21.10.05

Da tele-cerimónia ao tele-esquecimento

«Às oito horas e quinze minutos de 12 de Junho de 1985 chegava finalmente o grande dia para Portugal. Fátima Medina introduzia a maratona de 14 horas, 45 minutos e 1 segundo de emissão dedicadas exclusivamente à assinatura do Tratado de Adesão à CEE - 3,1% do total do tempo produzido pela Informação Diária da RTP durante o ano de 1985. A locutora explica aos telespectadores que a RTP1 iria dedicar toda a emissão ao assunto.(...)».

Extracto da obra «O Primeiro Dia Europeu de Portugal - Cenas da união selada pela televisão», de Gisela Machado, Campo das Letras, Porto, 2005, agora lançado no âmbito do 4º Congresso da SOPCOM.

Aquela tele-cerimónia acabou assim por ser a evidência de um tele-esquecimento: a de que a integração subsequente de Portugal na CEE não teve direito a mais ‘rituais’ televisivos…


Junta-se o Prefácio (FRC):

Importa começar por saudar esta pesquisa de Gisela Machado, reconhecendo a sua importância, em Portugal, no âmbito dos estudos sobre Televisão, designadamente sobre a teoria da informação televisiva.

«O Primeiro Dia Europeu de Portugal: Cenas de uma União selada pela Televisão – Análise da Telecerimónia de Assinatura do Tratado de Adesão de Portugal à CEE», é, ainda, motivo de referência, pelo facto de ter passado pelo crivo de dois júris com resultados excelentes, após aprovação enquanto dissertação de mestrado: foi Menção Honrosa no
Prémio Fundação Mário Soares 2004 e obteve um incentivo do Instituto da Comunicação Social, no concurso relativo à Edição de Obras sobre Comunicação Social, concedido no segundo semestre de 2004.

Como dizíamos de início, este trabalho inscreve-se efectivamente no quadro dos estudos de autores portugueses sobre o dispositivo da informação televisiva, tema que tem vindo a ser tratado noutras dissertações académicas, quer de mestrado quer de doutoramento, o que constitui já um importante acervo reflexivo sobre uma das questões centrais em matéria de comunicação social e das relações do discurso audiovisual com a sociedade.

A relação da TV com o mundo, nomeadamente do seu sistema de informação, é de uma enorme complexidade. Claramente, potencia a difusão de um saber que mais não é do que uma recomposição rotineira e burocrática dos acontecimentos, dada através de um ângulo muito particular, ‘instrumento de verdade’ que não pode iludir os seus dispositivos, os seus poderes e os seus rituais. Desta forma, o discurso televisivo conduz ao espectáculo de ritualização do acontecimento e à efabulação sempre violenta do real, na medida em que reconhece prioritariamente alguns dos seus estereótipos – a actualidade trágica, a catástrofe, o fait-divers.

A edição/difusão da agenda noticiosa é assim o momento fundador da verdade quotidiana, embora trabalhe num registo de ilusão naturalista que tem basicamente por horizonte de conhecimento um contrato de credibilidade com o telespectador, – extensivo ao dispositivo técnico e discursivo –, uma instrumentalidade e uma performatividade.

Ao contrário, no directo joga-se uma legitimação menos compósita do real. Jean-Luc Godard pensava que era na ‘durée’ e no contínuo da transmissão de um jogo de futebol, por exemplo, que o dispositivo logotécnico televisivo se afirmava na sua essencialidade, ganhando em transparência o que a edição perdia na recomposição.

É sabido que os media, e a televisão em particular, organizam e enunciam o seu discurso em função das relações de poder e das representações que se configuram num determinado campo social e num contexto epocal, daí a emergência de uma ordem informativa protocolar e burocrática cujo impacto nas condutas e nas mentalidades é evidente. Por alguma razão se diz que a Televisão é uma ‘empresa’ de escolarização alargada o todo o social.

A narrativização do real através das práticas referidas gera não só «acontecimentos-monumentos», através da estratégia burocrática de produção de informação diária (de mimetismos de outras agendas e de rotinas), mas também gera, através das lógicas dos directos, sobretudo protocolares, telecerimónias, acontecimentos ritualizados, que fundam ou corroboram novas e velhas legitimidades e representações, permitindo o estabelecimento de paralelismos paradoxais (celebração vs. desordem), dado que os ‘directos’ de maior duração, ou representam a Instituição, o Estado, uma grande cerimónia no plano Europeu (como é o caso desta tese agora editada), um casamento real, o funeral do Papa, por exemplo, ou então abrem-se à tragédia e à catástrofe, numa disponibilidade que se alarga desde uma abertura de Telejornal, a horas e horas de emissão contínua nas situações mais violentas ou mesmo de cataclismo (como, por exemplo, o recente Tsunami do sudeste asiático).

A leitura que aqui se oferece, numa escrita clara e precisa, relança importantes questões sobre os ‘acontecimentos-cerimónia’, na medida em que se trata de uma investigação extremamente assertiva sobre uma celebração, dita, curiosamente, «coroação» de uma estratégia há muito ansiada por Portugal, constituindo-se em contratualização cerimonial e em reforço (audiovisual) de legitimação.

Verifica-se, curiosamente, nos dias que antecedem a data da adesão – 12 de Junho de 1985 -, a presença do europessimismo e a inexistência de uma ‘ideia de Europa’ nos media, isto apesar de a RTP se ter posicionado face à telecerimónia, como uma espécie de «co-organizadora».

Re-legitimação pelo consenso, imagem desses mesmos valores consensuais, mesmo que de uma certa ‘arqueologia’ telecerimonial se tratasse, o facto é que 20 anos depois da entrada de Portugal para a grande casa europeia, tudo parece estar a voltar atrás, também aqui, mas mais noutros países europeus.

Será que a incerteza da origem não foi suficientemente esclarecida pelo sistema dos media, ou seja, será que a telecerimónia aqui tratada foi apenas mais um epifenómeno mediático, dado apenas com a convicção ‘acontecimental’ das rotinas informativas diárias? A ser assim tudo se compreende.

E a ser assim, é compreensível que os europeus não tenham ganho certezas sobre a ideia de Europa. E é compreensível também que novas telecerimónias sejam necessárias para re-legitimar a Europa, não bastando nem a estratégia de comunicação da União Europeia, e muito menos um certo europessimismo que ainda perpassa pelos media europeus (mesmo que sob a forma de ‘esquecimento’ da Europa).

Corre-se assim o risco, finalmente, de se assistir doravante a tentativas por vezes quase desesperadas de construir pequenas telecerimónias televisivas, com personalidades europeias a intervir aqui e ali, procurando apagar todos os fogos perante referendos em que o «Não» ameaça perigosamente um ou outro Estado-membro.

Que não restem, portanto, dúvidas: ou a ideia de Europa é assumida pelos media inequivocamente, com verosimilhança e convicção, como desígnio de Cidadania europeia – solidária, diversa, competitiva ­–, ou nenhum jogo de comunicação institucional, mais ou menos telecerimonial, a salvará de ter de demonstrar a sua legitimidade no limite da descrença de uma boa parte da opinião pública europeia.
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