas também “amigável” sistema de comunicação, integrado por uma rede matricial de plataformas e terminais, onde o modo tradicional de ver e produzir televisão, que caracterizou de um modo geral a segunda metade do Século XX, tenderá progressiva, mas inexoravelmente, para um termo.

Falar de televisão hoje, é, portanto, falar de um certo número de siglas – DVB-T, iTV, HDTV, VOD, IPTV, WebTV, todas com significados bem precisos, mas que no conjunto e nas suas múltiplas ligações são, sobretudo, mais uma interrogação do que propriamente uma certeza lapidar. Por exemplo, haverá no curto/médio prazo, “canibalização” das redes de maiores débitos e de infraestrutura pesada, por redes mais ágeis e de crescente capacidade de débito? E os velhos operadores e distribuidores passarão rapidamente à história face ao crescimento, como cogumelos, de “bancos” de conteúdos e de informação gerados a partir de ideias que se universalizam numa questão de horas?

Os sinais de mudança estão já a ser dados por aquilo a que já se chama, algo metaforicamente. a migração do broadcasting para o “egocasting”, isto é, para a edição e “difusão” de fragmentos de histórias individuais, de reportagens de “jornalistas-cidadãos”, de fotografia móvel, de arquivo “web”, de vídeo doméstico – do mais ao menos narcísico -, de blogs e vlogs, pela procura de conteúdos diversíssimos facilitados pelas novas capacidades de câmaras integradas nos telemóveis, etc., onde, naturalmente, a chamada Web 2.0, bem como tecnologias como o WiMax, ou websites como o You Tube são cruciais para a sua distribuição

“Egoscasting” significa aqui, também, que o telespectador está a tornar-se um editor e difusor e na maior parte das vezes os conteúdos que disponibiliza ou as histórias que constrói, designadamente em sites como o You Tube ou o My Space, por exemplo, obedecem a uma estratégia narcísica, de afirmação dessas mesmas identidades individualizadas ou mesmo de uma espécie de hiper-personalização dos novos actores e dos seus desempenho.

Evidentemente que para que o novo sistema “nomádico” possa funcionar na sua plenitude, importa que a inclusão digital e a coesão social possam ser salvaguardadas, o que está já a acontecer, designadamente em termos europeus relativamente à televisão digital terrestre. Vejam-se as iniciativas da Comissão Europeia e os seus objectivos de promover normas abertas e a interoperabilidade para a televisão digital, de modo a permitir que possa haver troca de conteúdos facilitada à escala planetária, nomeadamente em termos de televisão digital.

O novo dispositivo digital emergente integra não só a lógica matricial, diagramática, de comunicação ponto-a-ponto ou ponto-multiponto, mas também uma nova experiência “áudio-táctil-visual”, imersiva, participativa, com um grau cada vez maior de intervenção no novo espaço público, o que reconfigura o próprio lugar do sujeito no quadro da vida pública e política, com um ganho de autonomia e emancipação acrescentados face ao velho modelo “representativo”, também ele em perda com a radicação de novas formas emergentes de comunidades virtuais, de media participativos, enfim, de uma democracia reconfigurada nas novas ligações e nos novos fluxos de poder.

Não há assim dúvida de que a televisão está ela própria em mutação, ou mesmo em transmutação para algo que a arrasta para uma vertigem à qual não conseguirá escapar. Se, no passado, se falava na migração de um modelo monopolista/duopolista para um sistema fragmentado e de multiplicidade da oferta, agora é a vez de se assistir à pulverização desse sistema numa miríade de écrãs, terminais, plataformas, o que for.

As imagens desta vertigem nomádica tendem agora a estar permanentemente em ‘trânsito’, em absoluta disponibilização, em terminais em que o “I/am”, mais do que o “eye/am”, está ele próprio inscrito no nome da plataforma a começar justamente pelo iPod e pelo iPhone…


Um dos autores que na Europa dos anos 80 ficou bem conhecido por ter escrito com Dominique Wolton um livro que marcou um período de evidente apogeu da história da televisão (refiro-me a La Folle du logis: la télévision dans les sociétés démocratiques, Gallimard, 1983), volta mais de vinte anos depois, em 2006, ao tema, para desconstruir o que antes havia defendido, sem que daí se possam tirar dúbias ilações. Em La Fin de la télévision (Seuil, 2006) Jean-Louis Missika revê o campo da televisão nestes termos: “Entramos num mundo de imagens omnipresentes e de media ausentes. Cada vez mais imagens e menos televisão. Vamos ter uma sociedade sem televisão. Não é a televisão enquanto tecnologia que desaparece, mas a televisão enquanto média: a televisão instrumento de focalização das sociedades modernas, a mesma que por exemplo a 20 de Julho de 1969 reuniu todo o planeta perante os primeiros passos de Armstrong na Lua, ou aquela que reúne diariamente milhões de telespectadores perante os jornais das 20 horas”.

Diz Jean-Louis Missika que o seu livro se consagra à exploração do princípio desta revolução: “Porquê e como desaparece a televisão? O que se passa nos écrãs quando o media dominante deixa de ser dominante ? A que é que se assemelhará a nossa sociedade sem esse vínculo social obrigatório, tornado quase um hábito e um vinco da consciência colectiva? Quais serão as consequências sociais e políticas do desaparecimento deste formidável instrumento de polarização das atenções, de sincronização dos debates, lugar de confronto das opiniões, que era a televisão? Que imagem fará a sociedade de si própria nesse mundo sem televisão?”

A sociedade sem televisão não deixa de ser, no entanto, uma premonição por cumprir. E, muito provavelmente, irá continuando incumprida desmentindo-nos a todos. Recorde-se Umberto Eco que em 1995 parecia querer dizer não ter dúvidas e raramente se enganar quando aventou que daí por dez anos a televisão generalista teria sucumbido perante a revolução tecnológica que se anunciava. Mas Eco não estava sozinho. Estava muito bem acompanhado, designadamente por Andrew Lippman, um dos responsáveis máximos do MIT, que em meados dos anos 90, dava, como destino final à ‘caixa’, aí pelo ano 2000, nada mais nada menos do que um simples vaso para colocar flores…

Não há dúvida que estes nossos gurus e “techno” deuses nos querem sobretudo transmitir a ideia de que a televisão já não é a máquina “federadora” do vínculo social, como o foi nos anos 70 e mesmo 80 do século passado. Está de facto a afastar-se desse eixo e essa será uma espiral sem retorno. Esse velho ‘espaço público’ criado pela radiodifusão à distância vive o seu transe final e está realmente em processo lento de desintegração. Em desespero de causa apela-se agora à “proximidade” da televisão, como se essa fosse uma última confissão e um pedido de clemência…

Dos destroços desse ‘espaço público’ emergirá um novo media, que porventura será o próprio “novo” homem, recentrado agora, já não no mundo-cosmos de Vitrúvio, mas antes em conexão com todas as extensões da “galáxia-Rede”. Todos seremos centros do mundo e com essa mutação todos os velhos centros do mundo, porventura, fenecem e crepitam. Deus os venha a ter na altura própria, em boa paz e descanso, por muito que o não tenham merecido.

in Anuário da Comunicação, 2005-2006 - [
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