8.10.06

O Jornalismo em Portugal face aos futuros Estatuto e Lei da Concentração: que independência, que autonomia, que direitos?

“Como são estreitos os limites da liberdade de expressão que a Constituição nos dá e os grupos de comunicação nos vendem”.
Mário Mesquita, "A receita holandesa para ‘jornalistas no Governo’", Público, 7 de Novembro de 2004


Receios fundados têm surgido face à
Proposta de Lei do Estatuto do Jornalista, aprovada no Conselho de Ministros de 1 de Junho de 2006, e nomeadamente face aos graves problemas que ela mantém e/ou levanta no seu articulado, designadamente sob o ponto de vista das incompatibilidades temporárias tendo por objectivo manter a contratação de jornalistas ao serviço do poder político instituído (i), mas também ao nível da autoria e do exercício profissional (ii) e da respectiva remuneração (iii), como consta no articulado em causa, a saber, nomeadamente:

i) “O exercício da profissão de jornalista é incompatível com o desempenho de: b) Funções de marketing, relações públicas, assessoria de imprensa e consultoria em comunicação ou imagem, bem como de planificação, orientação e execução de estratégias comerciais; (…) Findo o período da incompatibilidade, o jornalista fica impedido, por um período de seis meses, de exercer a sua actividade em áreas editoriais relacionadas com a função que desempenhou, como tais reconhecidas pelo conselho de redacção do órgão de comunicação social para que trabalhe ou em que colabore.” (Artº 3º - nº 1-b e nº 6).

ii) “Os jornalistas não podem opor-se a modificações formais introduzidas nas suas obras por jornalistas que desempenhem funções como seus superiores hierárquicos na mesma estrutura de redacção, designadamente as ditadas por necessidades de dimensionamento, correcção linguística ou adequação ao estilo do respectivo órgão de comunicação social (…)” (Art.º 7.º-A, n.º 4)

iii) “Considera-se incluído no objecto do contrato de trabalho o direito de utilização de obra protegida pelo direito de autor, para fins informativos e pelo período de 30 dias contados da sua primeira disponibilização ao público, em cada um dos órgãos de comunicação social, e respectivos sítios electrónicos, detidos pela empresa ou grupo económico a que os jornalistas se encontrem contratualmente vinculados.” (Art.º 7.º - B, n.º 3)

Para além das inicialmente grosseiras e agora sibilinas novas formas de censura que têm emergido no Media em Portugal, desde Abril de 1974, na actualidade e em matéria de liberdade de expressão, de direitos e independência dos jornalistas sou dos que temem a Caixa de Pandora que se pretende abrir, da qual boa coisa certamente não sairá, mantendo-se ou piorando mesmo o “sistema” de media e as frágeis práticas jornalísticas vigentes.

Refira-se, de passagem, o estranho facto do tema não ser praticamente motivo de discussão pública, designadamente pelos mais directamente interessados, pela classe, no fundo, a não ser por uma quase exclusiva acção do sindicato. Para além disso, o silêncio. Um estranho silêncio.

Também face ao recém surgido anteprojecto da Lei sobre os limites à concentração nas empresas de comunicação social, lei que pretende salvaguardar a independência editorial perante o poder político e económico, a questão específica da independência e do pluralismo, que consagram a essência da prática jornalística, aparecem como que associadas apenas a quotas de concentração dominantes e não àquilo que nas práticas quotidianas inviabiliza essa mesma independência – justamente os grupos de interesses económicos, políticos, mediáticos –, que, naturalmente, não necessitam de abusar de quotas de mercado para submeterem o velho, mítico, “quarto poder” a um poder cada vez mais frustrado e debilitado.

À falta de debate público frontal e desassombrado sobre esta matéria, permita-me (primeiro o autor, Mário Mesquita, e depois o Público) que retire dos arquivos um texto que bem poderia servir de preâmbulo ao debate sobre a questão central: a independência dos jornalistas face, justamente, ao poder político e económico.

Aí vão então algumas das principais passagens do texto de Mário Mesquita:


A receita holandesa para ‘jornalistas no Governo’, Mário Mesquita, Público, 7 de Novembro de 2004


“(…) Gerrit Zalm (ministro das Finanças do Governo holandês), companheiro de partido do malogrado Pim Fortuyn, proferiu uma declaração, esta semana, sobre a política de informação da Holanda, que foi ignorada por inúmeros jornais portugueses e noticiada, de forma discreta, por outros. Zalm anunciou que o Governo holandês, a partir de 2005, deixará de contratar jornalistas, com vista a assegurar o relacionamento com os "media".

“Esta medida destina-se, explicou Zalm, a clarificar o panorama mediático. “O Governo não deve envolver-se com uma situação que aparentemente suscita dúvidas no público sobre a independência do jornalismo” (PÚBLICO, 3 do corrente). Desta forma pretende o Governo contribuir ‘para garantir a independência dos média’”.

“A medida adoptada pelo Governo holandês depõe contra a hipótese de auto-regulação dos jornalistas. Aparentemente, pelo menos na Holanda, é mais viável que seja o Governo a desistir de contratar jornalistas como assessores de comunicação (esse parece ser o sentido da promessa de Zalm) do que surjam normativos emanados das associações profissionais que conduzam à recusa de tais convites.

“Por que motivo recorrem os governos a jornalistas para funções que, à primeira vista, seriam destinadas a especialistas em comunicação institucional, publicidade ou marketing politico? A questão não apela a grandes divagações teóricas: os jornalistas estão, naturalmente, inseridos na rede comunitária das amizades e cumplicidades das redacções. Com maior facilidade abrem portas fechadas a intrusos ou vencem resistências à aceitação das agendas governamentais.

“(…) Será transponível (a medida) para outras latitudes e longitudes? Para Portugal, por exemplo? Não parece provável. Alguém se atreveria a sugerir a Santana Lopes (no presente) ou a José Sócrates (no futuro) a adopção de medida idêntica à holandesa?

“Além dos problemas de desemprego de tantos jornalistas dedicados, a título precário, a missões de "agit-prop" governamental ou oposicionista, seria justo recear um abrandamento do ritmo da intriga política nos ecrãs da televisão ou da Internet, nas páginas de jornal e nos microfones da rádio. Os gabinetes governamentais, ou os seus adversários, oposicionistas, "alimentam" diariamente o "ânimo" da nação com "factos políticos" acabados de sair do forno.

“A renúncia do Governo a contratar jornalistas seria saudável em nome da transparência, do pleno respeito pelas incompatibilidades profissionais, mas, por outro lado, prejudicaria o bom curso do noticiarismo intriguista. De tão habituados ao ritmo do ‘mente-desmente’, ‘diz-se que disse mas não disse bem assim’, ‘não é mentira é apenas inverdade’, mal iríamos se, ao trabalho desenvolvido pelos políticos, comunicadores institucionais e assessores das mais variadas profissões e proveniências, não se acrescentasse a imprescindível figura do jornalista com carteira suspensa ao serviço do Governo...

“Seria injusto deixar de sublinhar que a figura do jornalista ligado aos partidos por uma espécie de contrato-promessa de prestação de serviços também é imprescindível à oposição. Sem recurso a esse tipo de pacto não escrito, as campanhas eleitorais seriam demasiado mornas e as correntes oposicionistas, não disporiam de armas bastantes para contrariar a tradicional preponderância governamental nos meios de comunicação (sobretudo, quando a direita governa…).

“Boa parte da indignação que corre na nossa praça acerca dos limites à liberdade de expressão em Portugal pertence ao domínio da mais pura hipocrisia. Quando o Governo do PS renacionalízou, sem qualquer debate prévio, os jornais da Lusomundo (ou consentiu na renacionalização), o silêncio foi quase completo. Nem tiveram qualquer eco as raras vozes que se referiram ao risco da constituição de um novo grupo mediático dependente do Governo, mas isento do sistema controlo constitucionalmente previsto para o sector público.

“(…) é patético que se retire do caso Marcelo Rebelo de Sousa argumentos para criticar o sector público da comunicação social. O megacomentarista foi forçado a afastar-se de um órgão privado, embora muito amigo do Governo em funções. Os riscos da concentração da propriedade dos "media" em meia dúzia de patrões ficaram expostos. O próprio mecanismo da concorrência não se manifestou de forma explícita: ninguém referiu, em público, que a SIC, a outra estação privada, tivesse convidado o comentarista afastado da estação que a Igreja criou (…) Tão-pouco seria de esperar que a televisão pública, à revelia dos seus tutores de São Bento, tomasse a iniciativa, como era seu dever, de "repescar" Marcelo Rebelo de Sousa, compensando as restrições que lhe foram impostas no sector privado. Num país em que a cultura da liberdade é inquestionável, desde que ninguém ouse exercê-la de forma incómoda para os poderes dominantes, a questão não se reduz à distinção entre a propriedade pública ou privada dos "media". Sob a capa do hino à liberdade de informação, já se sabia, muito antes do caso Marcelo Rebelo de Sousa, como são estreitos os limites da liberdade de expressão que a Constituição nos dá e os grupos de comunicação nos vendem…”

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Revisão da matéria:

O Estatuto, o jornalista e a caricatura dele

Vai assessor, vem jornalista
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