17.6.07

Comunicar a UE: da mensagem à "massagem" (*)

Para a actual reflexão sobre a questão europeia, no quadro do alargamento e das suas implicações, importa relembrar o que dizia Francisco Lucas Pires no início dos anos 90 «(...) Se a integração europeia tem avançado no plano material e no plano moral, está ainda muito retraída e longe desse horizonte no plano do discurso político e do diálogo multinacional sobre si própria. Para a comunicação jornalística, amplamente centrada sobre as questões nacionais em geral, a Comunidade é ainda mais notícia que mensagem e as instituições e as decisões comunitárias só são objecto de informação quando e na medida em que incidem sobre a vida concreta de um Estado ou sociedade determinada» (...). «Com a imprensa europeia a falar a mesma linguagem, isto é, a ver a construção europeia a partir de dentro e não a partir de fora, como um todo e não como um mero conjunto de partes». «(...) Se a Europa sem fronteiras, mesmo sem política de comunicação, constituirá sempre o nosso caminho natural para a "aldeia global" e o apogeu da nossa "sociedade de comunicação", seria bom que dispusesse de meios e capacidades para começar por se representar a si própria (1).

Mudando necessária e radicalmente as estruturas de comunicação e as estratégias mediáticas na esfera pública, teríamos o campo dos media com uma função mais interveniente no espaço público e nas políticas de desenvolvimento integrado, de tal forma que a crise de legitimação a que se assiste por parte dos protagonistas do campo político - e nalguns casos do próprio sistema democrático - seria reenquadrada por novas práticas políticas, mediáticas e por um novo protagonismo público, que nos poderia conduzir mais rapidamente a uma alternativa à democracia representativa em crise, com a emergência de uma esfera social e política participada, onde o consenso fosse atingido não através de modalidades impositivas criadas pelos 'acontecimentos' mediáticos, mas sobretudo pela emergência de um novo decisionismo nascido no confronto de ideias, no diferendo, e no reencontro do jornalismo com a opinião e o saber de experiência feito.

Importa revitalizar o discurso dos media sobre a Europa por forma a aprofundar essa visão simbólica identitária - que se deseja ser a visibilidade do real europeu. Dar a ver, portanto, através de uma arte dos pequenos passos, o essencial do que estrutura e enforma a Europa, não esquecendo as suas singularidades.

Importa captar o que está realmente a acontecer, a verdadeira experiência social, cultural e política europeia. Importa retomar o campo participativo - encontrar alternativas ao modelo representativo e aclamativo em crise de legitimação, captar esse ‘mundo da vida’ que todos ambicionamos venha a ser o exemplo dado pela Europa aos novos mundos que virão para lá deste século.

O papel dos porta-vozes oficiais, dos gabinetes de comunicação, dos centros de documentação europeia, dos eurogabinetes, etc., deve ser de alguma forma repensado dentro dessa estratégia de repor a transparência e renovar a informação ao cidadão comum europeu, renovando também as estratégias de comunicação no plano dos media e ainda no plano da publicidade. Repensar, no fundo, a narrativização do modo de exercício do poder em virtude da crise de liderança política ameaçar a própria construção de uma nova arquitectura europeia.

Colocar os media perante padrões de exigência no controlo e na crítica das próprias políticas europeias quando se distanciam do respeito pelos mais elementares preceitos de cidadania (veja-se por exemplo o caso dos serviços públicos de TV na Europa, em geral, que mistificam o desempenho de uma verdadeira, inequívoca, função de interesse público).

Dinamizar os media europeus no sentido de se abrirem à informação emanada das comunidades, de eles próprios se tornarem transparentes face ao que é essencial, que releva no fundo do pragmatismo e da eficácia dos objectivos que o cidadão possa sentir directamente no seu dia-a-dia e não tanto da máquina política da União e das suas performances institucionais e burocráticas. Enquanto o institucional ocupar o espaço público mediático como uma espécie de fórum de legitimação permanente da União, tudo o resto fica secundarizado, e o cidadão vulgar, porventura, não se reconhecerá nesse debate.

É importante colocar a questão do ponto de vista da União Europeia e saber se de facto a UE tem a percepção das mudanças estruturais que se afiguram necessárias num contexto generalizado de défice de convicção, em tempo de crise, portanto.

O projecto europeu – e Ideia de Europa - não se afigura alcançável quando a abstenção nas eleições para o Parlamento Europeu aumentou de 37% para 51% entre 1979 e 1999. E quando, em 2004, já no quadro do 25, se obteve 44,6% de abstenção.

A PEIC (Política Europeia de Informação e Comunicação) foi criada em 2002, de certa forma, para inverter esta situação, “para eliminar a distância entre a União e o público (…) para criar uma Europa que esteja perto das pessoas, que lhes seja familiar e que tenha para elas um significado” (COM (2001) 354:3) e para resolver essencialmente o iminente bloqueio do processo de construção europeu. A própria UE tenta corrigir a situação através de uma orientação que defendia a divulgação da informação num sentido mais qualitativo e estratégico do que quantitativo (COM 281 (2002).

Mas se as políticas de informação são cruciais para o sucesso das grandes reformas comunitárias e das principais orientações estratégicas, a verdade é que a desconfiança e a desmobilização dos cidadãos se mantém face ao que é essencial – a participação activa na esfera da Cidadania e o assumir do princípio identitário da Ideia de Europa.

Basta ver que no contexto da integração europeia, a memória social da Europa não aparenta estar fortemente estruturada: “Apesar da transmissão social de conceptualizações ideais associadas à Europa, a inconsistência da articulação entre as dimensões analisadas da memória não parece permitir que se constitua como uma memória organizadora da identidade social dos portugueses. Apesar do esforço de convergência, os portugueses parecem continuar a sentir-se periféricos relativamente à Europa”. (2)

Esta investigação de Ana Horta fornece pistas extremamente importantes para se perceber algumas das principais fragilidades da relação entre a União Europeia e os seus cidadãos e assim procurar encontrar as opções fundamentais para a reformulação do seu sistema de comunicação.

Desde logo, há que perceber que a conceptualização da relação dos cidadãos com a Europa se tem colocado em geral no plano económico e não na identificação sócio-cultural com a diversidade do espaço e da experiência europeia. Evidentemente que nos públicos de maiores recursos culturais essa tendência é mais esbatida do que nos públicos com menor escolarização, pelo que se evidencia aqui a necessidade de ser repensado o desempenho dos serviços públicos europeus de Rádio e TV em matéria de mediadores privilegiados das matérias europeias e da Ideia de Europa.

Mas há outros factores a considerar: por exemplo, a complexa questão da mercantilização da informação como bloqueio à transparência e liberdade editorial; o baixo nível de noticiabilidade das questões europeias; a questão da crise de credibilidade do sistema de media e alguma insatisfação daí decorrente no que se refere ao comercialismo, ao sensacionalismo e ao partidarismo; um ‘quarto poder’ sem responsabilidade, baixos níveis de gratificação, reduzida presença no espaço público, etc. Podem ainda ser apontados outros aspectos de grande relevância, como, por exemplo, a questão da promiscuidade e o esbatimento de fronteiras entre jornalistas e assessores de imprensa ou de comunicação ou as rotinas e a demasiada proximidade entre jornalistas e fontes, grupos de interesses, porta-vozes oficiais, etc.

Uma das teses centrais é a de que o conceito de ‘memória social’ na imprensa generalista tem, em matéria de selecção, segundo a investigadora (p.276), um défice de noticiabilidade e de consistência. Em termos de conceptualização, em geral, o discurso produzido é largamente favorável à Europa, mas sobretudo no que se refere à enfatização dos benefícios materiais, com representações contraditórias com aquela. Quanto à lógica de “comemoração”, foi verificado que os actores políticos instrumentalizam os assuntos europeus em favor da lógica partidária, esvaziando o discurso jornalístico, que está efectivamente muito dependente da agenda, da tematização e das fontes. Ocorrem assim, em boa parte, disfunções da mediatização que originam representações da Europa sem lógicas de proximidade, desinteressantes e pouco mobilizadoras, o que significa que a mediatização da Europa reproduz, no fundo, uma memória inconsistente.

Por outro lado – uma segunda tese – a percepção da memória da Europa na recepção é verificada embora de forma diferenciada face aos diferentes públicos em presença. Os assuntos europeus emergem em regra à margem dos interesses pessoais e da experiência directa de vida. E se a conceptualização da memória é, em regra, valorizada positivamente, mantém-se, nos menos escolarizados uma representação adstrita aos valores essencialmente materiais da UE. Por fim, há que reflectir sobre o facto das representações da Europa serem fundamentalmente marcada pela mediatização e não tanto pela participação do cidadão.

Não causa espanto, portanto, que no Outono de 2005, segundo o Eurobarómetro (3), 62 por cento dos portugueses afirme que tende a confiar na União Europeia, sendo esta a percentagem mais elevada da Europa dos 25 (a par da Grécia) e 17 pontos percentuais mais elevada do que a média europeia. Mas se, nos últimos anos, os níveis de confiança na União Europeia foram mais elevados em Portugal do que na média dos países-membros, o mesmo não pode ser dito acerca dos sentimentos de informação sobre a União Europeia.

No período entre 1999 e 2005, os portugueses expressam um sentimento de informação inferior ao da média dos cidadãos europeus. E quanto à satisfação com a quantidade de informação de que dispõem sobre a União Europeia, Portugal apresenta uma proporção de inquiridos satisfeitos que é inferior (27 por cento) à média europeia (33 por cento). Finalmente, ao analisar as respostas dos inquiridos sobre o conhecimento do funcionamento da União Europeia, verifica-se que os dados corroboram novamente o posicionamento de Portugal abaixo da média europeia. De facto, a proporção de portugueses que respondeu afirmativamente a esta questão é baixa (32 por cento), inferior à média europeia (41 por cento).

O que reforça a nossa ideia de que a reorientação das estratégias de comunicação deveria ser considerada numa outra lógica, como aliás defendia Lucas Pires: mais em função da mensagem – na educação, nos media, no espaço público – do que em função da notícia. Isto porque os media são, de facto, simultaneamente, uma alavanca e um entrave à participação democrática e também porque “as políticas activas de comunicação em conjunto com os grupos de pressão, dão a ilusão de criar um processo democrático, quando, na verdade, vieram diluir a participação democrática" (4). Neste estudo, em particular, são inventariados diversos problemas e disfunções do sistema, como o facto de ser predominantemente burocrático, haver um défice de pedagogia informativa e de simplificação da linguagem, uma opacidade de procedimentos administrativos, informações pouco claras e incompreensíveis, incompatibilidade entre imagem e identidade da administração pública, etc., etc.

Também Manuel Castells (5) alertava para a necessidade de reconfigurar as estratégias europeias no sentido de criar uma identidade europeia forte que permita – essa sim – ultrapassar os limites da criação de um mercado comum. Castells alertava também para o facto de a par da integração europeia se terem desenvolvido os nacionalismos, precisamente ao contrário daquilo que se previa no passado, pelo que é um facto que, não havendo claramente unificação pela identidade, será por aí que passa fundamentalmente a saída para a crise europeia e para as suas estratégias de comunicação, mais assentes na coerência e sistematização da mensagem da Ideia de Europa do que na “excitação” do press-release.

Assim, se é verdade que o défice de informação se tornou parte do défice democrático, o défice de informação/convicção da UE sobre a Ideia de Europa e a sua identidade na diversidade, tornou-se, não parte, mas essência de uma crise ‘eurocéptica’ de difícil e complexa reversão.

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(*) Do artigo "O Alargamento, a Ideia de Europa e os Media", de F. Rui Cádima, in O Alargamento da UE e os Media , Paulo Faustino (Coord.), Media XXI/Formalpress, 2006.

(1) Francisco Lucas Pires, A Imprensa e a Europa, Lisboa, 1992, Edição de Autor.

(2) Ana Horta, “Imprensa e Memória Social da Europa”, tese de doutoramento, texto policopiado, ISCTE, 2006, pp. 278-279.

(3) EUROBARÓMETRO nº 64 - OPINIÃO PÚBLICA NA UNIÃO EUROPEIA, Outono de 2005. Relatório Nacional (Portugal). http://ec.europa.eu/public_opinion/archives/eb/eb64/eb64_pt_nat.pdf

(4) Cf. “A imagem da administração europeia na imprensa escrita portuguesa”, tese de mestrado em Administração e Políticas Públicas, de Denise Quintela, ISCTE, 2006.

(5) Manuel Castells, A Era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura, Vol. III, O Fim do Milénio, FCG, Lisboa, 2003.

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