12.5.06

A desregulação da Televisão*

Desde a abertura da televisão à iniciativa privada, em 1992, as consequências dos erros cometidos na regulação e na gestão política do audiovisual conduziram, em Portugal, a um sistema extremamente crítico no sector televisivo, que não se organizou “em ordem à satisfação do interesse público” (1), mas, porventura, em ordem à satisfação de múltiplos interesses privados. Pode-se caracterizar, genericamente, por ser um sector:

i) Sem mercado suficiente para todos os operadores;
ii) Sem indicadores precisos e estudos independentes, claros, objectivos, com metodologias técnico-científicas apropriadas, sobre o desempenho do Audiovisual público e privado ao longo das concessões/alvarás.
iii) Sem uma estratégia aplicada, de referência, para o audiovisual público e sem objectivos ou metas quantificáveis, designadamente no tocante à sua missão e obrigações de programação.
iv) Sem regulamentação específica, com detalhe, no que é estratégico (ex: renovação das licenças de TV);
v) Sem cadernos de encargos atribuídos aos operadores privados;
vi) Sem monitorização consistente, atenta e regular da “ética de antena” e dos conteúdos emitidos pelo serviço público de TV e pelos canais privados.

O facto de se tratar de um sector que na sua aparente coerência regulatória mais não teve do que uma continuada desregulação, evidenciando a demissão do Estado relativamente ao que é essencial – a formação de uma opinião pública forte, esclarecida e participativa – fez-nos chegar a um ponto crítico no plano dos conteúdos, nos três canais de maior audiência, caracterizado, basicamente, pelos seguintes aspectos:

i) Existe uma “espiral de silêncio” na SIC e na TVI que eliminou o debate público, cultural e político nas suas grelhas de programas (2);
ii) Telejornais submetidos, na sua lógica jornalística ao ‘diktat’ dos comerciais e da estratégia de programação, desprogramação e contra-programação dos canais, bem como à actualidade trágica e à catástrofe (3).
iii) Organização burocrática e mimética da informação televisiva submetida à agenda institucional e aos porta-vozes oficiais, censurando a virtude e a expressão da Cidadania e a experiência social (4);
iv) Horário nobre fidelizado horizontal e verticalmente, com um elevado défice de diversidade e de pluralidade de géneros televisivos e uma monocultura de prime time exclusiva de três géneros: novelas, concursos e humor débil e obsceno;
v) Canais (ex: SIC) de tal modo contaminados pelas novelas brasileiras, que não têm uma grelha generalista e não assumem o desígnio da Lei no plano da identidade cultural e nacional portuguesa;
vi) Cumprimentos de quotas europeias fundados numa lógica descartável (de nivelamento por baixo) de programação de “fluxo” sem qualquer tipo de exigência pública no âmbito da programação de “stock”.
vii) A dolorosa realidade televisiva portuguesa (Telereport 2004) diz-nos ainda que se comparada a ‘oferta’ (minutos emitidos) e a ‘procura’ (minutos visionados), os programas de desporto têm a melhor relação, estando a ‘procura’ 54% acima da ‘oferta’. Numa relação positiva (acima de 100), posicionaram-se também os programas de informação, ficção e divertimento. O que significa que os programas de Arte e Cultura (-18%), Conhecimento (-35%) e Juventude (-27%) têm a pior relação entre horas emitidas e horas visionadas. É esta a TV que temos…

Este triste panorama, que nos remete, em 2006, para uma televisão generalista de características terceiro-mundistas, com um passivo de 15 anos que se aproxima dos 1,5 mil milhões de euros, não tem merecido um olhar crítico nem por parte do Estado, nem por parte da Comissão Europeia. Pelo contrário, foi criação - e tem tido o beneplácito - dos governos PS e PSD, o que, pelo que vem do passado e nas actuais circunstâncias, continua a não augurar nada de bom para a Cidadania e para a Democracia portuguesa. Cabe-nos a nós, cidadãos, o direito… à indignação.

(1) Resolução 6/92, do Conselho de Ministros, publicada no "Diário da República" - II Série, n.º 45, de 22 de Fevereiro de 1992, página 1972; http://www.ics.pt/verfs.php?fscod=110&lang=pt, “sobre a atribuição de licença a entidades privadas para exploração dos 3.º e 4.º canais de televisão”.
(2) Cf. Tese de doutoramento de Felisbela Lopes: Uma Década de Televisão em Portugal (1993-2003). Estudo dos programas de informação semanal dos canais generalistas, Universidade do Minho, 2005.
(3) Cf. Tese de doutoramento de Nuno Brandão: Os telejornais da televisão generalista portuguesa – importantes encontros quotidianos com a actualidade e para a construção social da realidade, ISCTE, 2005.
(4) Cf. Teses de doutoramento de Dinis Alves: Mimetismos e determinação da agenda noticiosa televisiva. A agenda-montra de outras agendas. Universidade de Coimbra, 2005; e de Jacinto Godinho: Genealogias da Reportagem – do conceito de reportagem ao caso Grande Reportagem, programa da RTP (1981-1984), Universidade Nova de Lisboa, 2005.

* Publicado na Media XXI, nº 86.
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