Censura(s) do dispositivo televisivo
De alguma maneira, a nossa tese sobre «O Sistema Político e o Telejornal ao Tempo de Salazar e Caetano», de 1993, abriu um conjunto de hostilidades necessárias neste campo.
Daí para cá, diversos trabalhos se têm vindo a inscrever efectivamente nos estudos sobre o dispositivo da informação televisiva, em particular no âmbito de outras dissertações académicas, quer de mestrado quer de doutoramento, o que constitui já um importante acervo reflexivo sobre uma das questões centrais em matéria de comunicação social e das relações do discurso da televisão face à experiência social.
A relação da TV com o mundo, nomeadamente do seu sistema de informação, é de uma enorme complexidade. Claramente, potencia a difusão de um saber que mais não é do que uma recomposição rotineira e burocrática dos acontecimentos, dada através de um ângulo muito particular, ‘instrumento de verdade’ que não pode iludir os seus dispositivos, os seus poderes e os seus rituais. Desta forma, o discurso televisivo conduz ao espectáculo de ritualização do acontecimento e à efabulação sempre violenta do real, na medida em que reconhece prioritariamente alguns dos seus estereótipos – a actualidade trágica, a catástrofe, o fait-divers, num contexto de pregnância sobretudo à figura do tradicional telespectador passivo e ao recorte limitado das suas expectativas.
Considerando novas especificidades desse sujeito-espectador, Jacinto Godinho acaba de defender a sua tese subordinada ao tema «Genealogias da Reportagem – do conceito de reportagem ao caso Grande Reportagem, programa da RTP (1981-1984)» onde discorre sobre a reportagem enquanto género televisivo que se propõe a uma ‘interactividade’ e não a uma ‘interpassividade’ telejornalística, procurando teorizar também enquanto observador participante, mas pensando também sobre ‘o dispositivo da notícia que vai devorando o quadro da vida pública portuguesa’, ou sobre a lógica-audímetro: «os telejornais hoje competem pela realidade que melhor agrada ao seu patrocinador, que é espectador», o ‘sujeito-espectador’, acrescenta.
O tema da reportagem, aliás, já havia sido tratado por José Rodrigues dos Santos, numa perspectiva histórica e discursiva, em tese de doutoramento também defendida na UNL, «O Correspondente de Guerra, o discurso jornalístico e a história – para um análise da reportagem de guerra em Portugal no Século XX».
Recentemente, na Universidade de Coimbra, Dinis Alves defendeu a sua tese de doutoramento em Ciências da Comunicação intitulada «Mimetismos e Determinação da Agenda Noticiosa Televisiva – A agenda-montra de outras agendas», procurando demonstrar que a narrativização do real através de práticas arreigadas nas redacções gera fundamentalmente acontecimentos em segunda e terceira mão, através da estratégia burocrática de produção de informação diária (de mimetismos de outras agendas e de rotinas diversas).
Refira-se também a tese de Mestrado de Nuno Goulart Brandão (em breve defenderá doutoramento), subordinada ao título A Televisão Generalista e a Abertura dos Telejornais. Dissertação de Mestrado em Comunicação, Cultura e Tecnologias de Informação, do Departamento de Sociologia do ISCTE, que comprovou também que há uma predisposição e uma regularidade na gestão dos alinhamentos dos telejornais para colocar a catástrofe com prioridade na agenda. Também em domínio afim, o crítico de televisão do Público, Eduardo Cintra Torres defendeu na sua tese de mestrado que, de certo modo, a "a tragédia se tornou um género televisivo".
Referência ainda para a tese de Gisela Machado, «O Primeiro Dia Europeu de Portugal: Cenas de uma União selada pela Televisão – Análise da Telecerimónia de Assinatura do Tratado de Adesão de Portugal à CEE», uma investigação extremamente assertiva sobre uma celebração, dita, curiosamente, «coroação» de uma estratégia há muito ansiada por Portugal, constituindo-se em contratualização cerimonial e em reforço (audiovisual) de legitimação.
As narrativas do real televisivo geram, através das lógicas dos directos, sobretudo protocolares, telecerimónias, acontecimentos ritualizados que fundam ou corroboram novas e velhas legitimidades e representações, permitindo o estabelecimento de paralelismos paradoxais (celebração vs. desordem), dado que os ‘directos’ de maior duração, ou representam a Instituição, o Estado, uma grande cerimónia no plano Europeu (como é o caso desta tese que vai para o prelo), um casamento real, o funeral do Papa, por exemplo, ou então abrem-se à tragédia e à catástrofe.
Vários enfoques, diferentes pontos de vista, mas um elo comum que se poderá identificar como se tratando, no fundo, da emergência de uma lógica de exclusão ‘acontecimental’, para privilegiar o ‘maravilhoso’ infotainment, que as audiências devoram na sua ‘missa’ diária das 20 horas. Uma exclusão que passa por ser uma nova dimensão do esquecimento e das censuras que tipificam o próprio dispositivo televisivo, a par da dimensão instrumental e performativa, designadamente.
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