5.2.07

Sim, a Mulher é a Mulher e as suas circunstâncias (act.)

Colocada assim a questão (Referendo de 11.2.07), cabe dizer que há múltiplas “razões” com que a razão se emociona. Mas é aí – e por aí – justamente, que se abre uma fractura gerada no próprio plano da (ir)racionalidade e do maniqueísmo. Sendo que as razões e emoções que mais directamente interpelam o mundo da vida, ou, também, o homem e as suas circunstâncias, se aproximam inequivocamente do “sim” no referendo.

Porquê? Primeiro pelo irrazoável do próprio Referendo no plano da virtude civil e no plano do inumano, isto é, do que começa por plebiscitar, esquecer a própria mulher. No fundo, será que a Mulher é referendável?

Existe uma Lei da IVG que autoriza o aborto terapêutico (realizado para interromper uma gravidez que resultou de uma violação), o aborto eugénico (praticado quando são detectadas malformações no feto), ou a interrupção em defesa da vida da mulher.

A mesma lei que aparenta desconhecer outros “princípios de violação” do quadro ético/normativo que podem originar uma gravidez, nomeadamente: desinformação e/ou imaturidade (sobretudo nas adolescentes mais jovens), abandono ou exclusão social e/ou desestruturação familiar, falência do dispositivo contraceptivo, efeito de drogas ou álcool. A actualização da Lei da IGV, neste sentido, teria resolvido a questão. E teria poupado a sociedade portuguesa a um debate estéril, demagógico e por vezes mesmo terrorista. Que pode até ficar sob o cutelo da justiça (a modos que divina) e da excomunhão do cónego Tarsício enunciada no seu texto “ordem para matar”.

No fundo, há vida para além do feto, ou melhor, há vida para além da fecundação – e essa é a da mulher. O que se passa é que há vida para além do Referendo – e, sem dúvida, ao instituí-lo começa por negar-se essa evidência.

Daí que haja uma certa hipocrisia política-partidária neste Referendo.

Tenho mesmo sérias dúvidas de que, colocado o excesso da questão referendária, o tradicional dispositivo comunicacional/propagandístico político-partidário se deva envolver, como está, numa questão que a política não quis ou não soube resolver no seu espaço de competência própria. E que, praticamente, não criou divulgação documental, análise “independente” e sistematização científica sobre o tema.

Ao devolverem a questão para a dimensão referendária da cidadania, as máquinas político-partidárias deveriam continuar a fazer valer a sua legitimidade numa expressa e continuada delegação à cidadania do debate público sobre o tema. Isto porque a natureza da lógica comunicacional/propagandística político-partidária – veja-se o caso dos tempos de antena televisivos – “inscrevem” excessivamente o logótipo partidário e sobretudo o dispositivo propagandístico “partidário” numa esfera que já não é definitivamente sua, mas antes da democracia participativa e da política aberta, da deliberação dos cidadãos de uma forma geral.

E quanto à questão científica, o problema não está em saber “quando começa a vida” ou qual é o “grau zero da vida” e fazer depender dessa definitiva imprecisão uma decisão. Do nosso ponto de vista, a ciência só poderá responder que não há, por assim dizer, um “grau zero da vida”. Uma gravidez é claramente um facto de civilização e é na complexidade humana do seu contexto que devem ser colocadas causas e consequências.

Veja-se que no plano estritamente médico, na óptica neurológica a vida começa às 26 semanas (funções cerebrais superiores); na biologia, às 12 semanas (formação do sistema nervoso) e na genética é na fecundação (genoma). O problema é que para as ciências sociais (e jurídicas) a “vida” começa um pouco antes, isto é, há disponibilidade científica para se ponderar as circunstâncias do próprio acto de fecundação. E no caso de violação, aceita-se a interrupção.

Dir-se-ia que o “acto de fundação” da vida deriva de um continuum e não propriamente de um momento zero. O cerne da questão residirá assim não nos mitos fundadores da “origem”, mas sim nas formas de variabilidade, na experiência da vida e do acto, que envolvem desde logo a mulher e as suas circunstâncias.

O que interessará, pois, nesta oposição entre a razão plena da ciência e o seu aproveitamento político, é a variação, humana, social, contínua, imanente e não a identificação do “momento zero”. Recorde-se, neste sentido, a crónica de Umberto Eco, recentemente citada por Mário Mesquita (A vida, os embriões e os seres humanos, Público, 4.2.07) intitulada "Sobre a alma dos embriões" onde Eco dissertava "sobre a pretensa defesa da vida, segundo a qual o embrião já é um ser humano na medida em que poderá vir a sê-lo no futuro" presunção que em si mesma faz implodir o próprio dogma da “fundação” jurídico-política da vida no que diz respeito ao tema da interrupção voluntária da gravidez.

Dada a complexidade – isto é, a dimensão humana do tema –, a ciência deveria responder de forma menos decisiva, mais distanciada, ou seja, recolocando a questão da gravidez na sua dimensão social e humana (mais do que na dimensão da “saúde” ou “jurídica”), isto é, pronunciando-se desde logo contra a sua classificação como “objecto de justiça”, recomendando a óbvia e natural despenalização e descriminalização.

A angústia maior conduz-nos ao “nefandum crimen!” de que fala parte da Igreja – e a saber se, de facto, esse “crime” está em linha com aquele a que Dan Brown se refere no Código da Vinci, quando expõe a censura intemporal à maternidade de Maria Madalena e à linhagem genealógica de Cristo.

Veja-se que quando se reconhece na Lei que em determinadas circunstâncias é aceitável socialmente a interrupção da gravidez, reconhece-se, de facto e de jure, que a razão ética, social e humana, deve prevalecer sobre, por exemplo, a ética religiosa ou sobre o próprio “mito” da origem da vida, não sendo por isso aceitável a alienação desse mesmo princípio. Não sendo de todo aceitável que face a essa legitimação, colocados perante a consciência da mulher e a invocação de um princípio de violação (visto de forma lata), alguém, por “decreto”, enuncie o “homicídio”.

O espírito do tempo – porventura o espírito dos tempos – aconselha a essa “descida” às evidências do mundo da vida, porque o homem, como a mulher, é o homem e as suas circunstâncias.

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